Senado aprova projeto que desmonta rito de demarcação de terras indígenas

Foto: Joedson Alves | Agência Brasil

29 Mai 2025

PDL 717/2024, aprovado em comissão e no plenário, susta homologações das TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos e parte do decreto que regulamenta demarcações; projeto segue para Câmara

A reportagem é de Maiara Dourado e Tiago Miotto, publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 28-05-2025. 

O Senado Federal aprovou, na noite desta quarta-feira (28), um projeto que, na prática, acaba com a demarcação de terras indígenas no Brasil, tal como elas são regulamentadas hoje. Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024, de autoria do senador Esperidião Amin (PP/SC), cuja proposta foi aprovada em votação simbólica no plenário da Casa. De manhã, no mesmo dia, a proposição já havia sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Agora, o projeto será encaminhado à Câmara Federal.

O projeto, apresentado pelo ruralista catarinense em dezembro de 2024, tem três objetivos principais: sustar os decretos homologatórios das Terras Indígenas (TIs) Morro dos Cavalos, do povo Guarani Mbya, e Toldo Imbu, do povo Kaingang, ambas em Santa Catarina; e, ainda mais grave, sustar o artigo 2º do decreto 1775/1996, que regulamenta o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas.

“Num primeiro momento, pode parecer que os alvos principais, centrais ou exclusivos são esses dois procedimentos de demarcação das terras dos povos Kaingang e Guarani”, alerta Cleber Buzatto, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. “De fato, isso está como alvo, mas é importante salientar que esse PDL também susta, ou seja, suspende, o artigo 2º do decreto 1775”.

Desmonte do processo demarcatório

O plano de derrubar o artigo 2º do decreto 1775 é mais um ataque do Congresso Nacional à efetivação dos direitos territoriais dos povos indígenas. Publicado em 1996, o decreto estabelece o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas. “E o artigo 2º é o miolo, o cerne. É o que tem de mais importante neste decreto, no que diz respeito ao procedimento de demarcação”, adverte o missionário.

Neste artigo, o Executivo regula a parte técnica do procedimento administrativo disposto no decreto. Sua centralidade encontra-se tanto no conteúdo que carrega como em sua forma, sendo o maior artigo dos onze que integram o decreto. Em dez parágrafos, ele discorre sobre a etapa de identificação e delimitação das terras indígenas, sobre o levantamento fundiário, as atribuições da Funai nestas etapas e a participação da comunidade indígena no processo demarcatório.

 

O decreto dispõe ainda sobre os prazos para publicação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação (Rcid), as possíveis contestações e atribui ao Ministério da Justiça (MJ) a declaração das terras indígenas.

“Esse é o decreto que regulamenta o procedimento de demarcação das terras indígenas, e o artigo 2º é o artigo que detalha todo o procedimento. Portanto, este projeto de lei praticamente derruba todo o procedimento de demarcação de terras indígenas no país. Isto afetará a todos os povos indígenas, e não só aos povos das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos”, avalia o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura.

Votações

No dia 7 de abril, o relator do PDL 717/2024 na CCJ, senador Alessandro Vieira (MDB/SE), apresentou seu parecer à Comissão, responsável – em tese – pela avaliação da constitucionalidade do projeto. O senador, que integra a base governista no Senado, votou pela constitucionalidade parcial do projeto, rejeitando os artigos que sustavam as demarcações das TIs Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, mas mantendo o ponto que sustava o artigo 2° do decreto 1775.

No dia 20 de maio, o senador Sérgio Moro (União Brasil/PR) apresentou seu voto em separado, e divergiu do relator, posicionando-se pela constitucionalidade do PDL 717/2024 em sua totalidade. Foi este o voto aprovado por ampla maioria pela CCJ do Senado e, depois, pelo plenário da Casa.

Na CCJ, somente dois senadores posicionaram-se contra o projeto: Rogério Carvalho (PT/SE) e Zenaide Maia (PSD/RN). No plenário, onde sequer houve debate sobre a pauta, apenas três senadores posicionaram-se contra o PDL: o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT/BA); o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT/AP); e Rogério Carvalho (PT/SE) .

Ambas as votações foram simbólicas – método em que os parlamentares favoráveis devem permanecer sentados e os contrários precisam se levantar, indicando fisicamente sua divergência. Assim, a proposta foi aprovada pelos senadores e senadores dos blocos parlamentares Democracia (formado pelos partidos União Brasil, Podemos, MDB e PSDB), Resistência Democrática (PSB e PSD), Vanguarda (PL e Novo), Pelo Brasil (PDT e PT) e Aliança (PP e Republicanos) presentes nas sessões.

Ambas as votações foram simbólicas – método em que os parlamentares favoráveis devem permanecer sentados e os contrários precisam se levantar, indicando fisicamente sua divergência. Assim, a proposta foi aprovada pelos senadores e senadores dos blocos parlamentares Democracia (formado pelos partidos União Brasil, Podemos, MDB e PSDB), Resistência Democrática (PSB e PSD), Vanguarda (PL e Novo), Pelo Brasil (PDT e PT) e Aliança (PP e Republicanos) presentes nas sessões da CCJ e do plenário.

A aprovação contou com apoio, inclusive, de integrantes da base do governo federal. Pela manhã, também havia sido aprovado na CCJ um requerimento de urgência para a tramitação do projeto – que serviu de justificativa para que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (PP/AP), incluísse o projeto na pauta do plenário no mesmo dia.

Mesa de conciliação e Lei 14.701

A principal justificativa apresentada pelo senador Esperidião Amin para a proposição do projeto é a vigência da Lei 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal, e a incompatibilidade do atual processo demarcatório de terras indígenas, regulado pelo Decreto 1775/1996, com a lei promulgada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023.

O senador argumenta que o decreto “colide com as disposições legais em vigor” e que, como as demarcações das TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos não foram adequados à Lei do Marco Temporal e seguiram o rito demarcatório estabelecido desde 1996, seus decretos de homologação “também transbordam da lei” e, portanto, devem ser sustados, assim como o artigo 2º do decreto 1775.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a constitucionalidade do Decreto 1.775, que havia sido questionada pelo partido Democratas – atual União Brasil – por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 3239.

Em seu parecer, o senador Alessandro Vieira chega a mencionar a decisão da Suprema Corte, mas afirma que agora o decreto é “incompatível” com a nova lei. “Tornou-se, assim, ilegal, e, portanto, reflexamente inconstitucional”. Embora seu parecer tenha sido derrotado, o voto aprovado, do ministro Sérgio Moro, apresenta interpretação semelhante.

A Lei 14.701/2023 foi promulgada pelo Congresso em represália à decisão de repercussão geral do STF que, em setembro de 2023, no julgamento do Tema 1.031, declarou inconstitucional a tese do marco temporal, que restringia as demarcações de terras indígenas (saiba mais).

“A decisão da Suprema Corte no Tema 1.031 também afirma que os laudos antropológicos realizados nos termos do Decreto 1.775 são elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação das comunidades indígenas. Nesse sentido, este PDL desconsidera não apenas a decisão da Corte, como também toda a base científica que fundamenta os estudos demarcatórios, deixando a política indigenista oficial num limbo e em uma insegurança jurídica sem precedentes”, avalia a assessora jurídica do Cimi Paloma Gomes.

A Lei 14.701/2023 foi imediatamente questionada pelos povos indígenas junto à Suprema Corte, por meio de pedidos no âmbito do processo de repercussão geral e de ADIs, que caíram sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes. O ministro, que sequer apreciou os pedidos de suspensão da Lei, estabeleceu uma “Comissão de Conciliação” sobre o tema (saiba mais).

Os povos indígenas, representados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), retiraram-se da mesa, por considerá-la uma “conciliação forçada” de seus direitos. Diversos povos indígenas têm solicitado à Suprema Corte que encerre a Mesa e que conclua a análise dos embargos e pedidos pendentes no Tema 1.031 – entre eles, a análise da constitucionalidade da Lei 14.701.

Apesar dos pedidos, recentemente o funcionamento da Mesa foi prorrogado pela terceira vez pelo ministro Gilmar, estendendo sua duração até o dia 25 de junho.

Homologações sob risco

Junto à TI Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba, as TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos foram as mais recentes homologações de terras indígenas pelo governo federal, assinadas pelo presidente Lula em dezembro de 2024. Ao todo, 13 terras foram homologadas pelo governo Lula: oito em 2023 e outras cinco no ano passado.

Em janeiro de 2025, uma decisão liminar do ministro André Mendonça, do STF, suspendeu o decreto homologatório da TI Toldo Imbu. A decisão de Mendonça teve como justificativa a falta de conclusão definitiva do processo de repercussão geral sobre demarcações de terras indígenas e o marco temporal.

A decisão foi citada no voto do senador Sérgio Moro e na sessão desta manhã na CCJ. Durante o debate, o senador Jaques Wagner afirmou que, em diálogo com o senador Espiridão Amin, chegou a levar ao governo a proposta – que foi rejeitada – de “suspender [os decretos homologatórios] enquanto se está com um processo de conciliação” no STF.

“Eu acho que cada um está fazendo sua interpretação, é do direito da Casa, mas eu faço questão de firmar minha posição aqui em defesa dos três decretos do governo federal”, afirmou na CCJ o líder do governo no Senado.

“Hoje, tanto na CCJ quanto no plenário, a representação de parlamentares favoráveis aos povos indígenas foi mínima. À noite, o líder do governo solicitou que a votação fosse encaminhada o quanto antes, o que deixa o governo num constrangimento diante dos povos indígenas, diante da Constituição Federal e diante da comunidade internacional. O que significa que ou o governo desistiu da defesa dos direitos dos povos indígenas e está dando as causas por perdidas, ou então tem setores dentro do governo que são favoráveis a esses retrocessos”, avalia o secretário executivo do Cimi.

“É absolutamente necessário e urgente que o governo mude sua rota e que assuma um papel mais proativo para evitar esses retrocessos, que são graves para os povos indígenas, que são graves para toda a sociedade brasileira e que são uma derrota para o próprio governo às portas de uma COP30 que poderá tornar-se um verdadeiro constrangimento para o Estado brasileiro, pois só vai apresentar retrocessos gravíssimos em matéria de direitos humanos”, aponta Luis Ventura.

Em nota pública, a Apib afirmou que o projeto aprovado pela CCJ do Senado “não apenas atinge diretamente comunidades indígenas, como também abre um precedente perigoso: pode levar à anulação de demarcações já concluídas e travar a regularização de dezenas de territórios. É um retrocesso inaceitável que ameaça vidas, direitos e o futuro dos povos originários”.

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