Como o Patriarcado de Moscou “alistou” o Vaticano na guerra

Patriarca Kirill | Foto: Free-it

06 Mai 2022

 

 

"A única maneira de pôr um fim à manipulação da posição do Vaticano pelas mídias estatais e eclesiais russas é parar de produzir ações e declarações que possam ser interpretadas para alimentar a propaganda russa e fazer declarações muito claras e inequívocas".

 

O artigo é de Thomas Bremer, Regina Elsner, Massimo FaggioliKristina Stoeckl, publicado por Il Regno, 05-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.  

 

Os apelos dos membros da Igreja Ortodoxa Ucraniana (que está em comunhão com o Patriarcado de Moscou) ao Patriarca Kirill para intervir em nome do Presidente Putin são aqui relegadas a "várias posições políticas dos líderes das Igrejas nacionais" e a surdez do Kirill a tais súplicas é chamada de "ficar fora da briga". Nessa publicação da Academia Russa das Ciências, as declarações do Papa Francisco pela paz e pelo fim do derramamento de sangue são interpretadas como "uma posição bastante branda em relação aos discursos contra a Rússia de muitos políticos europeus" e o papel da Igreja Católica é principalmente para ser interpretado como compreensivo às razões da Rússia.

 

O próprio Papa Francisco pouco fez para dissipar esse ponto de vista quando, em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera em 3 de maio, se perguntou se "o ladrar da OTAN à porta da Rússia" forçou Putin a desencadear a invasão da Ucrânia e afirmou que “na Ucrânia foram outros que criaram o conflito".

 

Em suma, todos esses exemplos apontam para o fato de que a Igreja Ortodoxa Russa manipula deliberada e estrategicamente as declarações e as ações do Vaticano para transmitir a mensagem de que o Papa Francisco está do lado do Patriarca Kirill sobre a guerra na Ucrânia. Mesmo quando, em sua entrevista ao Corriere della Sera, o papa chamou o patriarca de "coroinha de Putin", a síntese oferecida pelas mídias russas foi que Francisco chamou Kirill de "irmão". Além disso, a Igreja Ortodoxa Russa se apresenta - lado a lado com o Vaticano - como uma futura força de paz: "As relações entre a Igreja Ortodoxa Russa e o Vaticano podem servir como uma boa base para a posterior formação de uma agenda para a manutenção de paz sobre a crise ucraniana".

 

Se o Vaticano tivesse a intenção de pôr um fim à manipulação de sua posição pelo Patriarcado de Moscou, os responsáveis deveriam antes de tudo reconhecer que essa manipulação está ocorrendo e que a política de equilíbrio diplomático do Vaticano leva a manipulações da Igreja Ortodoxa Russa. Mesmo fazer declarações condenando a guerra de agressão russa na Ucrânia com maior clareza não é suficiente por si só, porque o lado russo simplesmente as ignorará, como também ignora as vozes de sua Igreja Ortodoxa Ucraniana. A única maneira de pôr um fim à manipulação da posição do Vaticano pelas mídias estatais e eclesiais russas é parar de produzir ações e declarações que possam ser interpretadas para alimentar a propaganda russa e fazer declarações muito claras e inequívocas.

 

O Papa Francisco parece interpretar a guerra na Ucrânia como resultado de um conflito de interesses geopolítico entre a Rússia e os Estados Unidos. Essa visão do conflito apresenta lacunas importantes. É enganosa a ideia de que a Rússia esteja defendendo um interesse legítimo de segurança nacional na Ucrânia e que a OTAN tenha supostamente violado esse interesse com suas expansões anteriores.

 

A segurança segundo Kirill e Putin

 

Segurança para quem? Aquela Rússia que alega precisar de garantias de segurança contra a expansão da OTAN, na realidade, há mais de duas décadas não consegue garantir segurança, incolumidade pessoal, dignidade e paz à sua própria população e aos países vizinhos. Políticos da oposição, jornalistas críticos, ativistas da sociedade civil e cidadãos comuns foram silenciados, reprimidos e até assassinados. Mesmo dentro da Igreja Ortodoxa Russa, o protesto foi sufocado. No verão de 2019, várias dezenas de padres da Igreja Ortodoxa Russa assinaram uma carta de protesto contra a dura repressão aos manifestantes pacíficos antes das eleições do governo da cidade de Moscou. O Patriarca Kirill condenou a carta como uma politização da Igreja. Os episódios de repressão de protestos civis legítimos nos ensinam que o mundo e especialmente o Vaticano não devem aceitar como legítimas as pretensões de interesses de segurança diante das flagrantes violações dos direitos e da segurança pessoal dos cidadãos russos por seu Estado. O Kremlin não quer segurança da expansão da OTAN para construir a paz, mas para continuar reprimindo sua própria população e desestabilizar os países vizinhos.

 

Nas últimas semanas, o esforço diplomático do Vaticano em relação a Moscou não foi acompanhado por igual intervenção em relação às outras Igrejas Ortodoxas da região: a Igreja Ortodoxa Ucraniana e seu Metropolita Epifânio, a Igreja Ortodoxa Ucraniana em comunhão com o Patriarcado de Moscou e seu Metropolita Onofrio, que criticou abertamente o silêncio de seu patriarca. A Santa Sé deveria aproveitar a oportunidade para unir esforços com todas as Igrejas ortodoxas do país para permitir corredores humanitários ou levar socorro nos lugares sitiados. Deveria apoiar em nível informal e não oficial as forças da Igreja Ortodoxa Ucraniana que tomam as distâncias de Moscou. A relutância do Vaticano em envolver outros atores ortodoxos na Ucrânia só beneficia o Patriarcado de Moscou. A Santa Sé deve reconhecer a gravidade da situação pastoral na Ucrânia, onde os crentes ortodoxos estão sendo atingidos por uma brutal agressão militar por um país cujo líder religioso, o Patriarca Kirill, afirma que essa violência faz parte de seu plano para a sua salvação (salvação dos valores liberais e democráticos).

 

Além disso, ao manter uma atenção privilegiada, para fins ecumênicos, na hierarquia, o Vaticano torna-se dependente de um Patriarcado de Moscou que já está, mesmo aos olhos do Papa Francisco, profundamente comprometido ("o patriarca não pode se transformar no coroinha de Putin", disse ao Corriere della Sera). Desta forma, a Santa Sé corre o risco de prejudicar o próprio projeto ecumênico, mas também sua própria tradição e autoridade diplomática.

 

Em perspectiva ecumênica

 

Onde estão a paz, o valor da vida e a veracidade nas ações recentes do Patriarca Kirill? Ele justificou a guerra nos mesmos termos que o governo russo; exortou os soldados russos a travarem uma guerra justa contra as "forças do mal"; doou um ícone aos Guardas de Segurança Nacional para sua missão na Ucrânia e apresentou esta guerra como aquela em que a Rússia é a vítima e não o agressor.

 

Um Vaticano que continua a dialogar com essa hierarquia, ignorando todas as outras articulações da Igreja Ortodoxa Russa dentro e fora das fronteiras da Federação Russa e ignorando a Igreja Ortodoxa ucraniana autocéfala, corre o risco de enormes danos ao projeto ecumênico. O ecumenismo também é guiado pela ideia de que todas as igrejas cristãs compartilham pontos de vista semelhantes sobre a paz, o valor da vida humana e a verdade. Por muitos anos, o Patriarcado de Moscou vem interpretando unilateralmente esses valores de maneira restritiva e exclusiva em termos de valores cristãos tradicionais. Em meados da década de 2010, o Patriarcado de Moscou, assim como os neoconservadores nos Estados Unidos alguns anos antes, sonhavam com uma "santa aliança" das forças cristãs conservadoras com o Vaticano, sonho interrompido pelo papado de Francisco.

 

O pontificado de Francisco deixou clara essa interrupção, que foi declarada com clareza oficiosa, mas inegável em relação ao bloco neoconservador nos EUA. Em 2017, o diretor de La Civiltà Cattolica, o padre jesuíta Antonio Spadaro, e Marcelo Figueroa, pastor presbiteriano e diretor da edição argentina do jornal vaticano L'Osservatore romano, definiram essas alianças, construídas exclusivamente em torno da rejeição da homossexualidade, do casamento homossexual, do feminismo e do laicismo, um "ecumenismo do ódio"; o Papa Francisco reestruturou alguns órgãos centrais dentro do Vaticano de forma a limitar a influência dos militantes neoconservadores das “guerras culturais”. Este mesmo tipo de ecumenismo também deveria ser denunciado pelo Vaticano olhando para o Leste. Abrindo hoje ao Patriarcado de Moscou em termos de ecumenismo de valores, o Papa Francisco arrisca deixar entrar pela porta dos fundos aquelas forças reacionárias que desde 2013 tenta segurar dentro de sua própria Igreja.

 

O Papa Francisco ainda deposita esperanças no diálogo ecumênico com a atual liderança da Igreja Ortodoxa Russa. Por enquanto, não há pré-requisitos importantes para esse diálogo: um empenho com a paz, com o valor da vida humana e com a verdade. A manipulação deliberada e estratégica das mensagens que saem do Vaticano pelo Patriarcado de Moscou e pelas mídias russas deveria soar um alarme. É difícil imaginar que o verdadeiro diálogo ecumênico e a comunhão entre as Igrejas Ortodoxas possam ser restaurados sem sinais de metanoia por parte dos líderes da Igreja Ortodoxa Russa. Entendemos e respeitamos o empenho em longo prazo do Papa Francisco com a paz e contra a corrida armamentista. No que diz respeito à situação na Ucrânia, porém, este empenho por si só não é suficiente, porque é evidentemente o jogo daqueles que apoiam a guerra. Por essas razões é necessário por parte do Papa Francisco esclarecer a posição da Igreja Católica sobre a Ucrânia.

 

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