Muito Além do Jardim (Being There – 1979). Artigo de Faustino Teixeira

Muito Além do Jardim (Being There – 1979). (Foto: Divulgação)

02 Agosto 2022

 

"Apesar de muitos críticos cinematográficos interpretarem a figura de Chance como um videota, um idiota e pateta, totalmente determinado pela televisão. Acredito que em parte isto está correto. Pude, porém, verificar com um novo ângulo de olhar, o lado jardineiro e menino de Chance, tocado por rara delicadeza e cuidado". 

 

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Eis o artigo. 

 

No dia 20 de julho de 2022, no Filmes em Perspectiva, debatemos o filme de Hal Asbhby, Muito Além do Jardim, com as brilhantes interpretações de Peter Sellers (1925-1980), Shirley Mac Laine (1934 -) e Melvyn Douglas (1901-1981) . Como debatedores estávamos eu, Angelo Atalla e Mauro Lopes.

 

 

Dentre os filmes dirigidos por Hal Ashby podemos assinalar dois em particular: Ensina-me a viver (Harold e Maude - 1971), com Ruth Gordon e Bud Cort, com o roteiro de Colin Higgins e a trilha sonora de Cat Stevens; e Amargo regresso (Coming Home), com Jane Fonda e Jon Voight, o roteiro de Waldo Salt e Robert C. Jones e a música de Rolling Stones e George Brand. Esse filme, de 1978, recebeu três Oscar: melhor atriz (Jane Fonda), ator (Jon Voight) e roteiro original. Ganhou também o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes. É um dos grandes clássicos na abordagem da questão pacifista.

 

O filme Muito Além do Jardim teve como referência o livro de Jerzy Kosinski (1933-1991), O Videota [1], publicado originalmente em 1970. O autor polonês, naturizado norte-americano, escreveu outros livros singulares como A árvore do diabo (Cockpit - 1975) e o best seller O pássaro pintado (The Painted Bird - 1965). Teve um sério problema em sua carreira literária, com a acusação de plágio, em 1982, vindo a cometer suicídio em 1991.

 

O roteiro do filme Muito além do Jardim, aborda a história de Chance, um jardineiro, interpretado por Peter Sellers, que passou toda a sua vida na casa de um homem rico, que vivia em bairro periférico de Washington. Como relata o livro, Chance era órfão e foi adotado desde criança por um velho que o abriga em sua casa, encarregando-o depois de cuidar de seu jardim. O jardim estava protegido da rua por um muro alto de tijolos vermelhos, cobertos de hera, num ambiente tranquilo e seguro, e os rumores dos carros não prejudicavam a paz daquele lugar. Como indicou Kosinski no roteiro, “as plantas eram como as pessoas: precisavam de cuidado para viver, para vencer as suas doenças e para morrer em paz” [2].

 

O filme já apresenta Chance em sua idade adulta, cuidando do jardim do velho, “das plantas, da grama e das árvores que ali cresciam em paz. Seria como uma delas: de coração leve quando fazia sol, e pesado quando chovia” [3]. Chance devia limitar sua vida a seus aposentos e o jardim, sem adentrar-se em outros cômodos da casa. Sua comida vinha servida pela funcionária da casa, Louise, com quem mantinha o contato, e só com ela se relacionava. O seu quarto tinha uma janela que dava para o jardim. Recebia sua comida com regularidade e fartura. Deram-lhe no início um rádio, e depois uma TV colorida com controle remoto. E assim passava os seus dias.

 

Quando o velho, seu patrão, morre, Chance passa por momento delicado, não podendo mais residir ali naquele lugar. Vem avisado da morte do velho por Louise, e a reação que ele demonstra diante do ocorrido é de apatia. Discorre sobre a manhã daquele dia, que estava linda, fala sobre a necessidade de cuidar do jardim e solicita o seu café, para o estranhamento de Louise. Durante todo o tempo em que residiu na casa, dividia sua atenção entre a televisão e o jardim. Nada mais o interessava. Logo na sequência da morte do velho aparecem na casa dois advogados da firma Hancock, Adams & Colby, encarregados do espólio da família. Eles manifestam sua surpresa com a presença de Chance na casa e com a documentação em mãos expressam não ter conhecimento de qualquer vínculo do jardineiro com o falecido. Não havia registro algum de emprego dele ali. Chance, surpreso, diz que trabalhou ali no jardim durante toda a sua vida, desde que era rapazinho. Quando começou, as árvores eram pequenas e agora o jardim despontava com toda a sua beleza.

 

Com o exíguo prazo dado pelos advogados, Chance teve que deixar a casa, obedientemente. Não sabia, sequer, dizer por que teria que deixar o jardim. Expressa sua vontade de permanecer ali, mas acaba conformando-se em sair, sem saber sequer ler ou escrever. Sai da casa com sua maleta de couro, achada no quarto de despejos. Antes, porém, voltou-se para o jardim, com um último olhar, constatando que tudo “estava em paz: as flores elegantes e eretas”, e ainda tocou com sua mão delicada nas agulhas do pinheiro. Da televisão, permaneceu apenas “o pequeno ponto azul” no centro da tela, “como se tivesse sido esquecido pelo resto do mundo” [4].

 

Ao descer as escadas da porta, percebeu que o mundo exterior era semelhante ao que tinha visto na televisão, mas foi um choque. E no momento em que faz o gesto de abrir a porta para a rua, somos tomados pela linda trilha sonora de Richard Strauss, com a música de Assim falou Zaratustra, o lindo poema sinfônica composto em 1896, inspirado em obra do filósofo Friedrich Nietzsche. A novidade estava na qualidade distinta do arranjo feito pelo brasileiro Eumir Deodato, que fica na memória do espectador. A cena, maravilhosa, faz lembrar a descida de Neil Armstrong no módulo espacial na lua. Cenas que revelam para nós a descida ao mundo desconhecido. E a música acompanha a caminhada solitária de Chance pela periferia de Washington e na grande avenida da capital do império, tendo ao fundo o Capitólio. É uma cena magistral, antológica, como das mais belas sequências do cinema.

 

 

Chance anda pelas ruas como um menino admirado, com seu olhar que se derrama para o entorno, com uma curiosidade que contagia. Foi aos poucos sentindo o peso da maleta e o rigor do calor, bem como a fome. Em passagem singular, ao encontrar-se com uma mulher carregada de embrulhos numa das ruas, ele a interrompe pedindo algo para comer. A mulher se assusta, com o pedido insólito de um branco impecavelmente vestido. Outras cenas ocorrem, no caminho de Chance pelas ruas, como no momento em que encontra com uma gangue de adolescentes, e vem ameaçado por um deles com um canivete. A reação de Chance, imediata, foi responder ingenuamente com o controle remoto, num movimento que indicava sua vontade de mudar de canal, como fazia na casa.

 

Na sequência de sua caminhada nas ruas da capital, depara-se com uma imensa TV colorida numa das lojas, e ele vem tocado por admiração, na busca de encontrar um melhor ângulo para sua visão, sempre com o controle remoto em mãos, acaba saindo da zona segura da calçada e vem abalroado por uma limosine que em marcha a ré comprime suas pernas em outro carro que estava estacionado ali. Diante do ocorrido, tanto o chofer como a passageira vieram prestar apoio. Evitando transtornos com a polícia, a mulher oferece ajuda imediata, convidando-o para tratar-se em sua casa, toda aparelhada para o cuidado de seu marido que estava gravemente doente. A mulher se apresentou como Elizabeth Eve, casada com Benjamin Rand [5]. Interpretando Eve, estava a fabulosa Shirley McLayne.

 

Já no carro, em direção à mansão dos Rand, o jardineiro se apresentou para Eve, que não entendeu direito, e ela imaginou que seu nome fosse Gardner, jardineiro, e não Gardiner, o nome da família. Ficou então sendo Chance o jardineiro. Na conversa entre os dois no carro, ele mencionou a ela que não tinha mulher nem família. Ela relatou-lhe sobre a grave doença do marido e ofereceu ajuda para qualquer possível contato que fosse necessário fazer. Ele agradeceu, dizendo não ter relação com ninguém.

 

Na mansão, inicia o tratamento com o médico da família, e mantém contato com o rico proprietário, Benjamin Rand. A simpatia entre os dois logo se manifesta. Durante a conversa, Rand parabeniza Chance pela sorte de ter uma boa saúde. Ao perguntar sobre seus negócios, Rand foi informado sobre a ocupação de jardineiro no hóspede. Acrescentou que jardineiro era a perfeita descrição de um homem de negócios: “Um homem de negócios eficiente é na verdade um trabalhador na própria vinha” [6]. Na conversa amigável, Chance acabou dando pistas para a reflexão econômica de Rand, que era presidente do Conselho da First American Financial Corporation. Era um homem de influência com contato pessoal com o próprio presidente americano. Rand lamentou com o amigo que agora estava doente, e que sua vida era como “uma árvore com as raízes na superfície”, e que estava apenas aguardando a ida para o quarto lá de cima, numa referência ao além.

 

Por coincidência, Chance acaba encontrando-se com o presidente da república, que tinha vindo a Washington para a reunião anual do Financial Institute. Aproveitou para fazer uma visita ao amigo doente, Rand. Assim, durante a visita, ocorreu o encontro entre Chance e o presidente do império. Rand, de forma irônica, ainda preveniu o novo amigo sobre o encontro com o presidente: “Não mostre a eles a sua mente, eles poderão apreendê-la”. Durante o encontro, o presidente perguntou a Chance o que pensava sobre os tempos difíceis nos negócios e meios financeiros. Com toda a sua leveza e ingenuidade, Chance respondeu recorrendo às metáforas do jardim: “Há a primavera e o verão, mas também o outono e inverno. E depois a primavera e o verão outra vez. Enquanto as raízes não forem arrancadas tudo está bem e terminará bem”. A metáfora iluminou os olhos do presidente, que achou ali uma pista surpreendente para a sua reflexão. Disse a ele, que suas palavras refletiam umas das mais encorajadoras e otimistas declarações ouvida por ele nos últimos tempos. Tanto assim, que fará menção a elas em discurso pronunciado no evento que tinha vindo participar, aplicando-o na fala sobre os efeitos benéficos da inflação. O fato suscitou grande interesse dos meios de comunicação, que buscaram contato com o tal Chance. Virou, assim, surpreendentemente um homem importante, suscitando inclusive o interesse do embaixador soviético numa festa das nações unidas em que se encontraram e conversaram, para o encanto da autoridade russa.

 

Eve, com a aprovação do marido, aproxima-se de Chance, que suscita nela um profundo desejo. Em momentos singulares do filme, vemos cenas em que ela busca seduzir Chance, que reage sempre de forma apática aos gestos de aproximação. Num momento curioso do filme, ele acaba a beijando, sem maiores emoções, apenas imitando cenas de beijo que via na televisão. Em outra cena importante, ela busca maior intimidade com ele, e os dois chegaram a rolar juntos na cama. Na sequência, um pouco assustado, ele diz a ela que prefere vê-la. Interpretando em sua fala, que ele manifestara um desejo vê-la nua, ela de despe, e ao pé da cama, com uma das mãos envolvidas na perna dele, inicia uma cena de masturbação radicalmente inovadora para o cinema da década de 1970. A cena precisou ser repetida cerca de 17 vezes. A ousadia das cenas sexuais, tanto no momento da masturbação de Eve como em outra sequência que trata de homossexualismo, foram muita mais arrojadas no livro do que no filme.

 

Há uma sequência muito bonita ao final do filme, durante o funeral de Rand, quando Chance está junto de Eve, e ao fundo o discurso do presidente americano saudado o amigo. Aos poucos, Chance vai se distanciando de todos, desce vagarosamente pelo campo invernal, até chegar à beira de um lago. Antes, ajeita uma pequena árvore que tinha sido obstruída por um galho caído de árvore maior. Ajeita com delicadeza aquela árvore em início de crescimento e, despojadamente, avança a pé sobre as águas sem se afundar. Estava agora, muito além do jardim, e muito além das querelas político-financeiras. Encontrava então o seu espaço favorito entre a natureza, livre das palavras vãs.

 

Apesar de muitos críticos cinematográficos interpretarem a figura de Chance como um videota, um idiota e pateta, totalmente determinado pela televisão. Acredito que em parte isto está correto. Pude, porém, verificar com um novo ângulo de olhar, o lado jardineiro e menino de Chance, tocado por rara delicadeza e cuidado. Foi o lado que encantou todos aqueles que entraram em contato com ele. Eles passam por todos esses acontecimentos, inclusive da possibilidade da fama, sem perder sua sensibilidade, ternura e gratuidade.

 

O livro fala de um apelo que vem de um caminho diferente, aquele que os simples conhecem, dos que permanecem. Daqueles que conseguem preservar a serenidade. O próprio título do filme, Being There, tem uma analogia bonita com o Caminho do Campo, de Martin Heidegger [7]. A imagem do jardim é fabulosa para evidenciar esse olhar diferencial que marcou o personagem do filme. Em seu livro, Louvor à terra. Uma viagem ao jardim, Byung-Chul Han, fala da importância do trabalho de jardinagem, entendido como uma meditação silenciosa, um demorar-se no silêncio. Diz o autor que da terra chega o imperativo do cuidado: cuidar bem da terra, tratá-la com esmero. Uma veneração e reverência que perdemos com o tempo: deixamos de ver e ouvir a Terra [8].

 

Nota: 

 

[1] Jerzy Kosinski. O vidiota (Being There). Rio de Janeiro: Artenova, 1971.

[2] Ibidem, p. 13.

[3] Ibidem, p. 16.

[4] Ibidem, p. 33.

[5] Interpretado por Melvyn Douglas.

[6] Jerzy Kosinski. O vidiota, p. 43.

[7] Martin Heidegger. Sobre o problema do ser; O caminho do campo. São Paulo: Duas Cidades, 1969.

[8] Byung-Chul Han. Loa a la tierra. Un viaje al jardín. Barcelona: Herder, 2019, p. 13.

 

 

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