“E nós que nos amávamos tanto”: um olhar sobre o filme de Ettore Scola. Artigo de Faustino Teixeira

Imagem: Filmes em Perspectiva

31 Mai 2022

 

"Sempre fui um apaixonado pelo cinema italiano, que nos presenteia com diretores maravilhosos, entre os quais Ettore Scola (1931-2016). Esse filme, em particular, é de uma beleza única, e recebeu o César em 1977, o mais importante prêmio concedido pelo cinema francês, na categoria de melhor filme estrangeiro".

 

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Eis o artigo. 

 

O Filmes em Perspectiva da quarta feira, 25 de maio de 2022, foi marcado por muita emoção. Trata-se de um evento organizado em conjunto pelo Paz e Bem e o Instituto Humanitas Unisinos - IHU a cada quinze dias. Estávamos juntos eu, Angelo Atalla e Mauro Lopes para debater essa histórica película italiana, C´eravamo tanto amati (E nós que nos amávamos tanto), dirigida por Ettore Scola, e lançado em 1974.

 

 

Sempre fui um apaixonado pelo cinema italiano, que nos presenteia com diretores maravilhosos, entre os quais Ettore Scola (1931-2016). Esse filme, em particular, é de uma beleza única, e recebeu o César em 1977, o mais importante prêmio concedido pelo cinema francês, na categoria de melhor filme estrangeiro.

 

As razões de minha alegria com esse filme são muitas: a direção de Ettore Scola, por quem tenho uma admiração única; o roteiro maravilhoso e feliz de Scola e Age & Scarpelli; a bela fotografia de Claudio Cirillo e a comovente trilha sonora de Armando Trovajoli. Destaco ainda a presença de atores singulares como Nino Manfredi (no papel de Antonio), Vittorio Gassman (no papel de Gianni), Stefano Satta Flores (no papel de Nicola) e Stefania Sandrelli (no papel de Luciana).

 

Scola já estava em seu décimo ano de carreira, tendo realizado filmes marcantes e notáveis comédias, como Ciúme à italiana (1970). Mas foi com o filme de 1974 que ele, de fato, ganhou o reconhecimento do grande público. O título do filme vem retomado do primeiro verso de uma canção de 1918, Come pioveva, de Armando Gil: C´eravamo tanto amati.

 

O filme foi dedicado ao cineasta Vittorio de Sica, que acabou não assistindo a versão final do filme, pois morreu no ano de seu lançamento: 1974. Chegou, porém, a ver um extrato do trabalho.

 

O filme é recheado de passagens de filmes clássicos: Ladrão de Biclicleta (De Sica - 1948 ); O encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein (1925) – a cena do carrinho que desce a escadaria na Praça de Espanha em Roma; O Eclipse de Antonioni (1962) – num momento em que está em cena Elide, mulher de Antonio, e se aborda a incomunicabilidade; Servidão humana, de Kim Novak (1964).

 

 

 

 

 

 

É um filme que passa em revista trinta anos da história italiana, a partir do final de Segunda Guerra Mundial: de 1945 a 1974. A Itália no pós-guerra vai estar sob a hegemonia da Democracia Cristã. Algumas datas importantes são referenciadas no filme, como o referendo de 1946, que optou pelo caminho da República, com 54% dos votos. Há também o episódio importante, ocorrido em 1947 quando De Gasperi baniu do governo os socialistas e comunistas. Por fim, as eleições de 1948, que se realizaram para escolher o primeiro parlamento italiano, confirmando a hegemonia da Democracia Cristã sobre Frente Democrática Popular.

 

É um filme profundo que trata da amizade entre três partisanos italianos, que lutaram na resistência contra o nazi-fascismo: Gianni (Vittorio Gassman), Antonio (Nino Manfredi) e Nicola (Satta Flores).

 

O roteiro traça o percurso diferenciado dos três amigos no pós-guerra: Antonio, um técnico de enfermagem comunista, Nicola, um intelectual cinéfilo de província e Gianni, o militante de esquerda que se transforma num advogado burguês enriquecido, que acaba se envolvendo com um magnata da construção civil, sem escrúpulo algum (Romolo Catenacci – interpretado por Aldo Fabrizi).

 

 

Por interesse, Gianni acaba deixando Luciana para casar-se com a filha de Romolo, Elide (interpretada por Giovanna Ralli). Torna-se alguém de perfil bem diverso: um cínico, ávido pelo poder, com viva megalomania. Elide, sua mulher, vive numa extrema solidão amorosa. Certo dia, toma coragem, chama o marido, que saía de carro, entra no veículo e o faz ouvir uma gravação que ela fez para ele, onde dizia viver um caso com outro. Não era verdade, mas apenas um propósito de transformar aquela crônica indiferença de seu marido.

 

O seu “desprezo” pela mulher permanece mesmo depois que ela morre: e isto é visto numa cena num desmonte de carros acabados, quando ele tem uma visão da mulher, morta num acidente de carro (provável suicídio), conversa com ela. Ela, mais uma vez, em vão, busca a atenção dele, o seu amor, e recebe como resposta a mesma indiferença que ela concedeu a ela em vida.

 

Uma observação: num momento do filme, os dois “parceiros” de negócios, Gianni e Romolo encontram-se sozinhos, e agora solitários. Alias, um traço que acompanha o homem rico, como se diz no filme. O velho capitalista diz a certo momento que o homem rico não precisa pensar... Num rompante, em tirada genial do diretor, diz ao genro: Eu não morro... eu não morro jamais (uma metáfora para dizer que o capitalismo nunca morre). Na sequência, Romolo diz uma frase significativa: “Quem vence a batalha contra a consciência, vence a guerra da existência”.

 

Nicola, apaixonado por cinema e, em especial por De Sica, vem demitido do Liceu onde ensinava, depois de uma furiosa reação sua num debate realizado na escola, quando comentavam o filme Ladrões de Bicicleta . Ele acaba deixando a escola e a mulher (com os dois filhos), mudando-se para Roma com a intenção de fundar uma revista cinematográfica (Cinecultura).

 

Os três tomam rumos diferentes, voltando para suas regiões de origem: Nicola retorna para Nocera Inferiore (sul da Itália); Antonio para Roma e Gianni para Pavia (norte da Itália). Ao longo do filme, por circunstâncias diversas os três se encontram em Roma. Ali celebram o reencontro, depois de trinta anos, no restaurante Mezzaporzione, quando se alegram e se abraçam – como no fim da guerra, celebrando a vitória contra o Nazi-Fascismo.

 

Toda a trama do filme gira também em torno do amor de Gianni e Antonio por Luciana (Stefania Sandrelli), e mesmo Nicola acaba se envolvendo momentaneamente com ela. A personagem Luciana sonhava ser atriz. Ela aparece, inclusive, numa cena onde se retoma o set do filme A doce vida de Fellini (1960), buscando um lugar no filme. Junto dela, o diretor Fellini e o ator Marcello Mastroiani.

 

 

Quatro cenas quem quero destacar:

 

(a) A primeira, do reencontro dos três amigos no simples e tradicional restaurante Mezzaporzione, frequentado por eles na juventude. Ali se abraçam como antes, e cenas de suas atuações durante a guerra são retomadas em flashback. Eles comem, brincam e sorriem divertidamente. Não deixam também de comentar o passado com amargura. Em meio aos debates calorosos na mesa, Gianni tenta dizer uma coisa para os amigos, e não consegue: sobre a mudança de sua postura de vida e política. Durante aquele encontro, Gianni relembra o tempo da união dos amigos na luta da resistência italiana. Relembra a cena daqueles momentos de sonhos e luta comum, e imagina um final diferente para ele durante aquele período, morrendo durante a batalha. E pensa: “Quem dera pudesse ter acabado assim”. Logo em seguida assinala que aquela geração “foi um nojo”, para a surpresa do amigo e militante Antonio. Gianni ainda complementa: “Tudo por um futuro diferente”, um “futuro que passou”.

 

Ao final, já embriagados, os três amigos saem do restaurante e ocorre um esquentado debate político entre Antonio e Nicola, em torno do emburguesamento do proletariado... e Gianni busca separar os dois e tenta lembrar aos “amigos” que eles estão brigando com a pessoa errada. Ele, sim, é o inimigo, agora riquíssimo. Tudo passa, porém, despercebido por eles. Ao final, num momento singelo, vemos Nicola ao chão, em choro convulsivo, sendo acolhido pelos amigos. Uma cena que nunca me saiu da memória, e que se repete na vida política de todos os tempos: a esquerda briga forte entre si, deixando de se unir para brigar com o verdadeiro inimigo.

 

Na sequência, seguem juntos em direção a uma escola pública, onde Luciana e mais um grande número de pessoas, aguardam no espaço as senhas para conseguir uma vaga para o filho na escola. É quando Luciana se reencontra com Gianni, que lhe fala de sua solidão. Ela, agora, diz que está feliz com Antonio, e rompe com qualquer outra possibilidade... Gianni percebe então que perdeu a oportunidade de ser feliz. É um momento bonito, onde uma moça ao violão canta aquela canção que marcou o ideário de uma geração. Um olhar sereno e singelo ocorre entre Antonio e Luciana, pontuando o grande carinho que os une naquele instante.

 

Em cena curiosa do filme, Gianni percebe que seu carro está obstruído num estacionamento de Villa Catenacci, e na tentativa de solucionar o problema, encontra-se com Antonio... Gianni mente para o amigo ao dizer que em razão da penúria econômica agora trabalhava ali, como guardador de carros. Ou seja, esconde a verdade para o amigo, por vergonha de revelar a mudança ocorrida em sua vida. Foi quando nasce a ideia de um possível encontro dos três amigos. Gianni recusa a hipótese em pensamento, mas depois acaba aderindo.

 

(b) A segunda, é o momento em que Nicola, envelhecido e falido, encontra-se com um amigo num estádio e assistem uma fala de Vittorio de Sica sobre o filme Ladrões de Biclicleta. Tratava-se de uma manifestação organizada pelo jornal “Paese Sera”. E ouvem do próprio De Sica a versão dele sobre o final do filme, que, em verdade, dava razão ao posicionamento de Nicola, que em concurso anterior, tinha tentado alcançar a vitória, com um bom prêmio em dinheiro, e que acabou sendo desclassificado ao final por discordância com o roteiro do programa. Era a cena de Ladrões de Bicicleta. De Sica explicava para as crianças como conseguiu fazer chorar o pequeno intérprete, Enzo Stajola.

 

A cena que quero ressaltar, é a de Nicola no estádio, vendo De Sica sendo cumprimentado por muitos e o amigo ao lado o incentiva a ir ao encontro do grande diretor italiano, fruto de sua paixão, e ele recua e fala de seu desencanto com os rumos da história. Ele diz ao amigo que se fosse dizer algo a De Sica diria sobre suas ilusões e esperança, sobre sua desilusão com o tempo, com o rumo sombrio tomado pela história. As coisas tristes e deprimentes que ocorreram ao longo do tempo, que talvez fossem também partilhadas pelo velho diretor De Sica. Ele diz ao amigo: “Nós queríamos mudar o mundo e, no entanto, foi o mundo que nos mudou”.

 

(c) A terceira cena envolve a personagem Luciana, que durante todo o filme tem um papel maravilhoso, de uma ternura singular, um olhar encantador. Ela veio de um relacionamento fracassado com Gianni, que a trocou por interesse por Elide, a filha do grande magnata da construção civil. E o fez por interesse. Num momento do filme, em que vive uma tensão com Antonio, na Praça de Espanha, ela vai numa daquelas máquinas de tirar fotos... Depois desaparece.

 

O amigo Nicola tenta convencer Antonio de aguardar Luciana, mas ele se vai... Nicola então, em busca de Luciana, vai à máquina e observa as quatro fotos que foram saindo, que mostram quatro cenas de uma face que vai se modificando, marcada pela dor de Luciana. Ela desaparece, e na verdade, tenta o suicídio. Vem acolhida em tempo, recebendo todo o cuidado e carinho de Antonio na Pensione Friuli. É quando ela diz a ele que a relação com Gianni tinha terminado.

 

Segue-se um lindo momento do filme, ocorrido numa grande praça de Roma, onde um artista está desenhando a imagem de uma madona no asfalto. A cena é de rara beleza: a câmera do alto, filma o movimento de Antonio e Nicola caminhando para lados diferentes... Vão se afastando gradualmente, num movimento captado pela câmera É quando o filme ganha o seu momento colorido. Todo o percurso anterior do filme era em preto e branco, e a partir de então torna-se colorido.

 

(d) Na quarta cena, nos deparamos com um encontro de Antonio com Luciana. Antonio está caminhando com uma “companheira” de luta na Piazza di Porta San Giovanni. Ele ouve um chamado sutil, e percebe que é Luciana. Ele deixa a companheira e se junta ao amor antigo. Descobre então, em cena linda, que ela tem um filho.

 

Antonio vai permanecer com aquele seu ideal anterior, comendo – como sempre – sua meia pensão, mas agora ao lado da mulher amada (Luciana) e do dois filhos, com a mesma sede de transformação, organizando piquetes e protestos em favor de uma educação digna para seu filho e das outras crianças. A sua “desilusão” política vem mitigada pelo afeto de Luciana.

 

Em síntese, estamos diante de um filme magnífico, de um diretor de esquerda que jamais se deixou engaiolar nas estreitas malhas da ideologia do partido. No seu ideário cinematográfico buscou, mais do que relatar a história da Itália, aquela vida cotidiana de seus personagens. Buscou dar voz aos excluídos, os que estavam na sombra da história. No centro da narração, a história de viventes, com seus problemas concretos, sua dignidade, suas ilusões e sonhos; suas reações face aos grandes acontecimentos e transformações históricas. A pergunta de fundo, que marca também a vida de Scola, é o destino de personagens como Antonio Ricci, aquele operário do filme Ladrões de Bicicleta.

 

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