14 Junho 2018
"A demanda política de mudança se consolidou no pedido por “intervenção militar”. E esse pedido é muito mais amplo: os caminhoneiros apenas colocaram abertamente essa bandeira popular como lema de suas mobilizações".
O comentário é de Giuseppe Cocco cientista político pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Publicou entre outros livros New Neoliberalism and the Other. Biopower, antropophagy and living money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava; Hélio Oiticica para além dos mitos (Rio de Janeiro: CMAHO, 2016), em parceria com Barbara Szaniecki e Izabela Pucu; e Creative Capitalism and Multitudinous Creativity (Lanham: Lexington Books, 2015), também em parceria com Barbara Szaniecki.
O que a luta dos caminhoneiros nos deu? Que os que vivem de seu trabalho não querem pagar as contas de Temer e da Dilma e que o “fora Temer” do PT e seus puxadinhos é de mentirinha. Mais uma vez, a quase totalidade da esquerda se apavora diante dos movimentos de luta real e só não tem medo de roubar ou defender quem roubou.
Os caminhoneiros decretaram o fim do que sobrava do pacto de sustentação de Temer. O “pacto do pato da Fiesp” era esse: o governo Temer faz as reformas neoliberais e tem espaço livre para acabar com a Lava Jato, a esquerda fica desejando o golpe e os pobres e os trabalhadores pagam o pato! Em outros termos, a classe política salva a pele dela vendendo a nossa. Mesmo que a greve não tenha se consolidado como o levante que suas bases autônomas procuraram, esse pacto acabou. Da ponte para o futuro sequer sobrou a pinguela da qual falava o FHC, apenas um abismo.
Os grevistas afirmam que a economia não é contabilidade, mas economia política. Dizem também que a política não é pura racionalidade, mas criação de valores.
Contra a greve, governo, forças políticas e imprensa mobilizaram duas grandes argumentações: se trata de um locaute que toma os brasileiros reféns dos grevistas e há infiltrados oportunistas que querem dar à greve uma dimensão política.
A popularidade da greve, sua continuidade depois das amplas concessões que o governo fez mostra do contrário: foi um movimento autônomo e uma crítica à política da economia. É preciso termos uma dimensão real do estopim da crise. Esse não foi (apenas) o aumento do preço do diesel mas a impossibilidade dos caminhoneiros repassá-lo ao frete. Isso porque a terceira dimensão do “pacto do pato”, não aconteceu: não houve e não há retomada da economia e assim o management empresarial rigoroso (da Petrobras por exemplo) não tem como se sustentar socialmente. A economia é política não porque esse é o nome de uma disciplina, mas porque é uma mobilização social que acontece a cada instante e é com base nisso que se constitui a chamada “confiança”. A "confiança" não é apenas algo que releva dos mercados, mas também e sobretudo da sociedade, inclusive dos trabalhadores, por exemplos dos milhares de autônomos que depois nove dias de luta (29 de maio de 2018) se recusavam a voltar ao trabalho.
Os caminhoneiros nos mostraram que sem essa mobilização diária, nada funciona. Essa mobilização não é nem contabilidade financeira, nem uma servidão perene. Ao contrário, se trata de algo que todos os dias é renovado e para isso precisa de alguns níveis de liberdade, democracia, confiança, paz. É na ausência desses níveis que está a falta de produtividade e o chamado de "custo Brasil": como pode o Brasil ser um "custo" se é ele que todos os dias precisamos mobilizar? Quem é um custo é o sistema de comando e opressão que todos os dias suga o sangue dos pobres.
A greve foi então uma mobilização social de grande porte que associou as demandas econômicas à luta contra a corrupção (e a violência) que constitui o contexto imediato onde os caminhoneiros trabalham, entre estradas, pedágios, portos e carteis, furtos e assaltos: como não lembrar que a última operação judiciária contra Temer e cia envolve o decreto sobre portos?! Para os caminhoneiros, a queda do governo corrupto de Temer é uma condição para construir uma outra confiança, uma outra mobilização. Curiosamente, é esse potencial desdobramento que permitiria de reduzir a dimensão corporativa que está presente no acordo que o governo assinou na única lógica de se salvar. A virada política do movimento tem que ser saudada como extremamente positiva, justamente porque ela visava colocar no terreno a questão da confiança e só pode haver confiança por meio de uma radicalização da democracia. Mais do que isso, só pode ter retomada do crescimento se alguma dinâmica de confiança for restabelecida.
Mas, é claro que é aqui que se encontrou (e se encontra) o verdadeiro impasse: a demanda política de mudança se consolidou no pedido por “intervenção militar”. E esse pedido é muito mais amplo: os caminhoneiros apenas colocaram abertamente essa bandeira popular como lema de suas mobilizações.
Aqui temos pelo menos três questões:
(1) Do que a demanda por "intervenção militar" é o nome?
(2) De onde vem essas demandas?
(3) Como dialogar e/ou enfrentar esse posicionamento?
Do que a demanda por "intervenção militar" é o nome? A demanda popular por "intervenção militar" vem de longe e é o produto da insegurança civil que os pobres vivenciam por causa da guerra generalizada que os oprime: o sistema constitucional de segurança (polícias, magistratura e outros corpos estatais) funciona como um conjunto de dispositivos (milícias, máfias, lobbies, partidos, câmaras de vereadores etc.) que todos os dias e em todos os lugares oprimem e espoliam os pobres com taxas, pedágios, roubos, passagens etc. A demanda por mudança é mesmo demanda por uma "intervenção" e quem poderia, nesse quadro onde todos os aparelhos estatais funcionam como partes dos dispositivos de opressão, ser o ator de "intervenção"? A única instituição que tem força e ao mesmo tempo parece estar fora desse jogo: as Forças Armadas. A "popularidade" da intervenção no Rio de Janeiro é talvez emblemática dessa primeira dimensão. Se trata de uma demanda constituinte. Claro, uma demanda "paradoxal", pois nada que seja "demanda" é constituinte e o Exercito que está sendo legitimado por essa difusa demanda popular será o mesmo que reprimirá os caminhoneiros se isso vir a ser necessário para o restabelecimento da "ordem". Mas as lutas não são nem coerentes nem lógicas. O que importa é apreendermos por onde passam as linhas dos paradoxos e das contradições.
2) De onde vem essa demanda? Com certeza, ela é veiculada e propagada por forças de uma nova direita que são a expressão e um reflexo de um movimento global: desde Salvini até Trump, passando por Farange (Brexit) e Marine Le Pen. Mas, seu sucesso brasileiro tem uma origem mais especifica e diz respeito aos desdobramentos políticos, sociais e culturais do levante de junho de 2013. Em junho de 2013, o que parecia impossível se tornou prática multitudinária: critica do sistema de transportes que trata os trabalhadores pobres como gado e ocupação os templos da corrupção: Congresso, Assembleias Legislativas, Câmaras, Residência do Cabral no Rio etc. A reação do PT e da esquerda mais em geral foi reacionária: semear o medo para impedir a transição do levante do momento destituinte a processo constituinte. Se isso não evitou o desmoronamento do esquema de poder, conseguiu paralisar e esvaziar a esquerda. O "voto crítico" foi a base e o resultado desse sucesso nefasto do oportunismo corrupto do PT: é ele a fonte de multiplicação de narrativas falsas, como por exemplo essa do "golpe": mistificação que justamente a luta dos caminhoneiros torna evidente, pois nenhuma força de esquerda quis se aliar a um movimento que poderia realmente derrubar Temer. Só a direita autoritária apoia essas demandas destituintes, ao passo que essas se dão num terreno radicalmente democrático de horizontalidade. A esquerda não é contra a “intervenção militar”, mas apenas contra a intervenção contra ela: não é por acaso que todos os partidos de esquerda (e os movimentos sociais organizados) se manifestaram em favor do militarismo chavista, apesar da catástrofe social e econômica que é.
3) Como enfrentar essa demanda fica evidente com base no que dissemos acima: é somente dentro das lutas que o paradoxo pode ser "resolvido", só as lutas ensinam e transformam os homens e os valores. O paradoxo de uma demanda destituinte autoritária (intervenção militar) no meio de uma prática radicalmente democrática não deve ser ridicularizando (como a esquerda intelectual faz), mas valorizado em termos positivos, justamente reforçando as lutas como terreno de novas mobilizações: se a contabilidade nos oferece um sem numero de números das perdas geradas pela greve, a greve mostra uma produtividade incomensurável.
É nas lutas que os caminhoneiros podem descobrir que a "intervenção militar" que vai haver será contra a luta deles e que, na realidade, por trás dela não vem nenhuma luta contra a corrupção, mas o fim dos elementos de independência que permitiram a alguns promotores e a alguns juízes de romper o pacto mafioso e passar a prender dos "donos do poder".
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Greve e levante dos caminhoneiros: amanhã será maior! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU