11 Agosto 2018
Em 2002, no rescaldo do escândalo de abuso sexual no clero, os bispos dos EUA criaram um Conselho Nacional de Revisão para a Proteção de Crianças e Jovens que serviria como um cão de guarda nas políticas antiabuso, conhecido como “Carta de Dallas”, que os bispos auferiram patamar de legislação.
A reportagem é de Heidi Schlumpf, publicada por National Catholic Reporter, 07-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Agora, alguns membros desse conselho inicial pedem uma investigação independente sobre o abuso sexual de seminaristas e outros adultos vulneráveis, incluindo alegações contra um dos mais proeminentes líderes do país, o arcebispo aposentado Theodore McCarrick, de Washington, D.C.
Tal investigação, disseram eles, também deveria revelar qualquer encobrimento de abuso: quem sabia, o que e quando sobre o suposto abuso de McCarrick contra seminaristas e pelo menos dois menores que datam de décadas atrás.
"A cura é lançar luz sobre isso", disse Nicholas P. Cafardi, advogado e membro original do conselho ao qual serviu como presidente de 2004 a 2005. "Precisamos levantar os panos e ver o que está acontecendo."
O presidente da Conferência Episcopal dos EUA, cardeal Daniel DiNardo de Galveston-Houston, deveria convocar uma reunião de emergência dos bispos para agir rapidamente com uma auditoria externa e independente, sugere Frank Keating, ex-governador de Oklahoma, que deixou o Conselho de Revisão em 2003 porque alguns bispos o achavam muito agressivo em relação à questão.
"Nada de barreiras - nada deve ser mantido em segredo", disse Keating ao NCR.
As revelações sobre McCarrick "falam sobre possíveis fracassos do sistema", disse Kathleen McChesney, ex-oficial do alto escalão do FBI que trabalhou com o Conselho de Revisão inicial como a primeira diretora executiva do Escritório para a Proteção da Criança e da Juventude dos bispos dos EUA.
"Cabe aos bispos deste país dar o maior número de passos possíveis para explicar aos fiéis como algo assim pôde acontecer e como eles tentarão impedir que isso aconteça no futuro", disse ela.
Mas qualquer órgão de investigação deve ser independente dos bispos, disseram ex-membros do Comitê de Revisão ao NCR.
"Os bispos não podem investigar a si mesmos. Eles nos mostraram que são incapazes disso", disse Cafardi. "E eles não têm autoridade uns sobre os outros. Os bispos só podem ser julgados pela Santa Sé."
Qualquer órgão de investigação deve incluir especialistas e leigos, e deve se reportar diretamente ao Vaticano - ou aos católicos dos EUA como um todo, disseram ex-membros.
"Por que ela deveria ter que se reportar a alguém além dos católicos?" perguntou Anne Burke, juíza da Suprema Corte de Illinois que atuou como presidente interina do Conselho de Revisão até 2004.
A investigação deve ser realizada por pessoas de bom caráter, independentes e que não tenham dívidas com os bispos. Nenhum padre ou bispo é necessário, disse ela. "Assim não vai funcionar."
Ex-membros do Conselho de Revisão que conversaram com o NCR disseram que ficaram chocados e arrasados com as denúncias "credíveis e fundamentadas" de abuso sexual de um adolescente nova-iorquino por McCarrick, bem como com as notícias de dois acordos de dioceses de New Jersey a respeito do assédio sexual de seminaristas - embora rumores e relatos sobre isso estivessem na internet há anos.
Robert Bennett, um advogado de Washington, serviu no Conselho de Revisão até 2004 e se lembra de ter pensado durante a investigação: "Pelo menos temos pessoas como o Cardeal McCarrick".
Ele viu o ex-cardeal num restaurante poucas semanas antes que ele deixasse o ministério ativo em junho, mas não se falaram desde então, disse ele.
"Ainda estou arrasado", disse Bennett. "Eu acho que isso mostra que este é um problema que tem que ser abordado de cima para baixo."
Os membros originais do Comitê de Revisão acreditam que seu trabalho foi eficaz, embora possivelmente incompleto, uma vez que os bispos "não fizeram o que pedimos que fizessem", disse Burke.
O primeiro Conselho de Revisão encomendou um estudo sobre o problema do abuso sexual de padres no John Jay College, escolhendo intencionalmente uma escola não-católica para garantir sua independência. O conselho então escreveu seu próprio relatório mais amplo, que era altamente crítico com os bispos que encobriam abusos sexuais por padres e que transferiam os padres predadores de paróquia em paróquia.
A notícia deste verão sobre McCarrick "mostra que estávamos certos", disse Bennett.
Burke observou que o primeiro conselho era independente e se comunicava diretamente com o Vaticano, enquanto o atual conselho faz suas recomendações aos bispos americanos. Ela acredita que os nomeados subsequentes para o conselho foram muitas vezes escolhidos a dedo pelos bispos para não causar polêmica.
"O Conselho de Revisão original conseguiu uma tremenda quantidade de mudanças positivas nos primeiros anos", lembrou McChesney. "Nós tínhamos autoridade moral e voz pública".
McChesney, que agora faz consultoria para empresas privadas e organizações sem fins lucrativos sobre questões de conduta, incluindo assédio sexual, literalmente escreveu o livro sobre abuso sexual de clérigos: “Sexual Abuse in the Catholic Church: A Decade of Crisis” (Abuso Sexual na Igreja Católica: Uma Década de Crise, em português)
O relatório do Conselho criticou os bispos por encobrirem o abuso sexual, mas "o bom senso diria que é possível que os bispos sejam criminosos", disse Burke. No entanto, a ideia de bispos ou de um cardeal como predador sexual não estava na mente do público, disse ela.
As normas que saíram da Carta de Dallas excluíram os bispos, mas alguns do Conselho Nacional de Revisão acreditam que as regras ainda assim cobrem eles. Além disso, o cânone 1389, do Código de Direito Canônico, que descreve "abuso de ofício", pode se aplicar a McCarrick ou a outros bispos abusadores.
As notícias sobre McCarrick são tão chocantes, disse Burke, precisamente porque "agora ainda mais do que antes, pensamos que era algo que estava sendo controlado".
"Estamos falando de bispos usando sua autoridade como sucessores dos apóstolos para tirar vantagem sexual de padres e seminaristas", disse Cafardi. "Isso vai até o coração da nossa Igreja."
McCarrick, que era membro do Colégio Cardinalício até sua renúncia no final de julho, participou do conclave de 2005 que elegeu o Papa Bento XVI.
Keating observou que, enquanto a maioria dos bispos da Igreja é formada por "homens de espiritualidade e integridade, há obviamente um número de Judas Iscariotes. Esses homens precisam ser identificados e condenados ao ostracismo".
O relatório original do Conselho Nacional de Revisão concluiu que a homossexualidade não era uma causa de abuso sexual de menores, mas sim que os meninos estavam mais disponíveis como vítimas para os padres predadores. A imaturidade sexual dos sacerdotes criminosos também pode ter sido um fator contribuinte, lembrou Burke.
Nem os antigos membros do Conselho acreditam que esta é a questão principal agora. "Caracterizar como um problema do nosso clero ser gay não está certo", disse Cafardi. "Gays normais não se impõem a outros gays".
Nos casos com vítimas adultas, eles podem ser mais claros sobre o abuso, mas o medo de retaliação - não apenas do agressor, mas de todo o sistema - frequentemente impede que eles se apresentem, disse Cafardi.
Mas é possível investigar casos envolvendo vítimas adultas que foram intimidadas por avanços sexuais daqueles que estão no poder sobre eles, disseram ex-membros do Conselho.
"No mundo do seminário, as regras são claras: é um estilo de vida celibatário e existem códigos de conduta que proíbem [a atividade sexual]", disse Keating.
As prioridades da carta original - tolerância zero, registro criminal e transparência - poderiam ser aplicadas na situação atual, disse Keating.
E os líderes da Igreja precisam agir rapidamente, disseram os membros originais do Conselho Nacional de Revisão, embora a Igreja em geral não se mova tão rapidamente quanto organizações privadas ou governamentais, disse McChesney.
"Eles poderiam fazer algo amanhã, se quisessem", disse Burke. "Não é tão complicado."
Apesar das divisões ideológicas entre os bispos nos Estados Unidos, abordar esta última onda de abuso sexual na Igreja "me parece algo com que progressistas e conservadores podem concordar", disse Cafardi.
"Não devemos deixar o povo de Deus no escuro sobre esta questão", disse ele. "É como um abscesso. Eles precisam drená-lo."
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Ex-membros de Conselho americano sobre abusos: inquérito independente sobre o abuso de seminaristas é necessário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU