20 Mai 2025
"Apesar da Petrobras ser privilegiada por preços mais elevados provocados pela carência mundial de petróleo, quando seus novos poços vão entrar em produção na primeira metade da próxima década, o impacto do déficit mundial de produção de energia vai provocar um caos na economia e um pesado freio na globalização, em particular pela pressão de custos sobre o transporte de mercadorias.", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA), em artigo publicado por A Terra é redonda, 19-05-2025.
O duplo desafio do petróleo: enquanto o mundo enfrenta escassez de oferta e pressão por energias limpas, o Brasil investe pesado no pré-sal.
Sila e Caribdes eram dois monstros mitológicos no tempo da Grécia antiga. Viviam no estreito que separa a Sicília e a península italiana e ameaçavam os navegadores com ventos e correntes marinhas violentos, levando-os a se chocarem com os rochedos de um lado ou outro da passagem. O mito foi esquecido por muitos, mas a expressão ficou na linguagem de muitos países para designar situações de dupla ameaça. Fugir de Sila significa poder ser atingido por Caribdes e vice-versa.
Traduzindo para a realidade da produção de petróleo, Sila é a tendência mundial de produção de petróleo e Caribdes é a tendência mundial do consumo de petróleo.
Esta dupla ameaça implica em uma radical modificação do contexto da indústria petroleira no mundo. Até os últimos anos, a ameaça era a diminuição da oferta de petróleo, mas surge com força entre os especialistas do setor a ameaça de um “pico de demanda”.
O debate sobre o “pico” da produção de petróleo, conhecido internacionalmente por “pick oil” começou nos anos 1950 com a previsão do geólogo americano King Hubert, indicando que a produção americana, então uma das maiores do mundo, chegaria a um máximo no ano de 1970 quando iniciaria um descenso contínuo.
Explicando para os não especialistas: todo poço de petróleo tem uma vida bem definida cuja duração depende do tamanho das reservas do poço explorado, da velocidade da extração, da tecnologia utilizada e da relação entre os custos operacionais e os preços do produto no mercado. Depois de um tempo, ao ser alcançada a exploração da metade da reserva útil (o que pode ser extraído com lucro), a produção começa a cair até se tornar economicamente inviável. Usa-se no setor as expressões de poços maduros e de poços em senescência.
Estendendo o conceito para o conjunto dos poços de um país, no caso citado os Estados Unidos, King Hubert avaliou a evolução dos poços em produção e a evolução das descobertas de novos poços e de seu potencial para mostrar que haveria uma tendência de queda contínua de oferta a partir de um “pico” em 1970.
Chegar a um pico não significava uma interrupção brusca do fornecimento, mas uma queda paulatina inevitável. O pico de Hubert ocorreu precisamente no ano indicado. No entanto, a explosão dos preços do petróleo em 1973 e a criação da OPEP (Organização dos Países Produtores de Petróleo) permitiu que a indústria americana de petróleo pudesse esticar a exploração dos poços maduros e em senescência por mais tempo, já que os custos maiores nesta operação de “raspar o fundo do tacho” ficaram, por algum tempo, abaixo dos preços de mercado.
King Hubert fez o mesmo cálculo para o resto do mundo e previu um pico mundial de produção o ano 2000. Este pico não ocorreu e a produção de petróleo continuou em ascensão depois daquela data, levando muita gente a crer que a ameaça de um pico mundial era incorreta. No entanto, os estudos de inúmeros especialistas compartilhando a análise de King Hubert indicavam que os dados usados por ele eram menos precisos do que os disponíveis para a indústria americana e que o pico ocorreria em algum momento no horizonte de décadas, no máximo.
O tempo mostrou que a hipótese de King Hubert era válida e o pico ocorreu muito mais cedo do que se esperava. A produção de petróleo dito convencional (objeto dos cálculos do geólogo) alcançou um pico em 2006, levando os preços para um patamar inimaginável de 149,00 dólares por barril, gerando uma profunda e ampla crise econômica. Entretanto, a oferta de petróleo continuou subindo depois de ficar em um patamar limite por alguns anos. A previsão falhou?
O que ocorreu foi uma radical mudança na oferta de petróleo no mundo. Até as crises de 1973 e 1979 o petróleo produzido era o chamado “convencional”, um óleo leve conhecido como tipo Brent, com menores custos de extração e de refino e maior qualidade.
Os preços mais elevados, que passaram de cinco dólares por barril para flutuar entre um mínimo de trinta e um máximo de cento e cinquenta entre 1973 e 2006, com uma média de sessenta, permitiram que começassem a ser exploradas de forma mais intensa outras possibilidades.
Primeiro o petróleo convencional encontrado em alto mar e, mais tarde (contribuição brasileira), o encontrado em águas ultraprofundas e sob camadas de sal do fundo do mar, o pré-sal. Por outro lado, muitas empresas se voltaram para a exploração de petróleo de xisto (Estados Unidos) e das areias betuminosas (Canadá). Estas possibilidades eram bem conhecidas, mas só se tornaram viáveis com os preços mais elevados que dominaram o mercado de petróleo na segunda metade da primeira década deste século.
A oferta de petróleo, a partir da segunda década deste século, passou a ser garantida pelo óleo dito pesado, sendo que a produção americana garantiu, sozinha, a cobertura entre a demanda sempre crescente, o estancamento da produção convencional de petróleo leve e o constante fiasco na busca de novos poços.
Isto ocorreu com um enorme subsídio do governo americano, combinado com um aumento em 54% da eficiência da extração do óleo de xisto com novas tecnologias. Registre-se que nada disso se garante sem um preço superior a 60,00 USD/barril, tanto para a extração do convencional em águas profundas como os óleos pesados ou o de xisto.
O debate sobre um pico da oferta de petróleo foi posto de lado ao longo da década de 2010, com o otimismo contaminando tanto os produtores de petróleo como os consumidores. Mas já no final da década começaram os sinais de que um pico geral dos óleos combustíveis estava próximo.
O primeiro sinal foi a rapidez com que os poços americanos foram se esgotando, obrigando a investimentos em novos poços em um ritmo frenético. Por outro lado, a indústria americana teve que encarar custos crescentes e lucros estagnados ou em queda a partir de 2018, levando especialistas a preverem um pico (alguns em 2025, outros em 2030) inexorável.
Apenas a Agência Americana de Energia esticou a previsão para 2035. As reservas de óleo das areias betuminosas de Alberta, no Canadá, são bem maiores do que as estimativas para o petróleo de xisto americano, mas este petróleo é, de longe, o mais caro e o de pior qualidade.
Para piorar o quadro da oferta de petróleo, a década passada mostrou que os picos do petróleo convencional foram ocorrendo em vários países grandes produtores, notadamente na Rússia e na Arábia Saudita (segundo e terceiro maiores produtores do mundo).
No momento presente as previsões de vários players do negócio do petróleo vão se multiplicando para apontar o risco de uma quebra de oferta. A Agência Internacional de Energia calcula que ela vai ocorrer em 2030, a empresa francesa Total na segunda metade da presente década e a revista especializada Rystad International em 2035. Os únicos a manter o discurso da oferta suficiente no médio prazo são os dirigentes da OPEP, colocando um horizonte de segurança até 2050.
As únicas boas notícias neste quadro vêm do Brasil. A Petrobras anunciou estes dias uma nova descoberta que pode ampliar as reservas brasileiras entre 50 e 70%, apenas em um novo campo na região de Santos. Por outro lado, a empresa tem planos de investimento em 51 novos campos, 25 nas margens sul e sudeste, 15 na margem equatorial e 11 em terra firme, totalizando 7,9 bilhões de dólares.
Estes novos campos não deverão entrar em produção antes da próxima década, mas o investimento nos campos já próximos de exploração ou em exploração está orçado em 66 bilhões de dólares. O propósito é triplicar a produção exclusiva da empresa, com a entrada em operação de 14 novas plataformas até 2029 para extrair 3,2 milhões de barris de óleo equivalente (petróleo e gás) por dia.
Além disso, há ainda a produção em consórcio com empresas privadas e a produção independente destas últimas. Não encontrei previsões para a produção expandida destas últimas, mas elas devem ser significativas e podem levar a produção total do Brasil para perto de sete ou oito milhões de boe/dia no final da década.
Esta expectativa de aumento de produção no Brasil é importante e pode levar o país, se tudo der certo, para um patamar mais alto entre os países (e empresas) produtoras de petróleo, colocando-nos entre os cinco maiores. No entanto, sabendo-se que a demanda mundial deve chegar em 2030 a 104 milhões de boe/dia, a oferta do nosso pré-sal não terá a capacidade de cobrir as quedas em curso em quase todos os campos convencionais (inclusive os de águas profundas em outros países) e o estancamento da produção do petróleo de xisto nos Estados Unidos.
A única alternativa não avaliada até agora para cobrir a demanda é a expansão da exploração das areias betuminosas do Canadá, mas esta possibilidade vai depender de imensos investimentos e de preços do petróleo acima dos 100,00 dólares por barril, o que causaria um impacto gigantesco na economia de todo o mundo.
Para concluir esta análise sobre a crise de oferta de petróleo, vou lembrar um dado capital divulgado pela própria AIE: o gasto mundial em subsídios diretos e indiretos para a produção de petróleo é da ordem de um trilhão de dólares por ano. Não existe melhor indicador do que este para mostrar o quanto esta indústria está desequilibrando a economia internacional, sugando recursos que seriam importantíssimos para financiar um desenvolvimento sustentável e a transição para energias renováveis. Tudo para manter o sistema em produção por mais tempo a preços toleráveis pelos consumidores.
A ameaça de Sila (o pico mundial de oferta de petróleo), parece ser terrível para todo o mundo, mas aparentemente um bônus para o Brasil. Resta ver agora a ameaça de Caribdes (o pico de demanda).
Segundo alguns avaliadores, entre eles a Associação Internacional de Energia (que foi por muitos anos uma representação dos interesses da indústria do petróleo), a demanda de combustíveis fósseis vai ter um pico em 2030 e a multinacional British Petroleum, em 2025 (isso mesmo, neste ano).
No entanto, prevalece na grande maioria das avaliações que o movimento de substituição dos combustíveis fósseis por energia eólica e solar, embora tenha dado um salto espetacular nos últimos cinco anos, mal e mal cobriu uma parte do aumento total de consumo de energia no período. Há uma redução perceptível neste consumo apenas nos países da União Europeia, no Japão e, em menor escala, nos Estados Unidos.
Mesmo na China, de longe o maior investidor em energia renovável, o consumo de combustíveis fósseis (inclusive o super poluente carvão) continuou crescendo com taxas significativas.
Por outro lado, quase todos os países que se comprometeram a reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa no Acordo de Paris ficaram longe de cumprir as metas e as emissões cresceram significativamente nos países em desenvolvimento. Não há qualquer possibilidade de que a redução da demanda de petróleo seja uma realidade, mesmo dilatando os prazos para 2040. A OPEP calcula que a demanda só vai se estabilizar em 2050!
A atitude das empresas petroleiras indica que elas estão dispostas a reduzir a prospecção de novos poços de petróleo (até porque os custos estão cada vez mais importantes e os resultados cada vez mais frustrantes), mas também que vão vender as suas reservas até o limite da rentabilidade para recuperar gastos anteriores.
Para finalizar, os pesados investimentos da Petrobras em prospecção e extração de petróleo podem ter que enfrentar as duas ameaças mundiais: a queda da demanda (bastante improvável) e a queda da oferta (bastante provável).
No primeiro caso, se o mundo reagir a tempo às ameaças do aquecimento global e investir pesadamente na substituição do uso dos combustíveis fósseis por energia renovável e com baixa emissão de Gases de Efeito Estufa, a demanda de petróleo (e seus preços) vão cair e todo o investimento na expansão da nossa oferta vai virar um mico.
No segundo caso, apesar da Petrobras ser privilegiada por preços mais elevados provocados pela carência mundial de petróleo, quando seus novos poços vão entrar em produção na primeira metade da próxima década, o impacto do déficit mundial de produção de energia vai provocar um caos na economia e um pesado freio na globalização, em particular pela pressão de custos sobre o transporte de mercadorias.
Poderemos sobreviver nesta situação? A nossa vantagem relativa vai nos ajudar a fazer uma transição? Faz sentido nos empenharmos em aumentar a produção de petróleo (e das emissões de Gases de Efeito Estufa), torcendo para que o mercado continue em demanda crescente?
Estas perguntas são respondidas positivamente por todos os defensores de uma Petrobras 2.0, mas ela ignora o outro problema capital para o futuro da humanidade: a emergência climática provocada pelo aumento das emissões mundiais de Gases de Efeito Estufa, provocadas pelas emissões oriundas sobretudo pelo uso de combustíveis fósseis, inclusive as nossas.