20 Março 2024
Para o carpinteiro de Nazaré, não há missões especiais dignas das cantatas dos poetas líricos, porque o propósito da vida de José não é uma coisa, mas sim um “quem”: seu empreendimento, sua épica e sua vitória são duas pessoas indefesas e preciosas que não têm outra proteção senão a dele.
O comentário é de Michela Murgia, teóloga, escritora e dramaturga italiana. O texto é um trecho do capítulo "Non un cosa, ma un chi", presente no livro "Maschilità in questione. Sguardi sulla figura di san Giuseppe", organizado por Antonio Autiero e Marinella Perroni (Ed. Queriniana).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O problema incurável que o patriarcado tem com José é que é difícil reconhecer nele qualquer forma de poder no sentido dominante do termo. Ele não manda na esposa, não manda no filho; ao contrário de Maria, não induz Jesus a realizar sequer um milagre e, ao longo de toda a história da cristandade, ficará marcado por aquele adjetivo de certa forma terrível – “putativo” – que no senso comum nunca quis dizer outra coisa senão “falso”.
No entanto, foi graças a ele que Maria não foi morta devido a uma gravidez difícil de explicar a uma cidade inteira já com as pedras na mão. Foi graças a ele que Jesus e sua mãe sobreviveram à fúria do tetrarca da Judeia e de seus capangas. Foi graças a ele que o Filho de Deus teve uma infância e uma adolescência tão serenas a ponto de não oferecerem, naquela felicidade banal de um vilarejo, nem meio ponto de apoio narrativo aos evangelistas.
O ponto doloroso é que José é homem de uma forma que não tem nada a ver com o machismo (e, portanto, com os machistas), porque nele o “porquê” e o “por quem” coincidem de modo exato. Ele não é Ulisses que sonha com outro lugar. Ele não é Eneias que foge perdedor de Troia em chamas, apenas para fundar outra cidade. Ele não é Artur que une com a espada as contradições da Britânia. E nem mesmo, para ficar nos Atos dos Apóstolos, um Paulo de Tarso mais espiritual, tão eloquente a ponto de converter os pagãos à fé mais distante de todas as deles.
José não precisa convencer ninguém e talvez nem mesmo saberia como fazer isso, pois, de fato, nunca abre a boca. É ele o verdadeiro guardião do santo silêncio, e não Maria, que nos evangelhos, contrariamente à vulgata da pregação, toma a palavra bem mais de uma vez.
Para o carpinteiro de Nazaré, não há missões especiais dignas das cantatas dos poetas líricos, porque o propósito da vida de José não é uma coisa, mas sim um “quem”: seu empreendimento, sua épica e sua vitória são duas pessoas indefesas e preciosas que não têm outra proteção senão a dele.
A masculinidade do presente e do futuro poderia encontrar uma ampla inspiração em uma figura tão difícil de enquadrar nas categorias da dominação e da posse, alguém que, dentro da lógica de bando estruturada pelo patriarcado, seria rejeitado por ser e permanecer um “macho beta”.
Há algo robustamente libertador no fato de que a fragilidade do Filho de Deus encarnado tenha sido protegida não por um herói de perfil já pronto para se tornar lendário, mas sim por um homem manso e confiável, que, para salvar seus entes queridos, não achou humilhante nem mesmo o exílio.
Para reconhecer o valor de um homem capaz de agir tão fora dos padrões do sistema normativo dos gêneros, não é possível abrir mão de uma renovada especularidade dos papéis e, portanto, é indispensável que haja mulheres dispostas a romper também aqueles papeis já exaustos, acima de tudo para si mesmas.
Por isso, talvez não seja inútil lembrar neste discurso que, no fundo, quem escolheu José, apesar dos relatos apócrifos, não foi Deus. Foi Maria.
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José, um "macho beta". Artigo de Michela Murgia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU