07 Julho 2020
"Pode-se dizer, portanto, que Paulo foi um grande apóstolo, o apóstolo em nada misógino, mas, pelo contrário, um grande valorizador do gênio feminino na evangelização", escreve Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 03-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o teólogo, "Paulo foi a Oportunidade perdida para a Igreja nesses dois milênios, porque ele foi abordado de uma maneira ingenuamente literal e fundamentalista, atribuindo-lhe em qualquer caso declarações - mesmo que algumas vezes não sejam dele - que, tomadas ao pé da letra, foram usadas como fundamento bíblico incontestável e inevitável para sujeitar a mulher ao homem na família e na sociedade e privá-la das várias funções eclesiais que ela poderia muito bem realizar com grande vantagem para o corpo eclesial, como acontecia na primavera da Igreja primitiva".
Paulo misógino? As mulheres releram o apóstolo e o "liberaram" dos estereótipos. Assim consta na faixa publicitária amarela canarinho que envolve a capa do livro, piscando e olhando para o leitor distraído para atraí-lo. Nesse caso, sem enganá-lo e decepcioná-lo.
Rosanna Virgili, formada em Letras e Filosofia e licenciada em Ciências Bíblicas pelo PIB em Roma, foi encarregada do projeto de traduzir e comentar todo o Novo Testamento junto com outras exegetas. Em 2015, foi publicado o comentário sobre os Evangelhos; agora é a vez da tradução e do comentário das treze epístolas do corpus paulinum.
Rosanna Virgili ensina Exegese no Istituto Teologico Marchigiano. Emanuela Boccioni é engenheira de materiais, doutora em teologia bíblica no Angelicum em Roma e leciona na escola secundária estatal. É consagrada à ordo virginum, assim como é a terceira exegeta, Rosalba Manes. Licenciada em Ciências Bíblicas no PIB e doutora em Teologia Bíblica na Gregoriana, ela ensina em vários institutos teológicos italianos.
Após a apresentação da obra (p. 9-12), Virgili traça uma introdução geral às epístolas de Paulo (p. 17-32). Ela foi responsável pela tradução e comentário sobre Rm (p. 33-240), 1Cor (p. 241-440), Gl (p. 585-674), e um excursus final muito importante (p. 1127-1143).
Por sua parte, Manes supervisionou a tradução e os comentários sobre 2Cor (p. 441-584), Fil (p. 757-814), 1Ts (p. 885-936), 2Ts (p. 937-968), 1Tm ( 983-1038), 2Tm (p. 1039-1076), Tt (p. 1077-1104) e Fm (p. 1105-1126). Também redigiu a Introdução às Epístolas aos Tessalonicenses (p. 873-884) e a Introdução às Epístolas Pastorais (p. 979-982).
Boccioni por sua vez tratou da tradução e comentário de Ef (p. 675-756) e Cl (p. 815-872) e no último parágrafo do excursus final (p. 1144-1148).
Aconselho começar a leitura do volume a partir do excursus final de Virgili: “A oportunidade perdida. Paulo e as mulheres" (p. 1127-1143). De fato, fornece o viés certo para abordar a tradução e o comentário das epístolas do grande apóstolo, identificação viva com Cristo.
Paulo foi a Oportunidade perdida para a Igreja nesses dois milênios, porque ele foi abordado de uma maneira ingenuamente literal e fundamentalista, atribuindo-lhe em qualquer caso declarações - mesmo que algumas vezes não sejam dele - que, tomadas ao pé da letra, foram usadas como fundamento bíblico incontestável e inevitável para sujeitar a mulher ao homem na família e na sociedade e privá-la das várias funções eclesiais que ela poderia muito bem realizar com grande vantagem para o corpo eclesial, como acontecia na primavera da Igreja primitiva.
Aqui está uma lista de "oportunidades perdidas". O imperioso mandamento da submissão da mulher ao homem (Tt 2,5), a ordem dada a elas para se calarem nas assembleias (1 Cor 14,34-35), a diretiva de usar o "véu" (suposto e puramente imaginário, 1 Cor 11,2-16), a designação de Febe como "diakonos" (Rm 16.1) foi excluída na tradução oficial da CEI 2008 - traduzida com "a serviço de", enquanto era "diaconisa" na edição de 1974 - e lembrada somente em sua qualidade de pura e simples prostatis/ "padroeira" (Rm 16,2; traduzida em 1974 e 2008 com "protegeu muitos"), que também era um título que indicava um papel importante na sociedade civil. Também deve ser bem entendida a pesada passagem de 1Tm 2,15.
Essas são apenas as "oportunidades perdidas" mais impressionantes para a Igreja e para a sociedade nesses dois mil anos de história. Em passant, lembro-me do belo livro do falecido G. Biguzzi (1941-2016) Velo e silenzio. Paolo e la donna in 1Cor 11,2-16 e 14,33b-36 (SuplRivB 37), EDB, Bolonha 2001 (com uma teoria explicativa interessante, embora não aceita por todos). Com uma brincadeira, poder-se-ia dizer às freiras que, no que diz respeito a Paulo, elas podem tranquilamente remover o véu de suas cabeças ...
Algumas das passagens incriminadas de Paulo, especialmente a suposta ordem de manter silêncio imposta às mulheres na assembleia (1 Cor 14, 34-35), poderiam ser uma interpolação subsequente. Esta passagem paulina tragicamente famosa e presumivelmente "famigerada" pode ser interpretada - como Virgili faz - como uma intimação disciplinar feita às mulheres para não proferirem discursos como glossolalias incompreensíveis que trazem confusão, desordem e indecência na assembleia cristã, fazendo os discípulos de Jesus correrem o risco de serem confundidos com os adoradores de um dos tantos cultos pagãos presentes na cidade.
Não é possível fazer intimar a Paulo o silêncio e a proibição de ensinamento em assembleias àquelas mulheres que ele havia lembrado anteriormente como tendo a possibilidade concreta de profetizar na assembleia (1 Cor 11,5: “Mas toda mulher que ora ou profetiza com sua cabeça descoberta… ")!
Como podem pedir explicações em casa aos maridos as mulheres que são viúvas, separadas ou virgens (1 Cor 7,8.15.28) e que são especificamente louvadas e incentivadas por Paulo?
Parece-me um bom critério hermenêutico ter em mente que práxe de Paulo e suas palavras como um todo devem iluminar as eventuais passagens obscuras e não vice-versa, correndo o possível risco de ler toda a figura do grande apóstolo com antolhos ou com os óculos de sol do preconceito cultivado por dois mil anos contra ele!
As páginas relativas à "submissão" pertencem à Epístola aos Efésios, que provavelmente não é uma carta autoral - ou seja, uma carta autêntica, composta por Paulo - mas (como as outras duas epístolas deuteropaulina, Cl e 2Ts, e como as trito-paulinas Epístolas Pastorais, 1-2Tm e Tt) pertence à tradição paulina florescida especialmente no ambiente de Éfeso por obra de um discípulo de Paulo que recupera e atualiza seu pensamento em uma atmosfera eclesial já profundamente alterada.
Isso também se aplica às frases de "moralidade familiar" contidas nas Epístolas Pastorais (1-2Tm; Tt). São chamadas de "trito-paulina" e "Epístolas Pastorais" porque são dirigidas não a uma comunidade, mas a uma única pessoa e, presumivelmente, datam de 80 a 90 d.C. Elas refletem uma atmosfera eclesial agora totalmente nova em comparação à época paulina. O "cristianismo" deve se aclimatar no mundo greco-romano e apresentar-se a ele como não perigoso (sem se tornar bürgerlisches Christentum, um "cristianismo burguês", como alguém sentenciou).
Deve-se prestar atenção primeiro à praxe de Paulo e depois também ao conjunto das suas epístolas autorais / autênticas. Nelas, constata-se a presença de numerosas figuras femininas (por exemplo, Priscila, Maria, Júnias, Trifena, Trifosa, Perside, Júlia lembradas por Paulo nas saudações finais de Rm 16). Sete mulheres contra a menção de apenas cinco homens ...
Júnias "se distingue entre os apóstolos" (Rm 16,7), qualificação a ser claramente entendida no amplo sentido de "enviados" das igrejas para a evangelização: os "apóstolos" eram muito mais dos doze .... Talvez Júnias fosse uma parente de Paulo. Sobre sua pessoa - às vezes entendida como figura masculina - existe um belo artigo de M. Del Verme na Rivista Biblica LVIII (2010), 439-468 (em inglês).
Paulo define e trata as mulheres mencionadas em suas epístolas como suas "colaboradoras", pessoas que "lutaram como atletas" com ele pelo anúncio do evangelho. Elas provavelmente tiveram a tarefa de orientar a comunidade que se reunia em (suas) casas.
Pode-se dizer que nas comunidades paulinas algumas mulheres tiveram um papel eclesial de destaque e que "exerciam funções que não tiveram nem no tempo de Jesus, porque só se pode falar em responsabilidades eclesiais no período após a Páscoa e especificamente nas Igrejas paulinas, já que não há notícias de mulheres ativas nas Igrejas judaico-cristãs"(p. 1136, sublinhado no texto de Virgili, que cita os estudos de Penna, Calduch-Benages, Murphy O'Connor - Militello - Rigato relatados depois na bibliografia)
Virgili ressalta que, com sua teologia, Paulo destrona a Lei e a circuncisão, intimamente ligada a ela. São realidades ligadas ao corpo do homem. Insistindo na fé em Cristo como o único meio de justificação, ele insere todos os homens e mulheres na descendência de Abraão para o puro dado da fé. Desse modo, ele demole o patriarcado da história da salvação e também aquele que imperava dentro dos muros domésticos na época greco-romana de seu tempo. Com a figura de Febe, Paulo não destrói apenas o patriarcado de tipo familiar, mas também o de tipo político.
As autoras abordam o discurso da "submissão" (cf. Ef 5,21s; Tt 2,5), entendendo que o verbo indica o serviço recíproco entre marido e mulher. Elas traduzem o verbo hypotassomai como "estar aos pés" de Jesus para ouvir juntos sua palavra, assim como fez Maria de Betânia com Jesus (cf. Lc 10, 39). A mulher e o homem são seres com igual dignidade, chamados a se colocar juntos e reciprocamente aos pés do outro em um serviço de ternura, amor e acolhimento.
A mulher foi tirada com um verdadeiro "parto" do costado do homem, mas, na realidade cotidiana, o homem não vem ao mundo exceto através da mulher, observa Paulo. Em Gl, a figura de Abraão desaparece com o progredir dos capítulos, enquanto emergem a figura da "mulher" da qual Jesus nasceu e a da Igreja concebida a partir da figura feminina de Sara.
Pode-se dizer, portanto, que Paulo foi um grande apóstolo, o apóstolo em nada misógino, mas, pelo contrário, um grande valorizador do gênio feminino na evangelização.
De cada carta do corpus paulinum é esboçada primeiro uma introdução geral, com a apresentação de um esquema literário-retórico que orienta e organiza a leitura de acordo com o correto cursus desejado pelo apóstolo. Após a tradução pessoal apresentada por amplas perícopes, segue o comentário exegético-teológico, que valoriza as aquisições às quais chegaram os mais recentes estudos filológico-exegético-teológico. Não há discussões filológicas-gramaticais nem notas de rodapé. Uma ficha muito sintética - colocada no início ou no final do comentário - oferece a bibliografia essencial mais recente.
O gênio feminino dos três exegetas é evidente na fineza da interpretação, na delicadeza da linguagem e dos juízos, na modernidade do léxico empregado, que "atualiza" a língua italiana usada na tradução litúrgica oficial. Assim, por exemplo, a fé de Abraão é "contabilizada" e Paulo é levado a discutir sobre o "valor agregado" dos judeus ...
É claro que não se pode concordar com todas as opções de tradução e interpretação teológica propostas pelas estudiosas.
Em Gl 1,4, a tradução "nos defende" parece-me fraca, enquanto Paulo entende a redenção implementada de maneira dramática: "nos tirar ".
Na tradução e interpretação de Romanos, sempre considero muito fascinante a tradução de J.-N. Aletti, tanto no que diz respeito a Rm 3.8 (“Não inteiramente”, em vez de “Não!”), quanto a Rm 11.12.
Nesse caso, Aletti fala de "diminuição" de Israel em oposição à sua plenitude, enquanto Virgili traduz "fracasso" (p. 177). O "resto" que Virgili afirma ser qualitativo e não quantitativo, na verdade, parece-me ter as duas características. Se em Rm 11,15 o mesmo sujeito é mantido - Deus e não o povo de Israel - (de fato, no capítulo se fala sobre as constantes escolhas paradoxais de YHWH na história, que fazem sobrar um resto e que não excluem para sempre quem no momento é "posto de lado"), pode ser traduzido pensando em Deus que, depois de uma "colocação de lado" temporária, parcial e providente de grande parte de Israel, readmitirá todo Israel na plena comunhão com ele: isso será como uma ressurreição dos mortos (cf. também Rm 11,26, que comento abaixo).
Virgili duplica os sujeitos e fala de "sua recusa" (p. 177) e da readmissão de Deus. O importante é não entender que Deus rejeite seu povo - eventualidade negada de forma peremptória na subpropositio de Rm 11,1 e ressaltada novamente com outros termos naquela de 11,11 - com uma tradução que poderia induzir ao erro: "Se a sua recusa..." (de Deus contra o povo ou do povo contra Deus?). Aletti traduz com "Se eles forem postos de lado" (mantendo sempre Deus como sujeito do movimento gramatical e semântico do contexto).
Em Rm 11,16, "a raiz sagrada" é para Virgili "a palavra de Deus, sua misericórdia, Cristo, fé e salvação" (p. 183). E os patriarcas, a fé dos padres e do próprio Abraão, "nosso pai na fé"? (cf. também Rm 4).
Em Rm 11,26a, Paulo se lembrará da salvação final de Israel: “E houtō/"assim" todo Israel será salvo ...”. Permaneço da ideia de que aqui houtōs seja um advérbio que indica não a temporalidade (“e então”, cf. CEI 2008, Virgili, Penna etc.), mas a modalidade pela qual ela ocorrerá, depois descrita com entusiasmo por ele nos v. 26b-27 com referência ao mérito único de Cristo, o libertador, que removerá a impiedade e estabelecerá sua aliança quando destruirá os pecados de Israel.
Pessoalmente, eu preferiria ver transliterado com o h inicial as palavras com o som aspirado sobre da primeira vogal (por exemplo, hypotassō; hypomonē) ou consoante (no caso de rh), bem como a transliteração das duas vogais longas ē e ō, com a eventual iota subscrito, para distingui-las das breves e e o.
O leitor se depara com um volume realmente interessante, para ser apreciado e confrontado com o intuito de entender corretamente a pessoa e o pensamento do grande apóstolo Paulo, o "Alcançado por Cristo" (cf. Fl 3,12), antes de fazer exegese, estudar uma lição de catequese, preparar uma homilia ou imergir na meditação da oração.
A figura gigantesca de Paulo realmente não merece nenhuma "oportunidade perdida" ou nenhum estereótipo que distorce sua límpida luz teológica que liberta o homem, mas que também valoriza o gênio das mulheres, a quem devem ser confiadas as tarefas eclesiais desempenhadas na época da Igreja primitiva e favorecidas e encorajadas por Paulo.
Le lettere di Paolo. A cura di Rosanna Virgili. Traduzione e commento di Emanuela Boccioni – Rosalba Manes – Rosanna Virgili, Àncora, Milano 2020, p. 1152, € 55,00, ISBN 978-88-514-2181-6.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A releitura de Paulo pelas mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU