Simplesmente Marta – Filmes em Perspectiva. Artigo de Faustino Teixeira

Foto: Reprodução

15 Agosto 2022

 

No início de agosto de 2022, no Filmes em Perspectiva, debatemos no Paz e Bem, também transmitido pelo IHU, o belo filme de Sandra Nettelbeck, Simplesmente Martha (Bella Martha), de 2001. A diretora fez ainda o singular roteiro. Trata-se de uma produção alemã, de 109 minutos. Os locais de filmagem foram na Alemanha (Hamburgo) e Itália, com paisagens muito singelas.

 

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Eis o artigo.

 

Quero destacar a qualidade do elenco que participou do filme: Martina Gerdek (no papel de Martha, a chefe da cozinha), Maxime Foerst (no papel da jovem Lina, sobrinha de Martha) e Sergio Castellitto (no papel de Mário, o sensível chefe de cozinha auxiliar, italiano).

 

Merece também uma palavra de elogio a belíssima trilha sonora organizada por Manfred Eicher, que escolheu peças preciosas para o repertório, com destaque para as composições de Keith Jarret, em particular a canção Country.

 

O filme em questão insere-se na linha de grandes clássicos cinematográficos que abordam a temática da culinária, como, Festa de Babete (1987), Como água para chocolate (1992) e A grande noite (1996). No caso de Simplesmente Martha, temos uma deliciosa comédia romântica, que angariou dez prêmios internacionais e conquistou o coração de expectadores de toda parte.

 

 

Para quem estuda o Zen Budismo, esse tema da culinária tem um lugar de grande singularidade. A função do cozinheiro nessa tradição ocupa destaque, sendo sempre confiado a mestres esclarecidos e dotados de sensibilidade especial, ou um espírito peculiar. Nada mais espiritual na tradição zen do que o cozinheiro. Cada gesto do cozinheiro no trato com as verduras ou condimentos é um dom particular. Uma vez com os recipientes nas mãos, eles são tratados como a menina dos olhos. Ao arregaçar as mangas, o cozinheiro não está cumprindo apenas um gesto rotineiro, mas realizando o espírito do caminho. Dizia Mestre Dôgen, do século XIII, em seu livro Instruções para o cozinheiro zen [1], que o ato de segurar um verdura nas mãos é como lidar com “o corpo sagrado da realidade última”.

 

O roteiro de Sandra Nettelbeck é cuidadoso e saboroso. Como personagem central temos a chefe de cozinha, Martha, uma mulher solteira que tem como paixão o cuidado com a cozinha, o trato singular com os alimentos. Atua como cozinheira chefe de um sofisticado restaurante alemão. O trabalho que exerce ocupa todo o seu tempo, e ela não tem espaço para nada e ninguém. É algo que a estressa muito, daí ter sido aconselhada pela dona do restaurante a cuidar disso em terapia. Ela segue o conselho, mas nos encontros com seu terapeuta, o tema central gira em torno de seu amor pela culinária, o que é motivo de surpresa e curiosidade do cuidador. Curioso é que o zelo demonstrado por Martha em seu trabalho não vinha acompanhado pelo zelo com sua vida pessoal, que era meio desastrada.

 

Certo dia, no restaurante em que trabalhava, Martha recebe um telefone que muda o ritmo de sua vida. Era o aviso de que sua irmã, que vinha visita-la, tinha sofrido um grave acidente de carro, perdendo a vida e deixando uma criança de nove anos, Lina, que também se feriu no acidente, e estava se recuperando. Martha, tocada pela mensagem, corre ao hospital e encarrega-se do cuidado da sobrinha. Ainda no hospital, Martha promete à sobrinha entristecida que depois de sua alta teria a oportunidade de desfrutar do melhor jantar de sua vida.

 

É todo um processo delicado de luto que vai envolvendo Lina, depois que soube que sua mãe tinha morrido na estrada. Sentindo-se desamparada, ela recusa toda alimentação, e Martha terá um trabalho difícil para ajudar a menina a vencer esse difícil obstáculo.

 

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No início, Lina queria voltar para sua casa, e manifesta isso com a tia. Dizia que estava acostumada a ficar sozinha em casa. Martha argumenta com ela, que isso podia ocorrer, mas que sempre tinha o momento da mãe retornar e ficar com ela. Isso não seria mais possível. Ela deveria agora buscar integrar-se na nova realidade. Lina ainda sugere morar com seu pai, que estava na Itália, e que a tinha deixado quando criança. Dele ela só sabia o nome, Giuseppe, e mais nada. Martha prometeu a ela que faria todo o esforço para buscar seu pai, mas que até o encontro dos dois, faria o melhor de si para um exemplar cuidado.

 

Se já era complicada a vida de Martha, os cuidados com Lina tornaram sua vida ainda mais difícil, tendo que se desdobrar para equilibrar a responsabilidade no trabalho e os cuidados com Lina, respondendo por sua acolhida e educação. Ela era agora a tutora da menina e tinha que transformar sua rotina. A vida de Martha, da noite para o dia, reveste-se num verdadeiro caos. Nos intervalos de seu trabalho, busca refúgio no refrigerador do restaurante, de forma a encontrar alívio para o calor da cozinha, e uma zona de fuga para a reflexão pessoal.

 

Preocupada com a nova situação, a dona do restaurante contrata um chefe assistente, o italiano Mário, para ajudar na tarefa da cozinha, aliviando também o desarranjo que se instalou na rotina diária de Martha. Mário era uma figura marcada pela alegria, e transforma a vida no trabalho, trazendo o seu sorriso, tranquilidade e, sobretudo, a música italiana, que irradia um sentimento novo para todos que trabalham no estressado ambiente da cozinha do restaurante.

 

Quando Martha se defronta com a nova realidade, reage impulsivamente, resistindo à intrusão do novo chefe assistente no espaço que era controlado por ela. Dava-se conta que tinha sofrido duas “invasões territoriais” na sua vida, que a sacolejam: a súbita entrada de Lina, e os transtornos que acompanharam sua chegada: a greve de fome, as mentiras, a falta nas aulas. A outra invasão era a do coração, com a chegada imprevista de Mário, que também vai movimentar sua vida.

 

Os primeiros contatos com Mário foram muito tensos, envolvendo por parte dele todo um delicado processo de ambientação à nova situação. Com seu jeito especial, Mário foi entrando delicadamente em cena, com paciência, zelo e temperança, conseguindo assim a acolhida que precisava.

 

Diante das dificuldades encontradas por Martha em conseguir uma babá para a criança, ela acabou tendo que levá-la consigo para o trabalho e isso complicou a vida escolar de Lina, que chegava quase sempre atrasada na escola, sempre cansada, pelo novo ritmo de vida, tendo que acompanhar a tia em seu serviço, chegando muitas vezes tarde em casa e alterando o ritmo de sono.

 

Tudo foi se complicando na escola, ocasionando mudanças na estratégia escolhida por Martha, que acaba tendo que se afastar do trabalho. Em situações de turbulência, ela pôde contar com a ajuda de um vizinho, que também tinha dois filhos. Ele acolheu a menina em certo momento de desencontro com a babá contratada, bem desajeitada para a função.

 

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Para o trabalho interior de Lina, na busca de superação da substantiva perda, Mário teve um papel fundamental. Como a criança estava diariamente no restaurante com a mãe, ele encontrou um jeito peculiar de aproximação à menina, e isto se deu através da comida. Lina estava acostumada com o ritmo de uma alimentação vegetariana, que era a da sua mãe. Aos poucos, com muito jeito, Mário conseguiu romper a resistência alimentar da garota, com um delicioso prato de macarrão. Ele se achegou a ela, comendo macarrão, deliciando-se com o perfume e o sabor da iguaria e acaba conquistando a menina, que acaba também cedendo ao apetite. Criam-se laços bonitos entre os dois, que se irradia para Martha.

 

Envolvido na nova relação, Mário presta importante ajuda para tentar encontrar o pai de Lina. Os dois tinham em comum a raiz italiana. Aos poucos, Martha vai descobrindo a receita ideal para sua vida, agora encantada também com a presença de Mário. Antes, porém, os dois tiveram uma séria conversa dentro do frigorífico, onde Mário expressou para ela que não tinha nenhum interesse particular em tomar o seu lugar no restaurante, e que estava ali por admirar profundamente o seu trabalho. Disse ainda que jamais conseguiria trabalhar num lugar onde não fosse amado.

 

Numa das cenas particulares do filme, estando Martha junto com sua assistente de cozinha num passeio pela cidade, ela sente-se mal, já em estado avançado de gravidez. Martha a acompanha ao hospital para ter a criança, e com o tumulto acaba se esquecendo de buscar Lina na escola. Quando se dá conta, já em casa, corre ao seu encontro e a menina estava desolada com o abandono. Foi todo um processo difícil para retomar o contato.

 

Cumprindo um desejo expresso por Lina, Martha convida Mário para fazer uma comida em sua casa. Apesar de atrasar no compromisso, ele chega feliz, carregado de compras e diz que a preparação da comida fica por conta dele com a ajuda de Lina. O resultado foi um lindo jantar com todos juntos sentados no chão e comendo com as mãos: um jantar a moda de piquenique. Rompiam-se radicalmente os protocolos, numa noite que se tornou inesquecível, apesar de todo o “estrago” feito na cozinha. Tudo, porém, contornado com as artimanhas de Mário, que tranquilizou a assustada Martha.

 

Em outra cena muito bonita do filme, Martha e Lina estão juntas, e a garota diz a ela que já está começando a se esquecer da mãe. Foi quando então Martha num lindo gesto convoca a aproximação da menina, que vem envolvida por um abraço acolhedor. Isto me fez lembrar o carinhoso abraço da mãe de Miguilim, no Campo Geral, quando diante da inusitada pergunta do filho, também responde com um encantador abraço [2].

 

Em razão dos problemas com Lina na escola, Martha resolve deixar de levá-la ao restaurante. Ela também tinha sido chamada pelo diretor do estabelecimento de ensino, quando então ficou sabendo que a menina estava sempre com muito sono na escola e também faltando aulas. A menina argumentara que tinha que ajudar sua tia no restaurante e, mentindo, sublinhou que era forçada a trabalhar para conseguir quarto e comida. Foi a senha decisiva para a decisão de Martha se afastar do trabalho. Em cena do filme, a menina revoltada com a decisão da mãe, põe-se a correr perigosamente, atravessando uma rua movimentada sem atenção, com grande risco de ser atropelada. As duas tiveram em seguida uma conversa séria, quando Martha disse a ela que estava dando tudo de si para doar-se a ela, consciente, porém, de sua impossibilidade de substituir a mãe. Reiterou que o pai já tinha sido contatado e que chegaria em breve para buscá-la.

 

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Mário continuou relacionando-se com Lina e Martha. O toque amoroso já tinha fincado estaca no coração dos dois amigos. Em certo dia, quando os três estavam juntos em casa, Lina foi atender a um chamado na porta e avisou Martha. Era o pai da menina que tinha vindo para buscá-la. O clima se transformou na casa... O pai busca justificar-se: diz que gostaria de ter encontrado com Lina em circunstância diversa.

 

O apego de Martha e Mário com a menina tinha se estabelecido, e a saída da garota provocou um tumulto existencial nos dois. No momento em que a menina entra no caminhão de Giuseppe, partindo para a Itália, Martha, sofrida, chama Giuseppe e diz a ele para ter compreensão com Lina, pontuando que as duas tinham algo em comum, sendo resistentes à abertura e compreensão. Lembra ainda que Lina também gostava de cozinhar.

 

Das cenas mais marcantes do filme, destaco uma em que Mario visita Martha durante a noite, levando num recipiente vários temperos diferentes. Ela, de olhos vendados, vem convidada a adivinhar o sabor de cada um deles. Com gestos de grande delicadeza, ele vai aproximando a colher e Martha vai saboreando lentamente, com leveza, cada uma das investidas e acerta todos os ingredientes. Ao final, Mario aproxima a colher da boca de Martha, mas recua e ele mesmo prova. Em seguida, aproxima-se dela com um beijo carinhoso, ao que ela responde: Aniz. Estava selada uma linda união.

 

Depois que Lina partiu para a Itália, Martha, adolorada, pede ajuda a Mario, e os dois partem de carro visando resgatar a menina. Durante o trajeto a conversa entre os dois é simplesmente maravilhosa. Em certo momento, ela pergunta a ele: “Você acha que ela vai querer voltar conosco para a Alemanha?”. No que ele responde: “Porque ela preferiria ficar com a família dela na Itália quando poderia voltar para a fria e cinzenta Alemanha”. Martha reage, dizendo que ele estava sendo cruel. E ele retruca: “Martha, Lina ama você. Você não sabe disso?”.

 

Ao final, é linda a cena do carro chegando à casa de Giuseppe, num cenário marcado pelos filhos brincando juntos e Lina deitada na rede. Quando a menina avista a chegada dos dois, corre alegremente, recebendo o caloroso e apertado abraço de Martha, que com a menina no colo dá reiterados giros, numa explosão de felicidade.

 

O que ocorre em seguida é um desfecho bonito, com toda a família reunida numa mesa comum, diante da deslumbrante paisagem italiana, numa festa singela, regada de vinho e alegria, com a celebração do casamento de Mário e Martha. Os dois decidem viver na Itália, inaugurando juntos um novo restaurante naquela terra abençoada. E para embalar o clima, a magnífica música de Keith Jarret.

 

Referências

 

1. Eihei Dôgen. Tenzo Kyôkun. Instruções para o cozinheiro zen. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 19.

 

2. João Guimarães Rosa. Campo Geral. São Paulo: Global Editora, 2019, p. 129.

 

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