Novo Regime Climático. A natureza pode apontar caminhos para a humanidade. Entrevista especial com Aliny Pires

A partir das análises dos efeitos do aquecimento global nos ecossistemas aquáticos, pesquisadora observa que a “biodiversidade oferece soluções extremamente importantes” para lidar com esse problema

Foto: Pixabay

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos e Patricia Fachin | 20 Agosto 2021

 

O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, divulgado recentemente, deixa uma mensagem muito clara para a pesquisadora Aliny Pires: “estamos saindo de uma ordem de crise climática para uma lógica de emergência climática para tentar minimizar de alguma forma os impactos que estão por vir”. Por isso, na entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU através do envio de áudios via WhatsApp, defende ações mais do que urgentes. “O aquecimento influi nas interações entre as espécies, pois o contexto fisiológico, fenológico e de sua distribuição acaba afetando as interações e, consequentemente, o que as espécies fazem no ambiente, mudando as dinâmicas ecossistêmicas. Isso tudo tem impactos observáveis em diferentes escalas”, detalha, ao lembrar que a humanidade não passa incólume por todo esse processo.

 

Aliny destaca os pontos que considera mais importantes no relatório do IPCC, mas, a partir de seus estudos acerca da biodiversidade no meio aquático, alerta que precisamos “caminhar para duas estratégias em paralelo: diminuir a velocidade com que o clima muda, através da mitigação; e nos prepararmos para os impactos que virão, o que temos chamado de adaptação”. Isso porque, olhando somente para o meio ambiente aquático, por exemplo, tanto a falta quanto o aumento na intensidade das chuvas afetam todas as formas de vida no ambiente aquático. O ser humano pode sofrer com desequilíbrios extremos causados pelo desaparecimento ou mesmo mudança na atividade biológica das espécies. O efeito da seca sobre a biodiversidade e sua capacidade de prover benefícios para as pessoas pode ser muito pior do que não ter água para beber.

Assim, chama a atenção para uma saída em que a inspiração pode vir da própria natureza. “A biodiversidade oferece soluções extremamente importantes, que estão centradas em conceitos, como o de “adaptação baseada em ecossistemas” e “soluções baseadas na natureza”, que podem garantir uma maior resiliência da nossa sociedade, contemplando aspectos que, ao mesmo tempo, conservem a biodiversidade, nos protejam do clima e sejam capazes de promover bem-estar para as pessoas”, explica.

 

E o que fazer, na prática? Para Aliny, “passa por conversa, por diálogo, por trazer e ouvir a demanda de diferentes setores”. “Esse é um passo extremamente importante, capaz de produzir saídas e destravar futuros potenciais para o Brasil, visando garantir a conservação da nossa biodiversidade, a manutenção e proteção dos nossos recursos hídricos, produzir uma sociedade mais resiliente a mudanças climáticas sem abrir mão de desenvolvimento socioeconômico”, provoca.

 

Aliny Patrícia Flauzino Pires (Foto: Arquivo pessoal)

Aliny Patrícia Flauzino Pires é bióloga, com doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Seu principal interesse de pesquisa está em entender o papel da biodiversidade nos mais diversos contextos, incluindo processos e funções ecossistêmicas em ambientes aquáticos e para o bem-estar humano. Nos últimos anos, tem investigado qual o papel da biodiversidade em relação aos efeitos das mudanças do clima.

 

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que os resultados do relatório do IPCC divulgados recentemente nos indicam?

Aliny Pires – O documento traz luz e enfatiza muitos dos achados encontrados nos relatórios anteriores, só que apresenta isso sob duas perspectivas. Uma é em relação à contundência com que o ser humano de fato é responsável pelas mudanças climáticas que observamos. Isso já é algo que os relatórios anteriores traziam, mas dessa vez ficou ainda mais evidente a apresentação da atividade antrópica como algo importante na promoção mais explícita das mudanças climáticas, até mesmo na forma como é apresentada.

A outra perspectiva, que considero muito importante, é a velocidade com que as mudanças climáticas esperadas superam o que havia sido previsto. Hoje, o que sabemos em termos de impactos das mudanças climáticas é que limiares críticos inicialmente pensados como, por exemplo, o aumento de um 1,5 grau da temperatura média do planeta que poderia ser atingido na segunda metade do século, na verdade, tende a ocorrer antes disso, por volta de 2040. Isso vai causar uma série de efeitos que comprometem o funcionamento geral do planeta, bem como a vida de diversas espécies, inclusive a espécie humana.

 

 

A íntegra do relatório está disponível no site do IPCC

 

Se pudéssemos chamar a atenção somente para dois aspectos, diria que o relatório aponta para o impacto da atividade antrópica na mudança climática e o fato de ela ser urgente. Estamos saindo de uma ordem de crise climática para uma lógica de emergência climática para tentar minimizar de alguma forma os impactos que estão por vir.

 

 

 

IHU – Uma das conclusões do estudo é que em todos os cenários o planeta aquecerá 1,5ºC. Como esse aumento da média da temperatura terrestre impacta na biodiversidade do planeta?

Aliny Pires – Esse é um ponto extremamente importante, pois o IPCC produz esse relatório a partir de grupos de trabalho distintos e o que foi divulgado recentemente foi o Grupo de Trabalho 1, que explica um pouco o comportamento climático. Mas ainda teremos a divulgação dos impactos sobre as mudanças previstas para diferentes sistemas, inclusive para a própria biodiversidade.

Podemos pensar que o aumento de 1,5ºC parece pouca coisa. Mas isso afeta uma série de processos relacionados à biodiversidade que são muito importantes e que promovem uma série de efeitos em cascata. A importância de eventos indiretos do aquecimento global para a biodiversidade pode ser determinante para aquilo que observamos como efeito direto. Estas consequências, ao invés de serem diluídas a partir das diversas interações, na verdade, se potencializam. Como os organismos e a biodiversidade estão inseridos em uma rede intrincada de interações entre esses diversos componentes, acaba que cada um desses elementos é impactado de forma ainda mais potencializada.

 

 

De forma geral, o aumento da temperatura vai impactar aspectos relacionados à fisiologia e fenologia dos organismos, afetando o metabolismo e consequentemente todas as atividades biológicas, o que pode comprometer a persistência de algumas espécies. Afeta a distribuição dessas espécies na paisagem, que vão se ajustando a essas condições climáticas e, consequentemente, tendo suas populações alteradas no contexto da paisagem. Além disso, o aquecimento influi nas interações entre as espécies, pois o contexto fisiológico, fenológico e de sua distribuição acaba afetando as interações e, consequentemente, o que as espécies fazem no ambiente, mudando as dinâmicas ecossistêmicas. Isso tudo tem impactos observáveis em diferentes escalas, podendo alterar todo um bioma, por exemplo.

Então, as mudanças climáticas e esse 1,5ºC, que parece inofensivo, geram uma cadeia de eventos que afeta a biodiversidade de diferentes maneiras, comprometendo todo o funcionamento ecológico dos sistemas naturais.

 

 

 

IHU – Como os ecossistemas oceânicos devem se comportar neste contexto?

Aliny Pires – Os ecossistemas oceânicos também vão ser muito afetados por este aumento de temperatura. O que temos observado é que os ambientes terrestres sofreram um aquecimento mais acentuado do que os oceanos. Enquanto o relatório identificou um aquecimento nos oceanos em torno de 0,9ºC, nos ambientes terrestres esse valor ficou em 1,6ºC. Então, tem aí uma diferença, mas, ao mesmo tempo, os ecossistemas oceânicos sofrem de diferentes formas, porque o clima tem um papel fundamental nas correntezas, na recirculação de energia, na distribuição das massas de água dentro dos oceanos. Tudo isso tem um impacto grande, principalmente nas regiões costeiras, onde se espera uma mudança que afetará a costa e toda a diversidade que ocupa essa zona que é, caracteristicamente, muito rica.

Os oceanos vão sofrer muito com esse aquecimento. Sistemas mais sensíveis a essas modificações, como os recifes de corais, que abrigam uma biodiversidade, serão comprometidos com o aquecimento. O relatório brasileiro de biodiversidade e serviços ecossistêmicos, publicado em 2019, já apontava a mudança do solo como um dos principais vetores de perda de biodiversidade. Mas, a partir da década de 2030, estima-se que as mudanças climáticas serão os principais vetores de perda de biodiversidade no país. Isso é sobre a realidade brasileira, mas também fica evidente como uma realidade de todo o globo.

 

 

IHU - Qual a relação entre biodiversidade e aquecimento global? Como um aspecto age sobre o outro?

Aliny Pires – Costumamos tratar, especialmente na biologia, o impacto das mudanças climáticas para a biodiversidade, ou seja, como a mudança do clima, o aumento da temperatura, a mudança na distribuição das chuvas afetam a biodiversidade. Sabemos que os impactos operam de diferentes maneiras e podem ser catastróficos para a forma como a biodiversidade se organiza. Também discutimos muito o papel da biodiversidade, nesse contexto. Podemos falar do papel das florestas nativas como um componente importante para manter estoques naturais de carbono, evitando que as mudanças climáticas se intensifiquem. Aí, reiteramos o desmatamento como um vetor importante de aquecimento global, porque libera uma quantidade grande de gases de efeito estufa para a atmosfera.

Mas há outro aspecto importante da biodiversidade que tem sido tratado apenas recentemente: o papel que a biodiversidade tem como uma estratégia de adaptação às mudanças climáticas. Temos essa discussão anterior do impacto das mudanças climáticas para a biodiversidade, o papel que áreas de vegetação nativa possuem para garantir mitigação climática e, recentemente, temos tratado da importância da biodiversidade como uma estratégia de adaptação às mudanças climáticas.

 

 

Soluções que vêm da biodiversidade

Como o relatório do IPCC indica, as mudanças climáticas e seus impactos vão ocorrer e precisamos caminhar com duas estratégias em paralelo: diminuir a velocidade com que o clima muda, através da mitigação; e nos prepararmos para os impactos que virão, o que temos chamado de adaptação.

Nesse sentido, a biodiversidade oferece soluções extremamente importantes, que estão centradas em conceitos, como o de “adaptação baseada em ecossistemas” e “soluções baseadas na natureza”, que podem garantir uma maior resiliência da nossa sociedade, contemplando aspectos que, ao mesmo tempo, conservem a biodiversidade, nos protejam do clima e sejam capazes de promover bem-estar para as pessoas.

 

 

IHU – Como uma biodiversidade aquática mais rica contribui para a vida humana no planeta?

Aliny Pires – A biodiversidade tem papel fundamental para o bem-estar das pessoas. A manutenção da biodiversidade é capaz de prover uma série de benefícios, muitos serviços centrados na lógica do que chamamos serviços ecossistêmicos ou contribuição da natureza para as pessoas, e a biodiversidade aquática não foge a essa regra. Pelo contrário, diria que tem papel ainda mais fundamental na manutenção da qualidade de vida no planeta.

Se imaginarmos que a relação entre natureza e pessoas passa pela importância de diferentes elementos, a água talvez seja o elemento que mais facilmente dê a noção da importância que a conservação da biodiversidade possui para o nosso bem-estar. Quando falta água, quando ela chega com má qualidade ou quando temos um ecossistema aquático próximo de onde vivemos que não se apresenta em uma condição ambiental adequada, nós percebemos isso facilmente.

Essa relação do ser humano com a biodiversidade aquática é fundamental, à medida que podemos pensar esta inter-relação desde os organismos que ocupam os ambientes aquáticos até os próprios ecossistemas, como rios, riachos, lagos, lagoas, reservatórios artificiais e naturais. É da água e da biodiversidade aquática, falando dos ecossistemas e das espécies que ocupam esse ecossistema, que diversas famílias vivem. No relatório que publicamos em 2019 sobre a importância da água como fonte de biodiversidade, serviços ecossistêmicos e bem-estar humano no país, chamamos atenção para as diferentes dimensões de importância que a biodiversidade aquática possui.

 

 

Seja como uma fonte na manutenção da qualidade dos ecossistemas que, em última instância, vão garantir a chegada da água em nossas casas e nas indústrias através dos recursos hídricos; seja na manutenção da biodiversidade aquática enquanto ecossistema protegendo as espécies que ocupam esses ambientes e que muitas vezes são utilizados como fonte de proteína, como no caso da região Norte, em que os peixes são a principal fonte proteica, por meio de um sistema extremamente equilibrado. A manutenção desses sistemas e a relação saudável entre os componentes da biodiversidade são fundamentais para que não sejamos ameaçados por um desequilíbrio causado por nós mesmos.

Além disso tudo, a biodiversidade aquática tem um papel importante como patrimônio cultural, pois várias famílias estão atreladas à manutenção dessa biodiversidade aquática. Sabemos que comunidades de pescadores vivem e trazem um conhecimento grande em relação ao funcionamento desses sistemas, pois têm um modo de vida atrelado à manutenção dessa biodiversidade, de modo que ela é importante de diferentes maneiras, por meio da manutenção de recursos hídricos e da biodiversidade, mas também, ressalto, como patrimônio cultural.

 

 

IHU – Que efeitos já podemos constatar no que toca à relação entre biodiversidade e água devido ao novo regime climático?

Aliny Pires – Diversos estudos têm trazido informações sobre como a mudança no regime climático tem impactado as formas de vida. No caso dos ambientes aquáticos, é importante chamar atenção para, além do aumento da temperatura, a questão da distribuição das chuvas, pois muitos ambientes aquáticos são exclusivamente mantidos pela água da chuva. Assim, a alteração na distribuição de chuvas pode causar impacto grande tanto na biodiversidade e no funcionamento desses ecossistemas quanto na forma como o ser humano utiliza a água contida nesses ambientes que, em última instância, também vai afetar a biodiversidade.

Temos, atualmente, uma política nacional de recursos hídricos que privilegia o uso da água pelas pessoas. Assim, há um foco na manutenção e bem-estar das pessoas que vai ser sempre priorizado em relação a outros usos da água. A grande consequência é que, com a intensificação e a mudança nesse regime climático, o impacto que o homem causa ao usar esse recurso natural se torna cada vez mais importante para afetar a biodiversidade aquática.

E isso é um primeiro impacto. Quando faltar água, vamos priorizar o uso para a população humana, o que, em última instância, vai afetar diretamente a biodiversidade contida nesse sistema. Consequentemente, uma série de efeitos negativos acontecerão em cascata, comprometendo até mesmo nosso bem-estar. Essa capacidade do ser humano de não pensar no médio e longo prazo tem impacto grande no que podemos esperar para a relação entre biodiversidade, água e o uso humano.

 

IHU - Considerando o atual cenário de aquecimento global, é possível constatar pontos de não retorno na questão da água e da biodiversidade?

Aliny Pires – Acabamos falando dos pontos de não retorno para sistemas terrestres e pouco é discutido em relação aos ambientes aquáticos. Nesse sentido, as mudanças climáticas têm uma forma de impactar o sistema aquático que é bem peculiar. Primeiramente, o aumento da temperatura atinge todos os sistemas, afetando processos e a própria atividade biológica nos ambientes aquáticos. O impacto na distribuição das chuvas também pode comprometer de forma ainda mais grave o funcionamento dos ambientes aquáticos. Muitos ambientes, como eu disse anteriormente, são mantidos exclusivamente pela água da chuva. Se a distribuição da precipitação em determinados territórios é alterada, pode ocorrer a supressão inteira de um ambiente aquático. Isso, sem sombra de dúvida, afeta e compromete a capacidade desse sistema de lidar com o evento de seca.

Alguns organismos aquáticos possuem uma capacidade de resistir a esses eventos de seca e podem retomar o ambiente assim que houver um retorno da precipitação, mas, de forma geral, o comprometimento é enorme. Temos um trabalho no qual tentamos simular como as mudanças climáticas poderiam afetar a produtividade primária dos ambientes aquáticos e conseguimos identificar que, em determinados momentos, ocorre uma mudança total no funcionamento do sistema. Isso porque, à medida que se reduz a quantidade de água, ou seja, quando se reduz o ambiente aquático, ocorre um aumento da concentração de nutrientes que favorecem uma mudança para um estado de eutrofização desses ambientes. E nem sempre vai ser fácil retornar isso a um estado anterior, podendo comprometer a biodiversidade do sistema, bem como o uso humano desses ecossistemas.

 

IHU – De que maneira a ausência de água e o aumento dos períodos de seca alteram o regime de biodiversidade?

Aliny Pires – Essa questão tem relação com a minha resposta à pergunta anterior. A mudança no regime de chuvas talvez seja, dentro desses componentes de mudança climática, aquela que possui o impacto mais drástico para o funcionamento dos ambientes aquáticos. É fundamental entendermos como os ambientes aquáticos vão se comportar diante desses eventos. E podemos falar da intensidade e duração de eventos de seca, como também de eventos de inundação.

Pensando um pouco nessa questão da ausência de água em períodos de seca, ela pode levar até à supressão de um ambiente. Para entender isso de forma mais explícita, imaginemos um Brasil em que tiramos toda a Amazônia, toda a vegetação que ocupa esse território. O que pode acontecer com as espécies que estão ali? Para onde elas vão? É a mesma lógica em relação ao ambiente aquático. Se vamos reduzindo o ambiente aquático, se vamos suprimindo até um ponto crítico em que se tem o colapso de uma série de processos ecológicos, levando, inclusive, à seca desse ambiente aquático, podemos ter uma perda de espécies que são extremamente importantes, com uma série de consequências, inclusive, ocasionando extinções locais.

Como disse antes, alguns organismos possuem estratégias para lidar com esse evento de seca, alguns ambientes aquáticos já possuem uma dinâmica que traz essa característica de período de seca e períodos de cheias, mas isso tudo é restrito a uma parcela pequena da biodiversidade. Uma grande parte da biodiversidade aquática depende de um ambiente minimamente ocupável, e para isso muitos ambientes aquáticos precisam das chuvas.

 

 

IHU - Neste contexto, que políticas ambientais e que práticas sociais precisariam ser tomadas, se não para reverter o quadro, para frear as mudanças?

Aliny Pires – Para lidar com esses problemas, políticas ambientais que visem entender esses múltiplos usos dos ambientes aquáticos diante das mudanças climáticas são fundamentais. Sabemos hoje que a ciência pode contribuir na definição das melhores estratégias para lidar com os impactos das mudanças climáticas, promovendo a conservação da biodiversidade e, através desse mecanismo, trazer adaptação às mudanças climáticas e bem-estar às pessoas. Isso tudo integrando, dentro de uma única intervenção, benefícios que têm aspectos tanto ambientais, que atendem à demanda da mudança climática, quanto aspectos relacionados a contextos sociais. Nesse sentido, é urgente e fundamental a incorporação de soluções baseadas na natureza para atender a essa demanda.

Um pouco antes do lançamento do último relatório do IPCC, o IPCC e a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos - IPBES produziram um documento em conjunto para acoplar a agenda de conservação da biodiversidade e adaptação e mitigação climática. Tive a oportunidade de ser uma das 50 autores desse documento, que foi publicado no início de junho. Basicamente, a grande solução e a estratégia de melhor custo-efetivo, que traz o maior número de cobenefícios, o que atende tanto à demanda da biodiversidade quanto à da agenda climática e aspectos sociais, é a incorporação de soluções baseadas na natureza dentro das políticas públicas para o clima.

Esse é um ponto para o qual gostaria de chamar a atenção: a incorporação de soluções baseadas na natureza pode trazer muitos benefícios e isso já tem sido percebido no Brasil. Recentemente, montamos um grupo de instituições chamado de Aliança Bioconexão Urbana, que busca tratar da importância das soluções baseadas na natureza para as cidades. Ele conta com a BPBES da qual sou uma das coordenadoras, e diversas fundações, como a Fundação Grupo O Boticário, o Pacto Global, o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, CGEE, ICLEI, WRI e TNC – Brasil.

 

 

IHU – Particularmente no que toca à realidade brasileira, quais são os desafios mais urgentes na relação água-biodiversidade? Como superá-los?

Aliny Pires – O Brasil é um dos países mais biodiversos do mundo, ao mesmo tempo que também possui a maior porcentagem de águas superficiais em seu território. Essa noção de que somos ricos, exuberantes, tanto em termos de biodiversidade como em recursos hídricos, pode sugerir que esse não é um problema nosso, mas, na verdade, esse problema é mais do que nosso. Esse ativo nacional pode ser uma mola propulsora de desenvolvimento socioeconômico do país. Abrir mão desse ativo e negligenciar o potencial que ele tem para as transformações que esperamos para a sociedade brasileira é minimamente irresponsável, para não dizer outras coisas.

Se tivesse que chamar a atenção para uma ação urgente que trata especificamente tanto da biodiversidade quanto da água e do clima, é a necessidade de colocar essas agendas dentro de ações que atuem conjuntamente. Já chamei atenção sobre a importância da discussão entre o IPCC e a IPBES para produção de um documento no acoplamento das agendas de biodiversidade e clima para informar e propor soluções que integrem múltiplos benefícios, e o mesmo deve acontecer no país. Temos que rever essa política ambiental que traz essa perspectiva de longa data dentro uma lógica extremamente setorial e conseguir integrar mais essas agendas que podem trazer soluções que revelem benefícios para todos os setores.

 

 

Isso passa por conversa, por diálogo, por trazer e ouvir a demanda de diferentes setores. Esse é um passo extremamente importante, capaz de produzir saídas e destravar futuros potenciais para o Brasil, visando garantir a conservação da nossa biodiversidade, a manutenção e proteção dos nossos recursos hídricos, produzir uma sociedade mais resiliente a mudanças climáticas sem abrir mão de desenvolvimento socioeconômico.

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

Aliny Pires – Acho importante deixar um convite aos leitores para acessarem o trabalho que está sendo desenvolvido por setores da sociedade civil que estão dedicados a lidar com a questão climática, da biodiversidade, voltados ao acoplamento dessas agendas e dos impactos das nossas ações para os ambientes aquáticos. Há um ativismo extremamente importante no Brasil, que inclui a juventude e diferentes segmentos da sociedade e é importante que a população esteja participando desse processo. É preciso usar essa força e essa capacidade tão típica do Brasil para fazer as transformações de que necessitamos em nossa sociedade.

Eu citei algumas entidades como a BPBES, as instituições que fazem parte da Aliança Bioconexão Urbana, as universidades, entidades do terceiro setor, etc. É importante unir as instituições que não abriram mão da pauta ambiental para fazer as transformações que a sociedade brasileira precisa. Nesse sentido, é cada vez mais importante que esse processo de engajamento da sociedade como um todo ocorra, principalmente quando temos um cenário em que o governo pode não atuar explicitamente dentro dessas pautas. Por isso somamos forças às iniciativas que já vêm fazendo a diferença há muito tempo.
 

 

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