Transição energética baseada em “minerais verdes” é um paradoxo ecológico – uma solução que se autodestrói. Entrevista especial com Robert Muggah

“Uma transição energética justa deve colocar comunidades no centro, e não tratá-las como obstáculos à extração e ao processamento de minerais”, adverte cientista político canadense. O risco central envolvido neste processo, pontua, é “o apagamento de culturas e sistemas de conhecimento que sustentam a Amazônia há milênios”

Foto: Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 09 Junho 2025

A disputa global por terras raras e territórios fundamentais para assegurar a transição energética limpa não se restringe aos países distantes que estão no centro dos conflitos políticos atuais. A corrida já começou na Amazônia brasileira e se materializa particularmente no Pará, que sediará a COP30 no próximo semestre. A transição energética baseada nos “minerais verdes”, como os recursos estão sendo chamados, numa inversão linguística que altera o significado das palavras para justificar a extração mineral num contexto de mudanças climáticas, está repleta de contradições. “Empresas estão buscando agressivamente licenças em áreas ricas em minerais, muitas vezes sobrepostas a terras indígenas e unidades de conservação. Estamos testemunhando o início de uma ‘corrida do ouro verde’, em que a urgência de combater as mudanças climáticas tem sido usada para justificar a extração de recursos em escala industrial em uma das regiões ecologicamente mais sensíveis do planeta”, declara Robert Muggah, na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. 

Neste mercado, pontua, a China tem atuado como um ator sistêmico que está remodelando o cenário extrativista na América do Sul. “Por meio de investimentos diretos e acordos de fornecimento de longo prazo, as empresas chinesas têm garantido lítio, cobre e cobalto em todo o continente. Esses acordos são frequentemente associados a projetos de infraestrutura, como rodovias, ferrovias e portos, que permitem o transporte mais rápido de minerais, mas frequentemente ignoram as salvaguardas ambientais e os processos de consulta local”, explica. 

Para Muggah, os problemas socioambientais ligados à transição energética não podem ser usados como justificativa para defender a velha matriz energética baseada em recursos fósseis. No entanto, as críticas à corrida extrativista, destaca o entrevistado, correm o risco de nos conduzir à falsa dicotomia de precisar escolher entre um ou outro modelo. “Não se trata de escolher entre dois modelos destrutivos, mas de repensar toda a nossa abordagem energética. Uma alternativa sustentável reside na redução da demanda por meio da eficiência energética, no investimento em economias circulares que reutilizem e reciclem minerais essenciais e na exploração de tecnologias menos invasivas, como energia fotovoltaica orgânica, hidrogênio verde e redes de energia localizadas”, sugere. Para ter sucesso, ressalta, "a transição energética deve ser impulsionada pela equidade".

Robert Muggah (Foto: Instituto Igarapé)

Robert Muggah é cientista político, formado pela Dalhousie University, mestre em Filosofia pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento da Universidade de Sussex e doutor em Filosofia pela Universidade de Oxford, ambas no Reino Unido. É cofundador e diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, entidade que propõe soluções para questões emergentes de segurança e desenvolvimento. Atuou no Departamento de Operações de Paz e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados e em outras agências internacionais. Também trabalhou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Banco de Desenvolvimento Latino-Americano e o Banco Mundial.  

Confira a entrevista.  

IHU – Como a corrida global por minerais estratégicos está afetando e pode afetar ainda mais a Amazônia?

Robert Muggah – A Amazônia está na vanguarda de uma corrida global por minerais essenciais para a descarbonização e tecnologias de energia limpa. Isso não é hipotético; já está se materializando por meio de milhares de aplicações de mineração somente na Amazônia brasileira, particularmente no Pará. Empresas têm buscado agressivamente licenças em áreas ricas em minerais, muitas vezes sobrepostas a terras indígenas e unidades de conservação. Estamos testemunhando o início de uma “corrida do ouro verde”, em que a urgência de combater as mudanças climáticas tem sido usadas para justificar a extração de recursos em escala industrial em uma das regiões ecologicamente mais sensíveis do planeta.

Existem oportunidades significativas se a mineração for conduzida de forma responsável, inclusiva e com respeito ao meio ambiente. No entanto, sem regulamentação adequada, essa corrida pode levar ao desmantelamento das proteções ambientais, à degradação ecológica e à agitação social. As contradições são gritantes: embora estes minerais possibilitem um futuro de baixo carbono, sua extração pode, simultaneamente, destruir as florestas que absorvem carbono da Amazônia e contaminar seus cursos d’água. Se for construída com base em práticas insustentáveis de mineração, a transição energética corre o risco de se tornar um paradoxo ecológico – uma solução que se autodestrói. Sem salvaguardas rigorosas, a Amazônia pode se tornar um dano colateral na busca por “tornar-se verde”. 

IHU – Quais áreas da Amazônia estão sendo contestadas devido à busca por minerais estratégicos para produção tecnológica e transição energética?

Robert Muggah – Atualmente, as zonas mais contestadas concentram-se no sudeste do Pará, incluindo regiões ao redor da Província Mineral de Carajás, da Floresta Nacional do Jamanxim e de Itaituba II. Essas áreas não são apenas ricas em minerais como níquel, cobre e (potencialmente) terras raras, mas também abrigam comunidades indígenas como os Xikrin, Kayapó e Munduruku. Em vários casos, as concessões de mineração chegam até as fronteiras dos territórios indígenas e correm o risco de violar proteções constitucionais e exercer enorme pressão sobre as comunidades e os ecossistemas locais.

Esses conflitos não são meramente regulatórios; eles são espaciais, econômicos e profundamente políticos. Quando florestas nacionais como o Jamanxim têm mais de 60% de seu território sob concessões de mineração e os territórios indígenas estão cercados por projetos de exploração, existe o perigo de a Amazônia ser tratada como uma zona extrativista em vez de um sistema vivo. Esses interesses sobrepostos, estatais, privados e estrangeiros, convergem com relativamente pouca consideração pelo consentimento local, muito menos pela sustentabilidade a longo prazo. A resultante colcha de retalhos de terras contestadas representa uma das crises ambientais e de direitos humanos mais urgentes da região.

IHU – Quais minerais raros encontrados no território amazônico são procurados por empresas estatais e multinacionais?

Robert Muggah – Sob a cobertura vegetal da Amazônia encontra-se um tesouro de minerais essenciais para a transição energética global: alumínio, cobalto, cobre, lítio, manganês, níquel, nióbio e elementos de terras raras como neodímio e disprósio. Esses recursos são essenciais para as tecnologias que alimentam veículos elétricos, painéis solares, turbinas eólicas e equipamentos militares. O níquel e o lítio são essenciais para o armazenamento de baterias e a eletrificação. O nióbio, por exemplo, é usado em supercondutores e ligas de aço e é abundante no Brasil, que detém mais de 90% das reservas globais conhecidas.

Embora esses minerais sejam tecnologicamente valiosos, sua extração de ecossistemas frágeis e biodiversos acarreta custos sociais e ecológicos significativos. A Amazônia não é apenas um depósito mineral; é o maior sumidouro de carbono do mundo e uma tábua de salvação para a estabilidade climática global. A pressa em extrair esses elementos sem salvaguardas adequadas reflete um profundo desequilíbrio na valorização dos serviços ecológicos em relação aos insumos industriais. Além disso, a riqueza mineral da Amazônia por si só não consegue atender à demanda global; a mineração deve ser acompanhada por uma mudança mais ampla em direção à reciclagem de minerais e à promoção dos princípios da economia circular.

IHU – Como a busca por esses minerais impacta e pode impactar ainda mais os povos que vivem na Amazônia?

Robert Muggah – Embora as evidências sejam parciais e fragmentadas, estamos aprendendo que os impactos da extração mineral sobre os povos indígenas e comunidades tradicionais têm sido severos. Dos Xikrin aos Yanomami, muitas comunidades relataram rios poluídos, declínio dos estoques pesqueiros e perturbações em seus modos de vida tradicionais. O caso da mina de níquel Onça Puma, perto do Rio Cateté, é revelador: ela foi repetidamente fechada devido a violações ambientais e, ainda assim, as operações continuam se aproximando das terras indígenas. Projetos de mineração frequentemente prosseguem sem consulta adequada, violando leis nacionais e convenções internacionais que exigem consentimento livre, prévio e informado.

Além dos danos ambientais, os projetos de mineração podem corroer a identidade cultural e a autonomia local. As comunidades indígenas são por vezes excluídas dos benefícios econômicos reais, mas arcam com todo o peso das consequências ecológicas e de saúde. Crianças adoecem por causa da água contaminada; territórios sagrados são cercados para exploração. A questão não é apenas a extração de recursos, mas também o apagamento de culturas e sistemas de conhecimento que sustentam a Amazônia há milênios. Uma transição energética justa deve colocar essas comunidades no centro, e não tratá-las como obstáculos à extração e ao processamento de minerais.

IHU – Quais as consequências e os impactos econômicos e socioambientais da presença chinesa na América do Sul, especialmente em termos de investimentos em infraestrutura e contratos de mineração no triângulo do lítio formado por Argentina, Chile e Bolívia?

Robert Muggah – A China não é apenas uma compradora de minerais essenciais, mas também um ator sistêmico que remodela o cenário extrativista da América do Sul. Por meio de investimentos diretos e acordos de fornecimento de longo prazo, as empresas chinesas têm garantido lítio, cobre e cobalto em todo o continente, particularmente no chamado “triângulo do lítio”, formado por Argentina, Bolívia e Chile. Esses acordos são frequentemente associados a projetos de infraestrutura, como rodovias, ferrovias e portos, que permitem o transporte mais rápido de minerais, mas frequentemente ignoram as salvaguardas ambientais e os processos de consulta local. As consequências sociais e ambientais desses investimentos liderados pela China estão aumentando. Por exemplo, na Argentina e na Bolívia projetos apoiados pela China têm sido criticados por drenar o abastecimento de água e minar os direitos dos povos indígenas à água.

No Brasil, o envolvimento da China é geralmente mais indireto, porém crescente, principalmente por meio de parcerias com empresas nacionais e investimentos em corredores logísticos. Embora, em teoria, esses acordos prometam desenvolvimento econômico, eles também frequentemente impõem custos ecológicos e fomentam a dependência da exportação de minerais brutos. Sem uma regulamentação regional mais forte, a Amazônia e os biomas vizinhos podem se ver envolvidos numa disputa geopolítica pelo domínio “verde”.

IHU – Em artigo recente, você menciona que o crime organizado também está se expandindo para áreas ricas em minerais valiosos, controlando tanto o território quanto o comércio de minerais. Quem são esses grupos, como operam e em quais partes da Amazônia estão avançando?

Robert Muggah – Há muito tempo redes criminosas exploram partes da Amazônia, mas sua recente mudança para minerais críticos marca uma evolução perigosa. Por exemplo, na Colômbia vimos como grupos dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e paramilitares estão controlando cadeias de suprimento de ouro e se dedicando à extração de tântalo e coltan. 

No Brasil, região do Tapajós, operações de mineração ilegal, cada vez mais apoiadas por cartéis poderosos, contaminaram rios com mercúrio, deslocaram populações indígenas e aumentaram a criminalidade violenta. Muitos desses grupos criminosos operam impunemente, auxiliados por autoridades locais corruptas e pelo isolamento logístico de territórios ricos em minerais.

Como resultado da crescente invasão criminosa, os limites entre mineração legal e ilegal estão cada vez mais tênues. Cooperativas de mineração, por vezes não registradas, são usadas como fachada para lavagem de materiais extraídos ilegalmente. Vimos grupos criminosos envolvidos em vários tipos de operações de mineração na Bolívia, Equador, Guiana, Peru e Suriname. Uma das áreas mais desafiadoras é o Arco Mineiro do Orinoco, na Venezuela, onde atores estatais e milícias criminosas alternadamente conspiram e competem pelo controle, alimentando o desmatamento e a violência. 

Essas operações não apenas degradam o meio ambiente, mas também enfraquecem o Estado de Direito, minam a governança local e contribuem para a instabilidade regional. A convergência entre a exploração mineral e o crime organizado deve ser tratada como uma ameaça à segurança transnacional, não apenas uma questão ambiental.

IHU – Como o governo brasileiro se posiciona em relação à corrida por “minerais verdes” na Amazônia brasileira? Quais são as consequências para o país?

Robert Muggah – O governo brasileiro está se posicionando como um fornecedor estratégico na corrida global por minerais essenciais para a transição energética. Por meio da formulação da Política Nacional de Minerais Críticos e Estratégicos (PNMCE), o Brasil visa alinhar a exploração mineral com a sustentabilidade ambiental e social. Essa política promove os princípios da economia circular, a transparência, a produção com valor agregado e a integração dos direitos indígenas e comunitários.

Paralelamente, importantes programas de financiamento foram lançados: uma Iniciativa de Minerais Estratégicos de 5 bilhões de reais (1 bilhão de dólares) e um Fundo de Minerais Críticos de um bilhão de reais via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), bem como uma parceria histórica com a mineradora saudita Ma’aden, focada em mapeamento e exploração geológica. Essas iniciativas refletem a intenção do país não apenas de exportar matérias-primas como também de se tornar um polo de processamento com valor agregado e autonomia estratégica nas cadeias de suprimentos minerais.

No entanto, esse posicionamento proativo não está isento de contradições. Embora o governo Lula tenha intensificado as operações contra a mineração ilegal em territórios indígenas como as terras Yanomami, imposto a rastreabilidade do ouro e negado centenas de pedidos de mineração ilegal, ele também apoiou ou tolerou medidas legislativas que enfraquecem as proteções ambientais. Mais notavelmente, o Senado brasileiro aprovou um projeto de lei em maio de 2025, chamado pelos críticos de “Projeto de Lei da Devastação”, que desmantela os principais procedimentos de licenciamento ambiental e acelera a aprovação de projetos, deixando de lado as avaliações de impacto e a consulta pública. 

Grupos ambientalistas alertam que isso pode colocar em risco mais de três mil áreas de conservação e expor 18 milhões de hectares de floresta à exploração desenfreada. O risco fundamental é que o Brasil, em sua ânsia de capitalizar a demanda por minerais verdes, possa comprometer sua liderança climática, seus compromissos com os direitos indígenas e sua integridade ecológica, transformando a Amazônia numa fronteira mineral em vez de um modelo para uma transição justa

IHU – Por um lado, os combustíveis fósseis são criticados; por outro, a transição energética baseada em extração mineral traz uma série de implicações socioambientais. Qual seria uma alternativa energética sustentável entre estes dois modelos?

Robert Muggah – A dicotomia entre combustíveis fósseis e minerais verdes é falsa. Não se trata de escolher entre dois modelos destrutivos, mas de repensar toda a nossa abordagem energética. Uma alternativa sustentável reside na redução da demanda por meio da eficiência energética, no investimento em economias circulares que reutilizem e reciclem minerais essenciais e na exploração de tecnologias menos invasivas, como a energia fotovoltaica orgânica, o hidrogênio verde e redes de energia localizadas.

Acima de tudo, para ter sucesso, a transição energética deve ser impulsionada pela equidade. Temos visto um retrocesso à “agenda verde” quando ela é de cima para baixo e não internalizada localmente. Isso significa garantir que seus custos e benefícios sejam distribuídos de forma justa e que os mais afetados, muitas vezes os mais marginalizados, tenham um lugar à mesa. As tecnologias devem ser avaliadas não apenas por sua pegada de carbono, mas também por seu impacto social e ecológico durante seu ciclo de vida. Sem uma visão baseada em sistemas, corremos o risco de replicar as injustiças da era dos combustíveis fósseis sob uma nova bandeira de energia “limpa”.

IHU – Como, a partir da Amazônia, o Brasil poderia contribuir para uma transição ecológica justa e sustentável?

Robert Muggah – A Amazônia claramente tem mais a oferecer do que minerais. Ela abriga as maiores florestas e sumidouros naturais de carbono do planeta. Ela detém a chave para soluções climáticas baseadas na natureza, bioeconomias sustentáveis e sistemas de conhecimento indígena que estão séculos à frente da extração industrial em termos de resiliência. Investir em florestas em pé, por meio de restauração, agrofloresta, mercados de carbono e créditos de biodiversidade, pode gerar retornos econômicos de longo prazo sem comprometer o equilíbrio ecológico.

Uma transição justa na Amazônia priorizaria a posse da terra para os povos indígenas, apoiaria a tutela da floresta e integraria o bioma às estruturas globais de sustentabilidade, sem reduzi-lo a um polo de recursos. A floresta não é um espaço vazio a ser preenchido com infraestrutura de mineração. É um sistema vivo que regula o clima do planeta e oferece caminhos para a inovação enraizada na harmonia, e não na extração. O futuro da Amazônia deve ser negociado com – e não apesar de – seus administradores.

IHU – Gostaria de acrescentar algo?

Robert Muggah – Sim. A corrida por minerais verdes deve nos forçar a confrontar verdades incômodas sobre o custo da descarbonização. Devemos nos perguntar: quem ganha, quem perde e quem decide? A Amazônia é muito mais do que um campo de batalha para interesses geopolíticos; é um teste para nossa capacidade de construir um futuro que valorize a vida em detrimento do lítio, a justiça em detrimento de cadeias de suprimentos just-in-time. 

A transição energética não pode ocorrer à custa dos direitos indígenas, da integridade ambiental ou da governança democrática. Se continuarmos no caminho atual, podemos chegar a um mundo de baixo carbono, mas que não é mais equitativo nem sustentável. Isso não é uma transição – é uma troca. E é algo com o que o planeta não pode arcar.

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