A seguir, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, o pesquisador Roberto Andrés, o cientista social Rudá Ricci e o jornalista Moisés Mendes comentam os desdobramentos da crise política
As denúncias do servidor público Luis Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, ao Ministério Público Federal, de ter sofrido "pressão" para assinar o contrato da compra da vacina indiana Covaxin, e as farpas trocadas entre seu irmão, o deputado federal Luis Claudio Miranda (DEM-DF), e o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), tensionam ainda mais a crise política e reacendem a discussão sobre a possibilidade de impeachment do presidente Bolsonaro, caso as irregularidades nos contratos da compra da Covaxin sejam comprovadas.
Na avaliação do sociólogo Luiz Werneck Vianna, os acontecimentos recentes deixaram o governo “mais débil”. Entretanto, afirma, “não estou vendo risco imediato de impeachment”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele diz que o governo ainda tem chances de vencer as eleições presidenciais de 2022, mas não conseguirá se reproduzir além disso. O mais urgente no momento, pontua, é a construção de uma “frente amplíssima”, capaz de “organizar, reaglutinar e apaixonar a população em torno de uma ação comum”. As ruas são uma via, sugere: “A última manifestação teve um caráter amplo, não foi partidária, mostra por onde se pode ir e por onde se deve avançar”.
Roberto Andrés ressalta que "para o governo cair há grandes rochedos a serem transpostos. O maior deles é o grande apoio parlamentar que o governo conquistou na Câmara, através da farta distribuição de orçamento (e de orçamento secreto, o Bolsolão) para deputados da velha direita fisiológica, o grupo chamado de Centrão". Em entrevista concedida por e-mail, ele observa que a "retomada econômica pode beneficiar Bolsonaro", que "mesmo no pior momento da pandemia, não perdeu seus 25% de apoio (o que é bastante, indicando um piso alto)". Apesar de as manifestações do dia 19 de junho terem sido maiores e mais diversas do que a realizada no mês passado, Andrés destaca que "ainda não é ‘todo mundo contra Bolsonaro’", mas "manter-se nas ruas e na ofensiva contra o governo, ainda que não for para derrubá-lo, pode ser fundamental para buscar evitar que a parte volátil do eleitorado – o terço intermediário – passe a apoiar Bolsonaro em um contexto de melhora econômica após o fim da pandemia".
Rudá Ricci, em entrevista concedida por mensagens de texto via WhatsApp, reconhece o peso das movimentações da semana, mas ainda acha cedo para embarcar nessa ideia de ‘queda da República’ bolsonarista. “Porque as principais forças oposicionistas não desejam passar o bastão para Mourão. Se o vice-presidente assume, retira parte do potencial da candidatura de Lula”, justifica. Para ele, “vivemos uma espécie de movimento circular: as mobilizações de rua exigem o “Fora Bolsonaro”, o campo lulista procura se apresentar como portador da procuração das ruas, empresários procuram viabilizar a terceira via e Arthur Lira mata no peito e procura retirar mais vantagens do governo federal, chantageando com a possível abertura da apreciação do pedido de impeachment”. E por isso sugere que, depois das mobilizações das ruas, chega a hora da negociação. “A partir de agora, as lideranças dessas mobilizações precisam vir a campo para negociar a mudança do país. Sem isso, podemos retornar à situação de 2013 em que tantos saíram às ruas e nada foi negociado”, pontua.
Para o jornalista Moisés Mendes, “Bolsonaro derreteu”. “O Centrão saltará fora quando se sentir em prejuízo por apoiar um governo perto do fim, e os militares são imprevisíveis e inconfiáveis. Os empresários e o que se chama genericamente de mercado, mesmo silenciosos, dão sinais de que já saltaram fora”, observa, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos, ontem à noite, ainda quando acompanhava a sessão da CPI no Senado. Além disso, observa que “Bolsonaro não tem apoio explícito do poder econômico, é inimigo da grande imprensa, perdeu boa parte do que seria sua base social de raiz (especialmente os ricos e ressentidos de classe média e boa parte dos evangélicos) e aparece muito mal nas pesquisas”.
Além disso, Moisés ressalta que as manifestações de rua parecem estar ganhando peso. “É possível derrubar um governo fazendo um ato por mês? Claro que não. O Brasil tenta retomar as manifestações de rua como país retardatário”, sopesa. “O dado relevante é que as duas manifestações de maio e junho tiveram ampla participação dos jovens. Mas o que explica a apatia nas universidades? As novas manifestações marcadas para 24 de julho podem dizer se avançaremos em quantidade e vitalidade ou se continuaremos no mesmo patamar”, acrescenta.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Roberto Andrés é professor na Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutorando em História das Cidades na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU-USP. Atualmente é pesquisador visitante na Universidade de Estudos de Florença, na Itália. É editor da revista Piseagrama, pesquisador do grupo Cosmópolis e escreve quinzenalmente sobre cidades no jornal O Tempo. É revisor do Journal of Public Spaces e membro da Rede de Inovação Política da América Latina. Foi pesquisador da Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais e é sócio-fundador do Instituto Maria Helena Andrés.
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, escreve para os jornais Extra Classe, DCM e Brasil 247. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Porto Alegre: Editora Diadorim, 2016). Foi colunista e editor especial do jornal Zero Hora, no Rio Grande do Sul.
IHU On-Line - A "queda da República" está próxima?
Luiz Werneck Vianna – Não sei (risos). Não dá para prever. Neste país não dá para prever nem o passado, porque muda tudo. Com toda essa situação, o governo se tornou mais débil. Não estou vendo risco imediato de impeachment. Pode ser que as coisas avancem de forma imprevisível, porque a audiência do deputado federal [Luis] Miranda na CPI é hoje à tarde [25-06-2021]. Não sei o que vai se passar lá. O fato é que a declaração bombástica de Onyx Lorenzoni se demonstrou falsa, apenas um recurso de intimidação patético, e que hoje deve ser desmoralizada. Agora, para a queda iminente do regime, não creio que sejam essas as condições.
Werneck Vianna (Foto: Acervo IHU)
O que dá para saber é que este regime não se reproduz e está condenado a ter uma sobrevida com as eleições, mas, dificilmente, depois delas. Mesmo que vença as eleições de 22, é um fim de linha. O governo perdeu todas as propostas e todo o seu ímpeto não só por causa da pandemia, mas porque suas políticas eram desastrosas. Políticas desastrosas levam, inevitavelmente, ao desastre.
Roberto Andrés - O dia 23 de junho, véspera de São João, foi de fogaréu no governo. As entrevistas do deputado – governista – Luís Miranda para a imprensa deram força aos indícios de corrupção no contrato de compra da vacina da Covaxin. A resposta do governo, como costuma ser, através da entrevista do Onyx Lorenzoni, foi colocando mais lenha na fogueira. Com um discurso agressivo, Lorenzoni cumpriu a tradição das boas máfias e ameaçou o denunciante. Esse é o movimento público – não se sabe que tipo de costuras estão acontecendo nos bastidores.
Roberto Andrés (Foto: Ricardo Machado | IHU)
O caso da Covaxin tem grande potencial simbólico, porque liga os pontos. Se comprovada a denúncia, trata-se de um presidente que foi avisado da corrupção na compra de vacinas dentro do seu governo e que não fez nada. Conectando isso com a inação do governo na compra da vacina da Pfizer, chega-se à conclusão de que o governo atrasou a compra da Pfizer com a desculpa de que ela era muito cara (R$50), e se dedicou à compra da Covaxin por R$80 para desviar dinheiro público. Como os primeiros lotes da vacina da Pfizer chegariam já em dezembro de 2020 e a Covaxin nunca chegou, a suspeita de corrupção passa a ter relação direta com a falta de vacinas e as milhares de mortes decorrentes.
Tudo isso abriu o maior flanco de enfraquecimento do governo Bolsonaro desde o seu início, já que vem encadeado a uma série de fatores: as 500 mil mortes, que cada vez mais gente relaciona com a má gestão de Bolsonaro; a CPI da Covid, que tem tido um papel relevante, ainda que com altos e baixos, em pautar o debate público sobre as omissões do governo; o retorno de Lula ao jogo eleitoral, pontuando bem nas pesquisas e representando uma alternativa real de vitória sobre Bolsonaro em 2022; as duas manifestações de oposição, que demonstraram força; e, agora, uma denúncia grave de corrupção, vinda de uma apuração do Ministério Público Federal - MPF e de um deputado da base aliada.
Agora, tudo isso significa que a queda da República está logo na esquina? Não, infelizmente. Para o governo cair há grandes rochedos a serem transpostos. O maior deles é o grande apoio parlamentar que o governo adquiriu na Câmara, através da farta distribuição de orçamento (e de orçamento secreto, o Bolsolão) para deputados da velha direita fisiológica, o grupo chamado de Centrão.
Rudá Ricci – Não acredito, porque as principais forças oposicionistas não desejam passar o bastão para Mourão. Se o vice-presidente assume, retira parte do potencial da candidatura de Lula – a candidatura que mais se firma como vitoriosa em 2022, segundo as últimas pesquisas divulgadas. Neste caso, vivemos uma espécie de movimento circular: as mobilizações de rua exigem o “Fora Bolsonaro”, o campo lulista procura se apresentar como portador da procuração das ruas, empresários procuram viabilizar a terceira via e Arthur Lira mata no peito e procura retirar mais vantagens do governo federal, chantageando com a possível abertura da apreciação do pedido de impeachment. Na medida em que o governo se desfaz, Lula e Arthur Lira crescem.
Rudá Ricci na Unisinos Porto Alegre em 2019 (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Enquanto isso, os irmãos Miranda prometem uma bomba que será, segundo dizem, o início do fim do governo federal. Essa ofensiva, a liberação política de Lula pela justiça brasileira, as pesquisas de intenção de votos, a prisão e perseguição de expoentes do bolsonarismo e a sequência de manifestações “Fora Bolsonaro” criam uma “tempestade perfeita” que poderá caducar o script que citei acima.
Moisés Mendes – Bolsonaro tem hoje apenas o suporte do Centrão e dos militares. O Centrão saltará fora quando se sentir em prejuízo por apoiar um governo perto do fim, e os militares são imprevisíveis e inconfiáveis. Os empresários e o que se chama genericamente de mercado, mesmo silenciosos, dão sinais de que já saltaram fora. Bolsonaro não tem apoio explícito do poder econômico, é inimigo da grande imprensa, perdeu boa parte do que seria sua base social de raiz (especialmente os ricos e ressentidos de classe média e boa parte dos evangélicos) e aparece muito mal nas pesquisas. Bolsonaro derreteu. O problema está nas indecisões das elites e da própria esquerda, que não sabe o que poderia ganhar hoje com o impeachment de Bolsonaro.
Moisés Mendes (Foto: Famecos - PUCRS)
IHU On-Line - Que avaliação faz das manifestações que ocorreram no último final de semana contra o presidente? O que elas indicam?
Luiz Werneck Vianna – As manifestações deram uma demonstração de vigor e estão indicando que as próximas serão ainda mais intensas. O caminho para derrotar esse regime é este mesmo: as ruas, porque a operação de levar o Centrão para dentro do governo blindou o presidente. Pelo parlamento, dificilmente passará um impeachment. Este é o pior parlamento da história da República.
As manifestações de 19 de junho foram maiores e mais diversas que as de 29 de maio, e isso é importante: aconteceram em mais cidades, com maior número de pessoas e maior amplitude do espectro político - com a presença de movimentos de centro, como o movimento Acredito, e figuras da centro-direita, como Roberto Freire. Ainda não é "todo mundo contra Bolsonaro", mas já é um passo adiante.
As manifestações têm papel fundamental de manter pressão no governo e de disputar a pauta política. Seja qual for o desfecho do governo Bolsonaro – se é que ele terá um desfecho nos próximos anos –, o que é certo é que o processo não será fácil. A retomada econômica pode beneficiar Bolsonaro e ele, mesmo no pior momento da pandemia, não perdeu seus 25% de apoio (o que indica um piso alto). Manter-se nas ruas e na ofensiva contra o governo, ainda que não for para derrubá-lo, pode ser fundamental para vencê-los nas urnas.
As ruas são importantes também como forma de cura, como comentei no Twitter. A pandemia deixou as pessoas em luto pela perda de familiares e amigos, mas também entristecidas e enfraquecidas pela dureza de toda a situação. No encontro com os outros, a melancolia perde força e o protesto acaba por ser uma forma de superação do luto. Manuel Castells escreve que "o big bang de um movimento social começa quando a emoção se transforma em ação". Ele argumenta que os encontros presenciais nas ruas são capazes de converter medo em entusiasmo, que desemboca na ação. Após um ano e meio de pandemia, esse movimento se dá com corpos exauridos, atomizados e estressados. Converter medo em entusiasmo é importante para a disputa política, mas também para nós mesmos, para a saúde emocional de cada um.
Rudá Ricci – Que elas já se tornam irresistíveis. Que são muito maiores que as manifestações bolsonaristas. Que os organizadores conseguiram gestar uma articulação de mais de 600 entidades que há muito não se via.
Acontece que, a partir de agora, as lideranças dessas mobilizações precisam vir a campo para negociar a mudança do país. Sem isso, podemos retornar à situação de 2013 em que tantos saíram às ruas e nada foi negociado, gerando a continuação da ordem política. Mais: as manifestações precisam incluir Arthur Lira no seu radar ou a “boiada” continuará passando, como é o caso do PL 490 que altera toda garantia de existência da vida indígena no nosso país.
Moisés Mendes – Tivemos duas grandes manifestações até agora. Parece pouco, mas há sinais de que em alguns meses podem crescer e até ter uma sequência menos esparsa. É possível derrubar um governo fazendo um ato por mês? Claro que não. O Brasil tenta retomar as manifestações de rua como país retardatário.
Por que não acontecem aqui as manifestações que acontecem ou aconteceram no Chile, Equador, Colômbia, Peru? É uma questão a ser analisada mais adiante. A ressaca de 2013 e o golpe de 2016 podem ser parte da explicação. O dado relevante é que as duas manifestações de maio e junho tiveram ampla participação dos jovens. Mas o que explica a apatia (desde muito antes da pandemia) nas universidades? As novas manifestações marcadas para 24 de julho podem dizer se avançaremos em quantidade e vitalidade ou se continuaremos no mesmo patamar.
IHU On-Line - O que muda no xadrez político, e na correlação de forças entre Bolsonaro e o Centrão, com o escândalo da Covaxin e das disputas econômicas e empresariais? E os militares, como ficam nesse cenário?
Luiz Werneck Vianna – A economia está arruinada; não há promessas de melhora. O país se comprometeu com o caminho equivocado em matéria econômica e por ora não tem como sair disso. É preciso uma outra coalizão de forças para o país redescobrir novas possibilidades de desenvolvimento e crescimento econômico. Estamos comprometidos com uma política colonial, de exportação de commodities: antes era o café, o açúcar e agora é a soja, o gado. São atividades que podem ser muito rentáveis para os setores específicos, mas que não são capazes de difundir riquezas no país e não criam empregos. Precisamos reestruturar inteiramente a economia para que o país possa crescer.
Outra coisa que conspira contra a reprodução do atual regime é a política americana do [Joe] Biden não só em matéria ambiental, mas em matéria social. Penso que uma peça-chave disso vai ser o embaixador americano no Brasil. O perfil dele vai dar demonstrações claras de qual será o sentido da política americana para o país. Imagino que seja um embaixador refratário ao bolsonarismo e ao tipo de obscurantismo praticado no país.
Agora, o fato é que nós precisamos avançar para uma direção que só fomos capazes de visualizar abstratamente, qual seja, a de uma frente democrática. Nós não conseguimos, ainda, dar contornos nítidos dessa frente. Não conseguimos, como se diz, “colocar o guizo no pescoço do gato”. Quais serão os próximos capazes de unificar uma amplíssima coalizão democrática? Enquanto estivermos nessa coisa pendular Bolsonaro versus Lula, não avançaremos bem. Não se trata de repor o passado. Trata-se de cavar o caminho do futuro. Por mais que a candidatura do Lula tenha sido prejudicada nas últimas eleições por causa da prisão, não adianta trazer de volta esse passado. Essa é uma página virada. Precisamos virar a página disso, descobrir um caminho novo que ultrapasse essas polarizações do passado. Enquanto não avançarmos nisso, este regime consegue sobreviver, mas é como um náufrago que se agarra numa boia aqui e em outra ali, mas não tem condições de permanecer e não tem condições, sobretudo, de se reproduzir, de constituir uma política de futuro. Ele está morto. Agora, é uma morte anunciada, mas não é de pronta-entrega; ela pode demorar.
Enquanto não se armar uma frente amplíssima, que garanta uma transição sem susto, o regime se mantém por falta de alternativas críveis. O que se apresenta como alternativa é a candidatura do Lula. A candidatura do Lula – com todos os méritos que possa ter e tem –, não tem a capacidade de organizar, reaglutinar e apaixonar a população em torno de uma ação comum. A última manifestação teve um caráter amplo, não foi partidária, mostra por onde se pode ir e por onde se deve avançar. Esse caminho já foi percebido por nós no passado, na luta contra o regime militar: o caminho da amplíssima coalizão que resultou na reabertura com um nome como Tancredo [Neves], que não era um nome marcado ideologicamente; era um democrata liberal, convicto, um homem da negociação. E agora? Não temos nada. A candidatura Lula não ajuda. A grande contribuição que Lula poderia dar – e acho difícil ele fazer isso – é ele mesmo se tornar o peão ou um dos peões da articulação dessa frente amplíssima, na busca por um nome que pudesse representar todos os descontentes, todos os dissidentes, todos os que não se conformam com a grosseria e a estupidez do governo que aí está.
Os militares têm que ser considerados. Um pouco do que falei se aplica a eles: quanto mais a frente for ampla e irrestritamente ampla, mais se torna difícil a intervenção militar. Não há como ter uma intervenção contra o conjunto da sociedade mobilizada em torno de uma ideia. O caminho da intervenção militar é o da polarização. Redescoberta a possibilidade democrática para o país, as forças futuras são imensas, de revigoramento dos movimentos sociais, dos partidos democráticos, de um novo parlamento, porque este que está aí é desprezível, é um parlamento que perdeu o léxico da sociedade. O parlamento não é representativo da sociedade brasileira de forma alguma; é um parlamento bolsonarista. As possibilidades no horizonte são muito generosas se soubermos agora articular uma política de frente amplíssima que desloque esse regime. Deslocado, aí o mundo é outro.
Roberto Andrés - Bolsonaro usou o tal orçamento secreto para comprar o parlamento, em um esquema muito maior do que o Mensalão mas que não teve pequena parte de sua repercussão. Com Arthur Lira à frente da Câmara e organizando essa base aliada, o governo parece ter uma barreira intransponível que lhe garante chegar inteiro até as eleições do ano que vem. Esse é o cenário mais provável, mas a história mostra que a blindagem do Centrão é intransponível até o dia em que deixa de ser.
A denúncia feita pelo deputado Luís Miranda, um bolsonarista enrolado em mutretas e próximo ao presidente, indica que algo pode começar a se mover. Talvez a base do presidente tenha ficado grande demais – e é difícil agradar a todos ao mesmo tempo, porque os recursos que o governo usa para atender esta base (cargos, verba pública) são, obviamente, limitados.
A história também mostra que, a partir de certos gatilhos, o processo de erosão do apoio parlamentar do Centrão pode começar a correr com certa velocidade, em dinâmica de retroalimentação. O ponto de mudança está na percepção de poder. Se os escândalos de corrupção, somados à inoperância no enfrentamento à crise sanitária, passam a abalar demais o governo e reduzir sua popularidade, fica mais cara a manutenção do apoio dos deputados. Aí, alguns começam a abandonar o barco. Cada um que sai faz subir o preço dos que ficam. A tendência é uma espiral de abandono do governo. Isso vai ocorrer no governo Bolsonaro? Neste momento a base está bem atendida com verbas, cargos e leis que favorecem seus esquemas, mas a crise atual coloca mais riscos no horizonte.
Os militares seguem em posição muito confortável. São sócios do governo desde o início. Receberam sua parte em ministérios, milhares de cargos, bônus salariais e privilégios diversos. Participaram da tragédia que foi a gestão sanitária de Bolsonaro - com protagonismo de um general da ativa, Pazuello, em uma das piores gestões da pandemia do mundo. Mostraram toda sua incompetência na crise de Manaus e na inoperância para comprar vacinas da Pfizer. Isso sem falar nos indícios de corrupção, como o do tenente-coronel indicado por Pazuello, Alex Lial Marinho, que foi acusado de exercer pressão para a compra irregular da Covaxin.
Ainda assim, os militares seguem na posição de fiel da balança: a possibilidade de apoiarem o golpismo de Bolsonaro torna o horizonte político do país muito perigoso. Se desembarcarem do governo, é para operar um plano B. Podem ir fazendo isso aos poucos (talvez já estejam fazendo, com sinais recentes, como a ausência de militares na entrevista de Onyx Lorenzoni sobre o escândalo de corrupção, o sumiço do general Heleno, as entrevistas oscilantes de Mourão). Se entrarmos em um processo de impeachment, os militares terão o bastão para a transição. Ainda que isto não aconteça, e ocorram eleições em 2022 e Bolsonaro perca, o posicionamento dos militares vai ser muito relevante nos desdobramentos da tentativa golpista de Bolsonaro – que dificilmente não ocorrerá.
Esta é uma contradição do momento: qualquer saída do autoritarismo bolsonarista demandará algum tipo de acordo com setores das forças armadas, embora eles tenham sido sócios da tragédia que nos trouxe até aqui. Se Bolsonaro ganhar a eleição de 2022, aí a democracia brasileira entra em colapso absoluto. Por isso será necessário o máximo de esforço para evitar este que é o pior cenário para o país.
Rudá Ricci – O Centrão é uma força parlamentar que sempre se insinua em todos os governos federais e, a partir daí, faz um pêndulo entre apoio e chantagem ao governo que passa a integrar para retirar o máximo de vantagens para suas bases eleitorais. A chantagem é, portanto, componente fundamental de sua prática política. Em outras palavras, sabemos como o Centrão ingressa num governo, sabemos como mantém ou amplia seu poder no governo e sabemos que raramente permanecem no governo quando do próximo pleito eleitoral.
Já os militares vivem uma situação de muito desgaste. É a segunda vez, em 60 anos, que eles demonstram incapacidade de governar o país. Tanto durante o regime militar, como agora, entregam um país pior do que receberam. Eles precisam reconstruir sua imagem pública. E, evidentemente, a saída é a recomposição do bloco político no qual se inserem. Possivelmente, este bloco passa pela aliança com o Centrão. Em outras palavras, o Centrão pode ser a bússola para entendermos qual o realinhamento que as Forças Armadas farão daqui por diante.
Moisés Mendes – O Centrão precisa antes saquear os saqueadores. Bolsonaro conseguiu até orçamento secreto para a direita, mas conseguiu também apontar quem é o chefe dos corruptos no Centrão, ao denunciar o deputado Ricardo Barros, seu líder na Câmara como chefe da facção da compra superfaturada da Covaxin.
Dependendo do que acontecer nos próximos dias e meses, esse apoio desaparece. Bolsonaro passa a ser delator do Centrão, porque pode ter mais gente ligada a Barros nesse caso. A direita traída não vai sustentar Bolsonaro com um país caindo aos pedaços. Pega o que der, com cargos, verbas e partilha de poder, e depois cai fora, como fez contra Dilma. Bolsonaro não tem nem partido. As análises geralmente desprezam a fragilidade do suporte político do sujeito. Bolsonaro é um avulso, uma gambiarra, não é um projeto. Poucos querem se comprometer com o partido dele. Além de estar em permanente confronto com inimigos que juntou entre ex-aliados.
Os militares confundiram como nunca os estudiosos dessa área com o dilema do ovo e da galinha. O projeto é deles, dos militares, ou de Bolsonaro, ou eles só pegaram carona e ganharam empregos? São 6 mil empregos. Pelo menos um general (Pazuello), quatro coronéis e um major estão sob suspeita de participação em corrupção. Ninguém sabe direito se há de fato um projeto militar. Se o projeto era deles e era coerente com uma nova tentativa de controle absoluto do poder, o que explica a debandada dos três chefes militares, que saíram ao mesmo tempo com o ministro da Defesa? Saíram por conta de escrúpulos?
Certamente foi porque não queriam ficar sob o comando de Bolsonaro num eventual governo de exceção. Os militares também têm limites. E os limites somente são conhecidos no desfecho de situações graves (é só ver os golpes no Brasil, em 64, no Chile de Pinochet e na Bolívia e agora o que está sabendo armado no Peru). No golpe é que eles mesmos ficam sabendo quem está com quem. Com quem Bolsonaro conta? Não deve ter a menor noção.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Moisés Mendes – Gostaria de acrescentar então essa pergunta: Os militares continuariam com Bolsonaro se houvesse um golpe?
Há uma dúvida grandiosa depois de tantos blefes de Bolsonaro. É esta: um general se submeteria a um déspota do porte de Bolsonaro com pretensos poderes de ditador? Outra pergunta pouco formulada: depois de um golpe, os generais aceitariam compartilhar o poder fardado com as polícias militares e até com milicianos, como Bolsonaro pretende?
Bolsonaro deseja que as PMs tenham generais. Ele deve estar pensando hoje que até pode ser capaz de dar um golpe, mas que dificilmente conseguiria sustentá-lo sem outras forças além dos militares. Na Bolívia, o golpe liderado pelas polícias (e que empurrou os chefes militares acovardados para a aventura) durou apenas um ano. O general chefe da turma deu o golpe e fugiu para os Estados Unidos.