20 Novembro 2013
“Francisco quer fazer deste Sínodo Extraordinário um forte gesto de “política interna”, um “balão de ensaio” para iniciar uma reforma prevista pelo Vaticano II e que ainda não foi colocado em prática em sua plenitude. Falo de se ultrapassar uma colegialidade meramente “afetiva” para uma colegialidade decididamente “efetiva”, avalia o historiador.
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“Se o anterior foi um Sínodo que visava corrigir o ‘leme’ da Igreja, com uma overdose de doutrina e disciplina para conter os supostos ‘desvios’ de rumos provocados pelo Vaticano II, este tem um tom completamente diferente, pois se inspira nas conquistas da recepção do próprio Vaticano II (colegialidade, sinodalidade e diálogo), e a ‘misericórdia’ será a palavra de ordem para curar os muitos feridos que estão no ‘hospital de campanha’”. É assim que o historiador Sérgio Coutinho avalia a preparação para o Sínodo Extraordinário sobre a Família, proposto pelo Vaticano a partir da distribuição de um questionário com 38 questões agrupadas em oito conjuntos de assuntos, para católicos do mundo todo.
De acordo com o pesquisador, os fiéis poderão responder questões referentes à “difusão dos ensinamentos da Igreja e da Bíblia sobre a família, passando pelas relações entre ‘lei natural e lei civil’, as conquistas da pastoral familiar, as ações tomadas ‘para enfrentar situações matrimoniais difíceis’, ‘as uniões de pessoas do mesmo sexo’, a educação dos filhos em ‘matrimônios irregulares’, a questão do planejamento familiar, a tensão entre a pessoa e a família e ‘outros desafios’”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On Line por e-mail, Coutinho esclarece que a compreensão de família da Igreja está baseada na “Revelação e assegurada no sacramento do matrimônio” e “faz parte da Lei natural”, enquanto no entendimento do Direito moderno, a definição de família admite outra estrutura. “Temos aqui duas visões de mundo: o Bom e o Justo. É possível conciliar as duas visões? Como?”, pergunta, ao salientar os desafios da Igreja diante deste tema. E dispara: “Minha impressão é que Francisco quer fazer deste Sínodo Extraordinário um forte gesto de ‘política interna’, um ‘balão de ensaio’ para iniciar uma reforma prevista pelo Vaticano II e que ainda não foi colocado em prática em sua plenitude. Falo de se ultrapassar uma colegialidade meramente ‘afetiva’ para uma colegialidade decididamente ‘efetiva’”.
Sérgio Ricardo Coutinho dos Santos (foto) é mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB e doutorando na mesma área pela UFG. É professor do curso de pós-graduação lato sensu em História do Cristianismo Antigo da UnB e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina - CEHILA-Brasil. É assessor nacional da Comissão Episcopal para o Laicato - CEBs.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que a Igreja entende por família?
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Sérgio Coutinho - Bem, em um sentido mais jurídico-canônico, o Catecismo da Igreja Católica - CIC define “família” (nº 2202) nos seguintes termos: “Um homem e uma mulher, unidos em matrimônio, formam com os seus filhos uma família”. Fica evidente a importância do sacramento do matrimônio para a constituição da família.
Esta definição está fundamentada na Revelação, fazendo parte assim da Lei natural, quando diz que “Ao criar o homem e a mulher, Deus instituiu a família humana e dotou-a da sua constituição fundamental” (nº 2203), ela “é a célula originária da vida social. É ela a sociedade natural em que o homem e a mulher são chamados ao dom de si no amor e no dom da vida. A autoridade, a estabilidade e a vida de relações no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, da segurança, da fraternidade no seio da sociedade. (...) A vida da família é iniciação à vida em sociedade” (nº 2207).
IHU On-Line - Como vê a proposta do questionário em preparação para Sínodo Extraordinário sobre a Família? Metodologicamente, como ele foi formulado e qual é sua intenção?
Sérgio Coutinho - Trinta anos após a II Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos (1985), quando o papa João Paulo II queria saber sobre o estado da Igreja após as primeiras duas décadas de recepção do Concílio Vaticano II, também hoje, como naquela oportunidade, fomos surpreendidos com a convocação desta III Assembleia Extraordinária, tendo por tema a família.
Se o anterior foi um Sínodo que visava corrigir o “leme” da Igreja, com uma overdose de doutrina e disciplina para conter os supostos “desvios” de rumo provocados pelo Vaticano II, este tem um tom completamente diferente, pois se inspira nas conquistas da recepção do próprio Vaticano II (colegialidade, sinodalidade e diálogo), e a “misericórdia” será a palavra de ordem para curar os muitos feridos que estão no “hospital de campanha”.
Do ponto de vista metodológico, a primeira novidade é a duração deste Sínodo: duas semanas de trabalho, e não três como antes. O secretário do Sínodo, Lorenzo Baldisseri, ex-núncio no Brasil, recebeu uma missão bem específica e direta do papa Francisco: remodelar as normas que regulam os trabalhos sinodais para que sejam mais eficazes e, principalmente, para proporcionar uma maior participação de todos os membros do povo de Deus (leigos e clero) num verdadeiro “caminhar juntos” (synodós).
Como disse o cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, que o Sínodo pudesse ter uma maior consulta e comunicação, inclusive usando a internet. Além disso, ele se dará em etapas, prevendo uma extensão temporal nos trabalhos para proporcionar uma maior participação das bases e das Igrejas locais, que devem expressar suas opiniões sobre os temas propostos para discussão.
Depois de uma primeira sessão de trabalho em Roma, as propostas deverão ser compartilhadas novamente com as Igrejas locais, para daí novamente retornarem para o Sínodo “ordinário” de 2015.
Daí que se explica o envio deste questionário como “Documento de Preparação”, e não na forma de um “Instrumentum laboris” (instrumento de trabalho) como vinha sempre acontecendo nas Assembleias anteriores, quando a Secretaria do Sínodo já dava o tom do conteúdo dos debates.
Em minha opinião, este método faz lembrar muito o pedido feito pelo papa João XXIII ao seu Secretário de Estado, o cardeal Tardini, ainda em 1959, que solicitasse a todos os bispos o envio de seus “vota et concilia” (pareceres e proposições) para a preparação do Concílio.
IHU On-Line - Que temas foram abordados nas 38 questões que compõem o questionário?
Sérgio Coutinho - São oito conjuntos de questões sobre “Os desafios pastorais sobre a família no contexto da Evangelização”. Os temas vão desde a difusão dos ensinamentos da Igreja e da Bíblia sobre a família, passando pelas relações entre “lei natural e lei civil”, as conquistas da pastoral familiar, as ações tomadas “para enfrentar situações matrimoniais difíceis” (como aquelas em que não crentes desejam se casar na Igreja), “a união de pessoas do mesmo sexo”, a educação dos filhos em “matrimônios irregulares”, a questão do planejamento familiar, a tensão entre a pessoa e a família e “outros desafios”.
IHU On-Line - Como será feita a avaliação destas respostas? Em que medida elas
podem influenciar as decisões do Sínodo Extraordinário sobre a Família?
Sérgio Coutinho - As respostas serão organizadas por uma equipe vinculada à Secretaria do Sínodo dentro daqueles oito conjuntos temáticos. Muito provavelmente será produzido um relatório que, aí sim, servirá de uma espécie de instrumento de trabalho para os participantes do Sínodo.
Este Sínodo funcionará mais como uma espécie de “brain storm” (tempestade de ideias) sobre tudo o que foi recolhido para que, em 2015, no Sínodo ordinário, se possa elaborar um conjunto de Proposições, não só em vista de uma Exortação Pós-Sinodal, mas também em vista de alguma medida mais prático-disciplinar em relação ao matrimônio e, quem sabe, em relação ao tema do planejamento familiar.
IHU On-Line - As uniões homoafetivas devem ser abordadas a partir de uma concepção de família pelo Sínodo Extraordinário sobre a Família? A Igreja tocará
nesta questão?
Sérgio Coutinho - Sim. A Igreja do papa Francisco não vai fugir a este debate. Basta ver dois conjuntos de perguntas: a do segundo (“O matrimônio segundo a lei natural”) e a do quinto blocos (“uniões de pessoas do mesmo sexo”), pois a discussão de um serve para embasar o outro.
Como disse antes, a compreensão de “família” que a Igreja tem está toda baseada na Revelação e assegurada no sacramento do matrimônio, por isso, faz parte da Lei natural. A questão é que os juristas, pautados no Direito moderno (Lei positiva) e em função das mudanças culturais que conduziram nossas sociedades a uma democracia mais ampla, definem hoje “família” de modo diferente. Porque o instituto do matrimônio civil não é mais privilégio somente de heterossexuais.
Por isso, o conceito de “família” ficou flexibilizado (melhor que “relativizado”), e o principal elemento formador é o “afeto”, muito mais que qualquer laço sanguíneo. Hoje, o “afeto” dá os contornos do que seja “família” na visão do Direito Civil.
Temos aqui duas visões de mundo: o Bom e o Justo. É possível conciliar as duas visões? Como?
Aqui vejo que se adentrará em um debate espinhoso levantado pelo filósofo alemão Jürgen Habermas: “Quanto de religioso o Estado liberal tolera?” (1).
Habermas chama a atenção para o fato de que, dadas as condições “pós-metafísicas” da Modernidade, os cidadãos não são mais capazes de aceitar a fundamentação de normas jurídicas com base no direito natural teológico, que emana da vontade de Deus, pois o sistema de direitos hoje está fundamentado na autolegislação democrática empreendida pelos próprios cidadãos (“Facticidade e Validade”).
Sociedade secular
Por outro lado, ele mesmo lembra que também estamos vivendo em uma sociedade “pós-secular”, ou seja, a secularização do poder do Estado não significou a secularização da sociedade civil.
As comunidades religiosas, segundo ele, na medida em que desempenham um papel vital na sociedade civil, não podem ser banidas do âmbito político público e forçadas à esfera privada. As contribuições religiosas para questões moralmente complexas não devem ser desprezadas do processo de decisão democrático. Daí ser importante que “os cidadãos seculares levem a sério como pessoas os cidadãos crentes que encontram no espaço político” e “que não deixem de reconhecer os potenciais conteúdos de verdade que podem ser introduzidos em uma argumentação pública não vinculada religiosamente”.
Espero que neste ponto a Igreja não busque resposta no passado, na forma de Concordatas com os Estados, mas que encontre uma resposta a partir de uma “Ética do Discurso” (ou como falou o papa à “classe dirigente” no Brasil: “diálogo, diálogo, diálogo”).
IHU On-Line - Sobre quais temas a Igreja deve abrir a possibilidade de diálogo e
reformas e quais não são passíveis de mudança?
Sérgio Coutinho - O tema que abordei na questão anterior será um destes que necessitará encontrar sólidos canais de diálogo, mas as palavras do papa Francisco — “quem sou eu para condenar um gay?” — já é um sinal positivo sobre os futuros encaminhamentos.
Outros dois temas sobre os quais poderemos ter surpresas, do ponto de vista de reformas, são o da readmissão ao sacramento da Eucaristia para os divorciados e o do planejamento familiar.
Em relação ao primeiro assunto, o prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Ludwig Müller, já se pronunciou fortemente contrário a qualquer concessão em termos sacramentais e disciplinares, como também pediu que se suspendesse a experiência que vinha sendo feita na Arquidiocese de Friburgo. Por outro lado, seu colega alemão, o cardeal Reinhard Marx, membro do G-8 que fará a reforma da Cúria, afirmou que não se poderia “pôr fim à discussão”. Este assunto está completamente aberto.
Quanto ao planejamento familiar, ainda se sente muito fortemente hoje a quase nenhuma recepção da Encíclica Humanae vitae (1968) do papa Paulo VI. Penso que toda a questão relativa à Aids, ao combate à pobreza e ao protagonismo crescente da mulher na sociedade deverá ser levada em conta para um debate maduro sobre este tema, sem cair em condenações morais.
IHU On-Line - Como vê, a partir deste questionário e das possíveis decisões a
serem tomadas, a relação entre a prática católica e a teoria católica?
Sérgio Coutinho - Fiquei pensando nisso quando o questionário trata da “difusão da Sagrada Escritura e do Magistério sobre a família”.
Este é um velho problema que há muito perturba o trabalho pastoral da Igreja: a sua comunicação com os fiéis. Especialmente quando se trata de fazer chegar às Igrejas locais e ao povo de Deus os ensinamentos do Magistério e do Concílio Vaticano II.
De fato, isto toca no problema da “recepção” de um modo geral. “Recepção” não é a mesma coisa que “obediência”, já falava Yves Congar. Como não vivemos mais em uma Igreja de “Cristandade” (Roma locuta, causa finita), buscar entender o porquê e o como a Igreja deveria ser ouvida em seu ensinamento é um dos desafios maiores em plena época de grandes tecnologias comunicativas.
Não custa nada lembrar também que nas sociedades modernas, especialmente as ocidentais, é característica central a autonomia dos sujeitos, ou seja, a capacidade que cada indivíduo tem para determinar, em consciência, as orientações que entende dar à sua própria vida. Por isso, os indivíduos que procuram suas referências em uma sociedade complexa e incerta não estão mais desejosos de se colocar sob o jugo tranquilizante de um discurso de autoridade, que fixa, através de uma bateria de proibições, o que é bom ou mau para eles.
Hoje, os indivíduos exigem “sentido”, mas não desejam que lhes sejam prescritas normas. Pelo contrário, na incerteza em que muitos se encontram, sua atenção é atraída pelos indivíduos que dão um testemunho pessoal dos valores que são importantes para eles e que, de forma concreta, mostram ser possível viver com os mesmos.
Assim, a única autoridade que tem valor é aquela que é reconhecida em “sujeitos autênticos”, em “testemunhas de sentido”, isto é, aqueles que conseguiram deixar os atalhos habituais, escapar das rotinas banais e dos jogos institucionais e sociais pré-programados e “superar seus limites”.
Por isso é que não bastam “normas” bem fundamentadas. É necessário coerência nos comportamentos, especialmente dos membros da hierarquia católica, para que teoria e prática não se contradigam. E, neste ponto, a “testemunha de sentido” do papa Francisco poderá fazer a diferença na hora da recepção das decisões deste Sínodo junto ao povo de Deus.
IHU On-Line - Qual é, na sua avaliação, a proposta de Francisco com o Sínodo
Extraordinário sobre a Família?
Sérgio Coutinho - Evidentemente que o papa Francisco está muito preocupado com a “saúde” das famílias na sociedade contemporânea, e ele externou isto no Encontro com as Famílias em Roma recentemente. Elas, também “feridas”, precisam estar no “hospital de campanha” da misericórdia de Cristo.
Mas a minha impressão é que Francisco quer fazer deste Sínodo Extraordinário um forte gesto de “política interna”, um “balão de ensaio” para iniciar uma reforma prevista pelo Vaticano II e que ainda não foi colocado em prática em sua plenitude. Falo de se ultrapassar uma colegialidade meramente “afetiva” para uma colegialidade decididamente “efetiva”.
O desdobramento disso é o de recolocar o problema da “forma pessoal” e da “forma colegial” de exercício do poder. De fato, há uma equivalência teológica das duas formas de exercitar o poder na Igreja, mas não podemos negar que houve uma diferença histórica em que se expressou na hegemonia ou no monopólio de uma forma sobre a outra, certamente da forma pessoal sobre a colegial.
Deste modo, me parece que, com este Sínodo, o papa Francisco quer acabar com o tal “curiacentrismo” de governo e fortalecer a forma colegial de exercício de poder entre os bispos de todo o mundo e o bispo de Roma.
Nota do entrevistado.
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(Por Patricia Fachin)
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Sínodo Extraordinário sobre a Família: a busca de uma resposta a partir da ética do discurso. Entrevista especial com Sérgio Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU