03 Fevereiro 2020
“Desprivatizar a água no Chile vai muito além de estatizá-la, implica também se tornar responsável não apenas de um momento histórico do país, mas também de um momento chave do planeta, em meio a uma profunda crise climática, herdeira de uma civilização industrial, onde a vida futura de todas e todos está em jogo nesse momento”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo e editor do Observatório Plurinacional de Águas no Chile. A tradução é do Cepat.
O Chile está em um processo constituinte inédito, após 30 anos de volta à democracia, que inseriu o país em um momento histórico, onde a possibilidade de uma nova carta fundamental abriu a discussão sobre qual país queremos e qual deve ser os direitos consagrados a todas e a todos seus cidadãos na elaboração desse documento fundamental.
Um desses direitos em discussão, a água, talvez seja o que mais exerceu força nos vários conselhos autoconvocados realizados em todo o país. Isso, no contexto de ser o primeiro país do mundo a privatizar suas fontes e a gestão da água, o que levou à imposição de um modelo de lucro para um bem comum fundamental para a reprodução da vida, onde é possível ser dono da água sem ter terra em perpetuidade.
Assim, desde a imposição na ditadura do código da água de 1981, foi gerado um sistema hídrico que dividiu o seu uso em direitos consultivos e não consultivos, onde os primeiros são os que podem ser reutilizados superficialmente (irrigação, mineração, indústria e uso doméstico), enquanto os segundos se referem ao uso existente sem consumi-la (hidrelétricas).
As consequências atuais desse sistema de aproveitamento da água para o país foram desastrosas, pois 80% dos direitos consultivos estão nas mãos dos negócios florestais e agropecuários, enquanto 9% estão nas mãos dos negócios de mineração. No caso de direitos não consultivos, o negócio hidrelétrico está nas mãos da empresa Enel. Por outro lado, quem controla a distribuição de água no país (Agua Andinas e Esval) são empresas com capitais transnacionais, que nada mais fazem do que controlar tarifas e o consumo humano.
Em outras palavras, estamos na presença de um modelo hídrico que concebe a água como um bem econômico e que responde a uma ideologia neoliberal que coloca no centro o lucro das empresas sobre os direitos das pessoas. Daí a importância desse processo constituinte no Chile, que permite desprivatizar um bem comum tão importante e vital como é a água. Portanto, é necessário construir uma nova democracia hídrica, que leve em consideração a legislação internacional em matéria de água e também a contribuição de experiências locais na América Latina e no mundo.
Por esse motivo, embora o Chile possa ser visto como um caso do que não fazer na área hídrica, houve avanços legais internacionais significativos em relação a esse bem comum. Foi o que aconteceu em 28 de julho de 2010, data em que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou que o acesso à água potável e ao saneamento são direitos fundamentais, com 122 votos a favor, 41 abstenções e nenhum contra, por parte dos estados.
Uma aprovação que, embora não tenha caráter vinculativo para os países, diferentes constituições do mundo, como Bolívia, Equador, Nicarágua, México, Uruguai, Honduras, República Democrática do Congo, África do Sul, Uganda, explicitaram o direito humano à água, o que nos mostra o quanto é relevante legislar a esse respeito e o quanto é oportuna a discussão para o Chile em nível constitucional.
No entanto, declarar a água como um direito humano no nível constitucional não é suficiente, caso não haja progresso na legislação que vá além de lógicas antropocêntricas. Ou seja, que colocam os seres humanos no centro, acima de outros seres vivos e ecossistemas. Daí a importância de discutir novos direitos, que vão além dos limites do direito moderno.
Os casos do Equador e da Bolívia, onde em ambos os países existem, em nível constitucional, os direitos da Natureza e da Mãe Terra, respectivamente, nos mostram um caminho alternativo e mais amplo do que a forma como historicamente os direitos foram entendidos. O mesmo acontece com países como Colômbia, Nova Zelândia e Índia, que concederam direitos aos rios.
Diferentes casos que deveriam ser levados em consideração pelos diferentes membros da assembleia que redigem a nova constituição do Chile, que permita que a água seja desmercantilizada e amplie os direitos dos diferentes territórios do país. No entanto, como mostra a experiência dos países mencionados acima, um bom quadro jurídico não é suficiente, se na prática esses direitos forem violados pelas empresas e pelos próprios estados, para continuar aprofundando os modelos extrativistas.
Daí a importância de sair não apenas de lógicas privadas de água, mas também visões estadocêntricas, que só buscam nacionalizar os chamados recursos naturais para continuar explorando os mesmos ilimitadamente para sua venda em grandes mercados internacionais. Portanto, a discussão também deve se concentrar em como gerar mecanismos de gestão territorial local que protejam as bacias hidrográficas e façam um bom uso dos ecossistemas.
Em definitivo, desprivatizar a água no Chile vai muito além de estatizá-la, implica também se tornar responsável não apenas de um momento histórico do país, mas também de um momento chave do planeta, em meio a uma profunda crise climática, herdeira de uma civilização industrial, onde a vida futura de todas e todos está em jogo nesse momento.
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Chile. Rumo à desprivatização da água - Instituto Humanitas Unisinos - IHU