O florescer de um Evangelho auscultado numa floresta de religiões

Com a perspectiva de que o “Evangelho não é religião”, Eduardo Hoornaert fala hoje no IHU sobre o futuro do cristianismo e as consequências de quando religião e Evangelho se encontram

Foto: Daniel Bizzo | Cathopic

Por: João Vitor Santos | 20 Abril 2022

 

Na última conferência da 19ª Páscoa IHU – incertezas e esperanças do tempo presente, o teólogo José María Castillo foi enfático ao defender que “o cristianismo não é primordialmente uma religião. O cristianismo tem seu centro e sua base no Evangelho”. Na semana que iniciavam as celebrações da memória da Paixão de Cristo, o professor fez provocações para que, talvez, nessa Páscoa, vivêssemos uma verdadeira conversão evangélica e não apenas religiosa.

 

 

Agora, nas Oitavas da Páscoa, o convite é para, quem sabe, aprofundarmos essa reflexão desde um outro olhar. Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina - CEHILA percorre um outro caminho para apresentar uma tese similar à de Castillo. Para ele, “Evangelho não é religião”.

 

Porém, haveria uma forma de salvar o cristianismo tendo como saída formas de vidas que radicalizem a experiência do Evangelho? Para o professor Hoornaer, é possível, mas é preciso uma capacidade de perceber o Evangelho numa confusa e densa mata de religiões que nos inebriam as vistas. “Como enxergar veredas evangélicas nessas densas florestas religiosas? Como destrinchar tantos fios entrelaçados, andar por tantos meandros? E como tratar de tudo isso de forma inteligível a pessoas não eruditas?”, questiona em artigo publicado em 2021 pelo IHU.

 

Por óbvio, não há receita pronta e nem se trata de promover um desmatamento, derrubando e desmatando áreas em que germinam religiões. Por isso, Hoornaert convida a partilhar essa sua reflexão a partir da palestra intitulada O futuro do cristianismo: o encontro entre evangelho e religião, que ocorre ao vivo, em formato live, logo mais às 19h30min, dentro da programação da 19ª Páscoa IHU – incertezas e esperanças do tempo presente.

 

 

 

Uma agitação que confunde

 

Nesse mesmo artigo publicado pelo IHU, Eduardo Hoornaert contata que “estamos longe de perceber as reais dimensões do que acontece com o cristianismo”. Isso porque, segundo ele, é como se estivéssemos em meio a uma agitação ruidosa sem perceber o que, de fato, deve ser escutado. “Há uma complexidade, um entrelaçamento de dados do passado com perspectivas do futuro, que dificulta a clareza. Percebemos com dificuldade o que está acontecendo porque estamos metidos em meio a uma movimentação que excede de longe o limitado momento de nossas vidas e nossa capacidade de observação. Frequentemente reagimos mais com a emoção que com a razão”, completa

Na reflexão, ele chama um outro teólogo que talvez possa nos dar pistas sobre o que escutar: o belga, que adotou o Brasil como pátria, José Comblin. Ou, melhor, não escutar e tampouco falar, mas sentir e viver, pois, como recorda Hoornaert, Comblin indicava, até como o "slogan" de sua vida, que se deve "não falar, agir". É dele que Hoornaert toma a ideia de "Evangelho não é religião", a partir de uma singela assertiva que o teólogo proferia em meio a uma triste política que institucionaliza a experiência do Deus que se fez humano na terra: "Evangelho não é religião. A evolução política e religiosa pode nos deixar tristes, o Evangelho nunca!"

 

 

 

Hoornaert identifica que “estamos diante da proclamação de um método”. E através desse método podemos ter “mais facilidade em compreender o que acontece conosco e em nosso redor, em termos de vivência do cristianismo. Um método que traz clareza onde muitos se perdem na confusão, escancara portas longamente fechadas, abre horizontes de reflexão e ação, provoca uma reviravolta no modo de se pensar a fé”. Para o historiador, a grande novidade está em perceber que “Jesus se desdobra em duas tradições entrelaçadas: a evangélica e a religiosa, a primeira expressando a vinda de Deus ao homem, a segunda a procura de Deus pelo homem. Enxergar a diferença facilita ver claro no complexo tecido da herança cristã, feita do entrelaçamento de múltiplas tradições, frequentemente contraditórias”.

 

Evangelho encarnado

 

Podemos, ainda, nos questionar sobre o que se trata viver o Evangelho para além da institucionalização política da religião. Talvez possa olhar para a guerra entre Rússia e Ucrânia para corporificar um pouco disso. Em meio à Páscoa do Senhor, vivida na semana passada pelo cristianismo ocidental e a ser vivida nessa semana por cristãos ortodoxos, bombas ceifam vidas e destroem cidades enquanto alguns crentes e fiéis professam sua fé evangélica em suntuosos templos. Que dimensão evangélica há de ser essa? Muito provavelmente está para a mesma dimensão que, no tempo de Jesus, condenava mulheres ao apedrejamento e proibia que se aliviasse a dor do próximo em dia de sábado.

“A experiência de Jesus e dos profetas de Israel não constitui a única revelação de Deus. Há múltiplas experiências, no tempo e no espaço, todas marcadas pela fragilidade congênita de empreendimentos humanos e pela sempre presente possibilidade de fracasso. Se Mestre Comblin se concentra na experiência de Jesus na Palestina, é porque ela originou a tradição à qual ele pertence. Mas ela não escapa da precariedade e provisoriedade de tudo que é humano. Assim, por exemplo, Jesus, pelo que consta no Evangelho de Marcos, pensou que a chegada do Reino de Deus vitorioso fosse iminente: Alguns que estão aqui não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com poder (Mc 9, 1). Paulo diz mais ou menos o mesmo: Nós, que ficamos vivos até a vinda do Senhor, não precederemos os mortos (1Ts 4, 15)”, reflete Hoornaert.

 

O Tempo de ação (Petrópolis: Vozes, 1982), de José Comblin, é identificado por Hoornaert como a origem da frase que vira um modelo de vida: "não falar, agir" (Imagem: divulgação)

 

Assim, por outro lado, podemos pensar em quantos nessa semana não respeitaram o jejum da Semana Santa, não trocaram a carne vermelha pelo peixe e sequer entendem o que é o Tríduo Pascal. No entanto, estavam no mutirão da comunidade ofertando doce a quem nada tem, no cuidado com os idosos doentes, no pleno ato de assumir sua missão de educar. É disso que se fala em viver o Evangelho, com valores resgatados de uma balbúrdia religiosa institucional?

 

Talvez, muito provavelmente sejam essas alguns tipos de “aproximações provisórias”, como identifica Hoornaert na reflexão bem mais elaborada de teólogos como Dietrich Bonhoeffer, John Robinson, Rudolf Bultmann, Roger Lenaers, José María Vigil, Shelby Spong ou o próprio José María Castillo, com que abrimos esse texto. Mas, mesmo assim, sem tanta elaboração, podemos pensar que tais aproximações “apontam um futuro de maior clareza em termos de enunciações teológicas. Um ponto que realça o trabalho de Mestre Comblin é que ele trabalha por meio de largos painéis históricos. Assim, a teologia se situa na concretude da história e desse modo facilita a comunicação popular” e, acrescentaríamos, de um Evangelho encarnado.

 

Saiba mais sobre Eduardo Hoornaert

 

Nasceu em Bruges, na Bélgica, em 1930. Cursou dois anos de Línguas Clássicas e História Antiga na Universidade de Lovaina, entre 1949 e 1951; Estudou teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955; Em 1957 ingressou no Colégio para a América latina fundado pelo episcopado belga na Universidade de Lovaina. Chegou em João Pessoa, Brasil, em 3 de setembro de 1958. Foi professor catedrático em História da Igreja, sucessivamente nos Institutos de Teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982-1991).

  

Eduardo Hoornaert (Foto: Cesp)

 

É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), entidade autônoma fundada em 1973 em Quito, Equador; Dentro da Comissão foi coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto "História do Cristianismo"; Entre 1994 e 1997 foi pesquisador visitante no Mestrado de História da Universidade Federal da Bahia, com bolsa pelo CNPq.

 

Desde 1962 escreve artigos de cunho histórico para a Revista Eclesiástica Brasileira (REB), da Editora Vozes, na área do catolicismo no Brasil e do cristianismo em geral. Durante esses anos todos administrou cursos e proferiu conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estuda a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.

 

Artigos de Eduardo Hoornaert reproduzidos pelo IHU

 

 

Reportagens com Eduardo Hoornaert reproduzidas pelo IHU

 

 

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