Uma espiritualidade intimamente ligada à criação de Deus tem raízes profundas nas Escrituras, nas quais, no Gênesis, Deus separa a luz das trevas e a água do céu; depois cria todas as plantas e criaturas da terra e do mar, e vê que tudo é bom.
A reportagem é de Barbara Fraser, publicada em National Catholic Reporter, 09-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O livro de Jó, entre outros, retoma o tema, narrando um Deus que fala intimamente sobre as constelações, as muitas formas que a água assume, a sabedoria do íbis e a fome dos leões, e o ciclo reprodutivo de cervos, ursos e cabras da montanha – mas tem uma opinião bastante ruim sobre o senso comum da cegonha.
Alguns milênios depois, São Francisco de Assis acrescentou sua voz àqueles que reconhecem a interconexão de todas as coisas, apesar da dor da sua própria doença, encontrando Deus em – e louvando a Deus por meio de – toda a criação, incluindo o sol, a lua e as estrelas, o vento, a água, o fogo e a própria Terra.
Portanto, não é nenhuma surpresa que o Papa Francisco, o homônimo do santo, ecoe essa ideia em seus próprios escritos, especialmente na sua encíclica de 2015 intitulada Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum, e na “Querida Amazônia”, a exortação apostólica que surgiu do Sínodo para a Amazônia de 2019.
Com a sua ênfase na ecologia integral, Francisco vincula o cuidado com a criação de Deus às nossas prioridades econômicas, políticas, sociais e religiosas. De muitas formas, com este papa, a ecoespiritualidade se tornou central.
O prefixo “eco-” antes de “espiritualidade” vem do grego oikos, que significa casa – um lembrete de que “esta casa é a única que temos, estamos todos juntos, o que ocorre em Calcutá afeta Nova York, Santiago do Chile e São Paulo”, disse o padre verbita chileno Fernando Díaz.
“É realmente uma casa comum, e essa casa comum está ameaçada”, acrescentou Díaz. “Estamos todos conectados, e essa é uma forma de entender esse lar que exige que olhemos além do racionalismo instrumental que nos guiou de um modo tão destrutivo no século passado.”
Díaz, que trabalha há anos com o povo Mapuche no sul do Chile, descobriu que os povos indígenas têm uma visão mais holística da relação entre os seres humanos e os outros seres não humanos, que exige “uma perspectiva diferente, uma forma de entender como vivemos e por que vivemos nesta casa que é para todos, e onde todos devem ter um lugar, da qual devemos cuidar”.
E acrescentou: “É aí que entra a ecoespiritualidade”.
Moema Miranda vê um entendimento semelhante entre as pessoas no seu Brasil natal que lutam contra os impactos da mineração em suas comunidades. O Brasil viu vários desastres relacionados à mineração nos últimos anos, incluindo a ruptura de uma barragem de rejeitos na mina de Brumadinho, que enviou uma cascata mortal de lodo tóxico pelas comunidades a jusante, e à expansão da mineração ilegal de ouro.
Miranda, leiga franciscana, faz parte da Rede Igrejas e Mineração, que, com a Verbo Filmes, produziu um vídeo que explica a ecoespiritualidade para pessoas que ainda não conhecem a ideia.
Enquanto teólogos brasileiros como Ivone Gebara e Leonardo Boff têm escrito há anos sobre a conexão entre a ecologia e a teologia, Miranda e outros membros da Rede Igrejas e Mineração queriam “entender como as comunidades que resistem à mineração fazem isso, onde as vítimas encontram forças para continuar resistindo”, disse ela. “Porque apenas aceitar o óbvio ou ser cortado pelo sistema parece o caminho mais fácil.”
Ao trabalhar com os pequenos agricultores, comunidades indígenas e afrodescendentes mais afetados pelas práticas de mineração, “percebemos que não se tratava simplesmente de teologia ecológica, mas também de uma espiritualidade, de algo muito mais profundo, um modo de vida, uma conexão”, disse ela.
“Essa presença espiritual não se encaixa no marco do racional, do teológico”, acrescentou. “É muito mais. Cada vez mais nos transformamos em uma comunidade ecoespiritual, porque a ecoespiritualidade se desenvolve em comunidade.”
Esse elemento comunitário é algo que o Papa Francisco entende bem, de acordo com Alirio Cáceres, um diácono permanente que assessora a rede Cáritas da Igreja Católica colombiana em assuntos relacionados à ecoespiritualidade e à ecologia integral.
Francisco promove uma “cultura do encontro com Deus, consigo mesmo, com os outros humanos e com os seres da natureza, que também são irmãos e irmãs, porque são filhos do mesmo criador”, disse Cáceres.
Para Cáceres, “a espiritualidade é a força motriz da vida, o próprio sentido da vida. Por isso, acho importante vê-la como um contexto para este papado, que tem muito a ver com diálogo, encontro, abertura a outras formas de ver as coisas”.
Na Laudato si’, o papa aponta para as consequências da perda desse senso de unidade com toda a criação, escrevendo que, se os humanos perderem seu senso de admiração e de encanto pela criação, “as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos” [n. 11].
Ele acrescentou que a “pobreza e a austeridade de São Francisco não eram mero verniz de ascetismo, mas algo muito mais radical: uma recusa a transformar a realidade em um objeto simplesmente a ser usado e controlado”.
Para Díaz, embora o franciscano São Boaventura e outros tenham colocado um fundamento teológico a isso, a teologia não é suficiente para descrever a relação dos humanos com o restante da criação.
“No mundo indígena, a relação com uma árvore, um lago, a floresta, o céu, as estrelas, a lua, o sol não é um estudo sistemático, racional, lógico. É uma experiência de conhecimento conatural”, disse. “O que o mundo indígena nos dá é a oportunidade de se reconectar com a criação.”
A Ir. Caroljean Willie, das Irmãs Caridade de Cincinnati, viu isso durante seus anos como representante da Federação das Irmãs da Caridade junto às Nações Unidas.
Todos os anos, ela participava da conferência de duas semanas do Fórum sobre Questões Indígenas da ONU. “E todos os anos [os participantes indígenas] diziam a mesma coisa para nós: todos vocês continuam falando sobre o cuidado da criação, sobre sustentabilidade. Mas ninguém está falando conosco, e nós fizemos isso a vida toda.”
Para Willie, que agora dirige o EarthConnection, o centro ambiental da sua congregação em Cincinnati, o crescimento espiritual é uma resposta ao estímulo de Deus a sair da zona de conforto.
O risco, no entanto, é uma má interpretação, como a que ocorreu no Sínodo dos Bispos para a Amazônia no Vaticano em 2019. Dois dias antes do início oficial do Sínodo, Francisco marcou o dia da festa do seu homônimo, 4 de outubro, com uma cerimônia de plantio de árvores nos Jardins do Vaticano, acompanhado por delegados do Sínodo, alguns deles indígenas da Amazônia.
Os críticos católicos conservadores atacaram, alegando que a oração em torno de uma bandeira semelhante a uma mandala, na qual os participantes colocaram símbolos, era pagã e mostrava que Francisco tolerava – ou talvez promovia, em obras como a Laudato si’ – o panteísmo, ou a adoração da natureza como um deus.
Mas adorar a natureza como um deus não é o mesmo que louvar a Deus em toda a criação. O primeiro é panteísmo, e o segundo é panenteísmo – em que apenas duas letras marcam a diferença entre a heresia e a ortodoxia, disse o padre franciscano Daniel Horan, diretor do Centro de Espiritualidade do St. Mary’s College em Notre Dame, Estados Unidos, e colunista do NCR.
“O cristianismo católico e ortodoxo sustenta que Deus se aproxima de toda a criação”, um tema que começa com o segundo versículo do primeiro livro do Gênesis e continua ao longo de todo o Antigo Testamento, disse Horan.
Em seu Cântico das Criaturas, São Francisco não adora o sol, a lua ou outros elementos naturais como deuses, mas diz claramente que louva a Deus com eles e por meio deles.
São Francisco e seus seguidores abraçaram “essa ideia de que as criaturas não humanas, o restante da criação de Deus, também têm uma relação inerente com o divino, porque Deus é a única fonte de toda a criação, humana e não humana. Estamos todos unidos, como diria o Papa Francisco, no espírito da ecologia integral. Toda a criação está conectada”, disse Horan.
E, assim como o mundo natural evolui, disse Willie, a ecoespiritualidade levanta questões que chamam os cristãos a aprofundarem e a ampliarem a sua compreensão do divino.
“Se vemos o universo em constante expansão, de que modo estamos permitindo que o nosso marco de referência mude?”, disse. “E, se o universo está evoluindo, como estou permitindo que eu e o meu conceito de Deus evoluam?”
“E acho que isso também questiona o nosso conceito de Deus. Ele é estático ou dinâmico? E a nossa vida de oração? É estática ou dinâmica? Acho que a ecoespiritualidade nos chama a reconhecer aquilo que Tomás de Aquino disse há muitos anos: o primeiro livro da revelação é a criação.”
A ecoespiritualidade leva a uma compreensão de que “fazemos parte de uma teia inter-relacionada, interconectada e em evolução”, acrescentou. “Ela nos chama a viver em uma relação correta com toda a criação.”