02 Fevereiro 2017
Quinze dias, 133 presos mortos. Esse foi o saldo dos episódios de violência ocorridos dentro de presídios brasileiros, muitos deles ligados a uma guerra entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Família do Norte, que começou logo no primeiro dia de 2017 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus, e rapidamente se espalhou por outros estados, como Roraima, Rio Grande do Norte e Alagoas. Enquanto as imagens chocantes da violência eram transmitidas através da mídia para todo o Brasil, os governos estaduais e o Ministério da Justiça corriam para controlar e apresentar soluções para o que rapidamente passou a ser chamado de “crise do sistema prisional” brasileiro.
Crise? Não para a Pastoral Carcerária, entidade ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, em nota, criticou o fato de que 379 pessoas foram mortas violentamente dentro do sistema prisional brasileiro em 2016 sem que nenhuma “crise” fosse anunciada pelas autoridades. Para o coordenador nacional da Pastoral, Padre Valdir Silveira, não se trata de uma crise, mas de um projeto.
Em entrevista à André Antunes do portal EPSJV/Fiocruz, 01-02-2017, ele defende que a estrutura prisional dá sinais de colapso no país, e advoga que o combate à miséria e a desigualdade, e não o encarceramento em massa, deveriam ser o foco das políticas públicas voltadas para a redução dos índices de violência e criminalidade no país.
Eis a entrevista.
Em nota divulgada no dia 19 de janeiro, a Pastoral Carcerária defendeu que as mortes de presos são parte de um projeto, e não indícios de uma crise do sistema prisional no Brasil. Por quê?
Este é um projeto que o Brasil tem há 500 anos. Primeiro os índios, depois os negros e, hoje, o que sobrou são as camadas mais pobres. Hoje, quando se olha a história à distância, você condena os colonizadores que exterminaram os índios, como também condena os navios negreiros; mas, por outro lado, convive-se harmoniosamente com a população encarcerada em jaulas. E vemos isso com naturalidade, como a grande população também via com naturalidade exterminar índio, escravizar negros, até mesmo matar escravos como se fossem animais sem alma, sem dignidade. Então, continuamos da mesma forma até hoje. E esse número desumano vem crescendo assustadoramente. Nós não temos nenhuma reação sobre isso.
Os massacres de presos são uma prática sistemática no Brasil. Se você for voltando no tempo, são vários. Em 1986, aqui em São Paulo, 13 presos foram mortos; em 1992, no Massacre do Carandiru, foram 111 mortos; depois, em 2001, tivemos em São Paulo 29 unidades prisionais que se rebelaram; em 2002, na famosa Urso Branco [casa de detenção em Rondônia], 27 pessoas também foram assassinadas, foi até parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos; em 2003, em Manaus também houve várias rebeliões; no Rio de Janeiro, em Benfica, em 2004, 30 presos foram mortos; em 2006, em São Paulo, tivemos 74 presídios rebelados, morreram 564 pessoas nos chamados Crimes de Maio. Depois tivemos uma rebelião famosa no Pará em que morreram 95 pessoas entre 2010 e 2014; no Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, foram 97 mortes entre 2010 e 2014. No Paraná, que é um estado de que pouco se fala, tivemos 18 rebeliões em 2014; em 2016, em Boa Vista, Porto Velho, foram 18 mortes em presídios; em Rio Branco, Acre, em 2016, também houve rebeliões com três mortos; em Roraima, em 2016, 25 pessoas mortas; Ceará, que também pouco se fala, ano passado, em maio, foram 14 mortes.
E de onde vêm essas pessoas? O Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que foi contratado pelo Conselho Nacional de Justiça para fazer uma análise sobre a reincidência criminal no Brasil, chegou à conclusão de que entre os anos de 1938 e 2009 a população carcerária aumentou 83 vezes, enquanto a população total se multiplicou cinco vezes. E a grande maioria dessas pessoas vem dos bolsões de miséria, periferias, bairros mais pobres, onde não tem uma escola de qualidade, não tem faculdades, onde a saúde é muito precária também, onde o saneamento básico quase não existe. Nessas periferias, nessas favelas, quando alguém comete um delito, aí sim o Estado chega com todo um aparato para reprimir e jogar no sistema prisional caríssimo, para garantir que essa pessoa não evolua socialmente. Uma vez presa, ela não terá mais ascensão social enquanto viver.
A forma como o Brasil vai se organizando economicamente vai segregando as pessoas mais pobres para submeterem-se a um mercado de mão de obra inferior. Dados do Departamento Penitenciário Nacional mostram que a grande maioria dessa população é jovem, semianalfabeta e negra. Uma vez presa, é muito difícil ela conseguir emprego depois. Se conseguir, é um grande privilégio. Vai ter que se submeter a ser mão de obra mais barata e, principalmente, no mercado informal, não registrado, sem direitos trabalhistas. Então, vai ter que procurar uma forma de sobreviver nos trabalhos mais baratos da sociedade. É uma forma sistemática de você garantir essa massa para os trabalhos menos qualificados, com menos condições de garantias salariais, de assistência de emprego, nessas condições, para manter o quadro de exploração econômica que vivemos no país.
Qual é a responsabilidade do Estado na ascensão das facções criminosas que atuam dentro dos presídios e que estão no epicentro dos massacres ocorridos este ano?
As pessoas são presas e são jogadas pelo Estado nos presídios, abandonadas. São simplesmente jogadas dentro da unidade que fica a cargo de outros presos cuidarem; e lá dentro do presídio a lei não é cumprida. Quem sustenta os presos dentro dos presídios do Brasil, na sua grande maioria, são as facções criminosas. Aquilo que o Estado oficialmente deveria pagar, como material de higiene básica, saúde, a questão jurídica, o Estado abandonou. Então, o crime organizado paga o serviço que o Estado não realiza. Aumentou muito a necessidade das facções em todo o país. Porque você pode ver que em vários estados do Brasil o sistema prisional não dá as coisas básicas para os presos. Ou a família dá, e para quem mora longe, não tem família, é pobre, o crime organizado que sustenta essas pessoas presas.
O Estado comete várias faltas contra os presos e não é fiscalizado. Por exemplo, existe o chamado juiz corregedor, que tem que ir todo mês ao presídio ver se tem algo irregular: se existe superlotação, se existe preso doente sem medicamento, se existe cela sem esgoto, se existem pessoas abandonadas juridicamente. Quem deve tomar providência de imediato são o juiz corregedor e o Ministério Público. Ora, foram criados até órgãos como o Conselho Nacional de Justiça para fiscalizar o juiz que não cumpriu com as suas missões, suas obrigações, e fizeram os chamados mutirões. Eles vão lá e fazem isso, mas o Estado não dá continuidade e tudo volta a estar errado como antes. O Brasil, comprovadamente, tem mais de 40% de presos provisórios, que não tiveram acesso, não foram julgados ainda. O Amazonas, onde começou essa grande rebelião este ano, tem o maior índice do país: 67% da população não foi julgada, é preso provisório. Existem dados que mostram que em 37% desses casos, depois de julgados, ou a pessoa é inocente ou já cumpriu toda a pena.
Em 2011 passamos 40 dias no Amazonas, visitando cadeias, produzindo relatórios. Tudo foi para as autoridades do estado, para o Ministério Público, juiz corregedor, Vara de Execução Criminal, foi para o Tribunal de Justiça e também para a Defensoria Pública e secretário de estado e para o Ministério Público Federal, em Brasília. Todos os órgãos sabiam o que estava para acontecer lá. Em 2015, ainda, a Pastoral Carcerária mandou várias cartas para o judiciário de Manaus assinadas pelos presos, dizendo que iam ser mortos. Eu tenho uma carta dessas em mãos, assinada por 17 pessoas. Todas foram mortas. Pediram socorro e não foram atendidas. Por isso a Pastoral Carcerária é radicalmente contra construir mais presídios. Temos que fazer com que a lei seja cumprida para os pobres também que estão nos presídios.
E essa situação convive com um certo senso comum no país de que os presos possuem muitas regalias, em que se acusam os defensores de direitos humanos de passar a mão na cabeça de bandido. A partir da sua experiência no sistema prisional brasileiro, como vê essa convivência entre esse tipo de argumentação com a situação precária em que se encontram as unidades prisionais no país?
Quem administra as políticas públicas no lado econômico tem que criar sempre os chamados bodes expiatórios. Se há uma crise social, se há uma insatisfação, temos que sacrificar alguém. E o sacrifício aqui, sempre, todo o peso, a responsabilidade, vai cair sobre a violência individual de pessoa para pessoa, para não ser questionada a violência social, a violência econômica, a violência estrutural. Por isso os linchamentos em praça pública porque alguém roubou uma bicicleta, roubou um celular, roubou uma carteira. Isso se faz com todo apoio da sociedade. Então, é essa prática histórica muito antiga de você achar um bode expiatório para desviar atenção do foco mais importante, dos fatores que causam a miséria, a desigualdade social e garantem essa situação socioeconômica.
É interessante: eu já pessoalmente encontrei muitas pessoas com esse discurso de que bandido bom é bandido morto, que os presos têm regalias. Essas pessoas, uma vez que têm um familiar preso ou quando passam pela cadeia, o discurso modifica totalmente. Por exemplo, em São Paulo, tem ala para os presos especiais, que são agentes da própria polícia, delegados que estão presos, e eles falam: ‘hoje nos arrependemos de ter mandado alguém para o presídio, não imaginávamos que o presídio fosse o que ele é’. Quantas pessoas presas há também que, na rua, defendem pena de morte. Um dia desses um preso me disse uma coisa: “padre, eu sou uma pessoa que, lá fora, defendia a prisão, hoje eu vejo o que fazem conosco, eu nunca imaginei estar preso, eu estou preso, hoje mudou minha visão”. Então, quem diz que presídio é mordomia, eu convido essa pessoa para que visite os presídios uma semana comigo, que entre num presídio uma semana para conhecer a realidade. Somente isso, tenho certeza que a opinião dela vai inverter só nesse contato.
Em meio à repercussão do massacre, o Ministério da Justiça divulgou no início de janeiro o Plano Nacional de Segurança Pública, que, segundo o governo, traz entre suas principais propostas medidas visando à “modernização do sistema penitenciário e o combate integrado às organizações criminosas”. Qual é a sua avaliação sobre a proposta?
Olha, o que o governo fez foi dar continuidade aos projetos dos governos anteriores. Ele não modifica nada, só acentuou a repressão e o combate às drogas como algo mais forte que os governos anteriores. Quando nós sabemos que no país que mais usou a guerra contra as drogas, e vem usando, com maior empenho financeiro, que são os Estados Unidos, temos o maior índice de consumo de drogas do mundo. O programa é justamente aquilo que vai expandir a criminalidade e o aumento de encarceramento, que já vinha sendo feito em massa no país. É nessa linha o projeto do governo. Foi criada até uma comissão especial do governo federal, incluindo Ministério da Justiça, o STF, Depen, a OAB, e colocaram lá dentro a Pastoral Carcerária sem nos consultar. Nós não aceitamos participar dessa equipe, que vai totalmente na contramão do que acreditamos.
Por quê?
Nós somos a favor do fim do encarceramento. Uma das maiores causas de prisão no Brasil é a questão da Lei de Drogas. A maioria dos homens presos atualmente foi detida por envolvimento com o tráfico e também por problemas de dependência, tem muitos furtos e roubos por causa de droga. Diretamente por drogas são 30%, mas quando você soma furto e roubo, aí chega quase a 80%. Entre as mulheres, só pela prática de vender droga, são 60%. As mulheres que vendem nas esquinas de favelas, mulheres pobres, mães de família que vendem maconha aqui ou ali. Mas as drogas que mais matam no Brasil são as drogas lícitas. A mesma questão nos hospitais: com o que o país gasta mais? São as pessoas que causaram acidentes por drogas lícitas. Então, a Pastoral Carcerária luta pela descriminalização do usuário de droga e também pelo controle da venda pelo Estado. Se você pegar países que fizeram diferente, que apostaram na legalização, como Uruguai, Holanda, por exemplo, a reincidência criminal caiu, teve mês que quase zerou. A Holanda fechou 11 presídios, por não ter mais delinquência em termos de assalto, roubo e tudo mais.
Em 2013 foi lançada a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que reúne um conjunto de entidades e movimentos de defesa dos direitos humanos, entre eles a Pastoral Carcerária, e tem pautado a necessidade de ações estruturais para reverter o quadro de encarceramento em massa no Brasil, que hoje tem a 4ª maior população carcerária do mundo, com mais de 650 mil detidos. Quais as principais propostas dessa agenda?
Nós defendemos um novo modelo de justiça, a justiça restaurativa, que é um modelo que já vem sendo construído em vários países do mundo, e também no Brasil, ainda que timidamente. O que nós temos hoje é a justiça criminal, punitiva. Ela olha para o crime cometido no passado e pune sem nenhuma preocupação com o futuro, com as consequências que essa punição pode ter, tanto para o agressor e sua família quanto para a sociedade em geral. Por exemplo, a questão da lei de drogas: grande parte das mulheres presas são mães com filhos menores. Uma vez que elas são presas, o Estado não se responsabiliza por essas crianças, não está nem um pouco preocupado com isso. Então, você pune a mãe punindo toda a família, a punição estende-se a todos os menores daquela família. E a prisão punitiva não tem nenhuma preocupação com isso. A justiça criminal, punitiva, não deu certo, falhou.
A agenda também defende a vedação absoluta da privatização do sistema prisional. Por quê?
Vou dar um exemplo fácil de entender. Esse presídio de Manaus que se rebelou é privatizado, e era o presídio mais caro do país. Chegava quase a R$ 5 mil por preso, superava prisão federal. [Segundo o Ministério da Justiça, a média nacional é de R$ 2,4 mil por preso]. E lá, na reunião que eu tive com os familiares dos presos que morreram, eles contavam a luta que tinham para pagar um curativo, medicamentos. Até num caso de cirurgia, anestesia, eles tinham que pagar também. São pessoas pobres. Os funcionários quase sempre são pessoas contratadas sem experiência, sem concurso, nada; as privatizadas são onde paga-se menos ao quadro técnico e de agentes penitenciários no sistema prisional. A rotatividade desses funcionários é muito grande. A PPP [parceria público-privada] de Ribeirão das Neves [em Minas Gerais], que é defendida como um modelo para o país, só é modelo para quem não conhece. Eu estive lá como Pastoral Carcerária e encontrei três presos em greve de fome. Em 2013 tentamos conseguir os contratos entre governo e as empresas terceirizadas pela Lei da Transparência, mas não conseguimos, foi negado. Os Tribunais de Conta são coniventes com essa roubalheira toda. Presídio privatizado visa ao lucro, nunca ao compromisso social. E o presídio privatizado é inconstitucional. O Estado é que tem a responsabilidade de aplicar a pena, não pode atribuí-la a terceiros.
E existe alguma experiência brasileira que você considera modelo a ser seguido na questão prisional?
Por incrível que pareça, o que foi feito na saúde mental, com a Luta Antimanicomial. Seriam formas de lidar com o infrator, mas dentro da sociedade, sem excluí-lo do convívio social, do contato com a família. Isso é uma referência nacional. Agora, para mim, o que deu mais certo no Brasil foi a Casa de Detenção, o antigo Carandiru em São Paulo, que foi implodida e no seu lugar criaram um parque de diversão para a juventude e uma biblioteca. E está dando certo, muitos jovens usam, estão estudando e utilizando como área de lazer. Isso dá certo. Tem que colocar dinheiro na educação, oferecer educação de qualidade, investir nas áreas de miséria, na parte cultural. Quanto ganha um diretor de presídio, quanto ganha um policial militar e quanto ganha um professor de periferia, de escola pública? Quem tem a maior possibilidade de mudar a realidade, de combater a violência, é quem está na escola ensinando as crianças e adolescentes.
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‘Os massacres de presos são uma prática sistemática no Brasil’, afirma Padre Valdir Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU