05 Julho 2019
O herói é masculino singular. "Comunidade" é feminino e coletivo. Bastaria a gramática a introduzir Noi siamo tempesta [Nós somos tempestade, em tradução livre] (Salani), o último livro de Michela Murgia, escritora refinada no uso da palavra em suas infinitas nuances. A obra nasce do estreito entrelaçamento entre texto escrito e gráfica, editada pelo estúdio criativo World of Dot, e é algo radicalmente diferente de um livro clássico de narrativa para adultos. Os dezesseis capítulos contam - às vezes recontam, partindo de outra perspectiva - dezesseis episódios, alguns muito famosos e outros desconhecidos, que mostram como as grandes mudanças da história não sejam, na maioria dos casos, o resultado de uma ação de um herói solitário, mas o fruto do empenho de muitos. Assim caiu o Muro de Berlim, assim aconteceu na luta contra o racismo, assim nasceu a Wikipedia.
A entrevista é de Emanuela Citterio, publicada por Jesus, junho-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Infeliz é a nação que precisa de heróis", escrevia Bertolt Brecht. O fato é que estamos sempre procurando heróis ou salvadores, observa Murgia. Nascida em Cabras, na Sardenha, em 1972, a escritora ganhou prêmios de prestígio como o Campiello. Ela é autora de romances, incluindo o primeiro e autobiográfico Il mondo deve sapere [O mundo deve saber, em tradução livre] (2006) sobre sua experiência de trabalho em um call center. Ela se move com desenvoltura entre a oralidade e a escrita. É apresentadora de rádio e televisão, lê áudio-livros e produz podcasts em storielibere.fm com Morgana, uma série em que conta histórias de mulheres fora da caixa, "mulheres que tua mãe não teria aprovado", explica na introdução dos episódios. No teatro leva à cena a vida de Grazia Deledda, com o espetáculo Quasi grazia, baseado no livro de Marcello Fois. Escreve ensaios. No último, Istruzioni per diventare fascisti [Instruções para se tornar fascista, em tradução livre] (2018), critica o populismo com as armas do sarcasmo e da ironia.
Um discurso a parte merece Ave Mary. E la Chiesa inventò la donna [Ave Mary. E a Igreja inventou a mulher, em tradução livre] de 2011, uma reflexão explosiva que contrapõe a Maria dos Evangelhos com o ícone etéreo que contribuiu a esculpir o imaginário feminino na Igreja e no Ocidente cristão. Depois da publicação, a Coordenação das teólogas italianas acolheu honoris causa à escritora sarda entre suas sócias. Murgia, afinal, estudou teologia e é formada em ciências religiosas.
No passado, você foi professora de religião, além de educadora e animadora na Ação Católica, da qual foi referente regional do setor jovens para a Sardenha. Quais são suas referências espirituais hoje?
A coordenação das teólogas italianas é uma forte fonte de inspiração para mim, mas já quando eu fazia parte da Ação Católica havia figuras que tinham esse valor, como Stella Morra, que por anos editou os textos para os adultos da Ação Católica. Após a morte de Adriana Zarri, uma eremita incômoda e contracorrente que para mim foi uma referência importante, restam poucas figuras. Não me sinto seduzida pelo padre batalhador, embora eu aprecie a atividade de sacerdotes que se expõem a temas específicos, em especial Dom Luigi Ciotti. Acredito, no entanto, que para as mulheres o caminho deva passar pelo reconhecimento de figuras femininas que têm outro modo de olhar para Deus.
A das mulheres é uma das questões abertas na Igreja. O Papa Francisco instituiu uma comissão de estudos sobre o diaconato. Você acredita que haverá alguma mudança?
Sem o surgimento de uma comunidade de mulheres conscientes e combativas, alegres e unidas na Igreja, não creio ser possível esperar uma mudança mesmo do melhor dos homens. O Papa Francisco está se esforçando muito, mas eu não espero que um papa seja um ativista feminista, acredito que ele tenha outras prioridades.
Seu livro Ave Mary vendeu quase 100.000 cópias. Como explica isso?
O fato de ter vendido tanto assim, algo que eu não esperava de um ensaio que lida com um tema tão específico, significa que capta uma exigência verdadeira. Que não é aquela de abandonar o cristianismo como religião patriarcal, mas de garantir que o cristianismo não seja apenas patriarcal.
Muitas das pessoas que o leram e que depois me convidaram para falar pertenciam a paróquias e comunidades que não tinham a mínima intenção de deixar a Igreja. Sua intenção era mais dar sua contribuição para uma restauração, uma reestruturação da casa onde moramos. Também era a minha quando escrevi Ave Mary, que é o livro de uma crente crítica, não de uma ateia anticlerical.
Vamos voltar ao livro que acabou de ser publicado. Nós somos tempestade. É uma reação ao mito da excelência individual?
É uma reação à ideia de que existam pessoas no mundo que podem ter acesso a um sucesso excepcional, e muitas outras que não são especiais, cuja única tarefa é confiar em uma pessoa especial, geralmente para serem salvas ou serem inspiradas. Eu não quero dizer que não existam pessoas com qualidades excepcionais, que fique claro. O que me assusta é que as únicas histórias que contamos sejam as delas. Porque, na realidade, a humanidade se salvou e progrediu graças à colaboração entre pessoas que reconheceram em sua fragilidade uma razão para se unirem.
As grandes revoluções do século XX começaram todas a partir das margens, isto é, de grupos que não tinham nenhum poder e nenhuma especialidade para mostrar. Do feminismo, com as mulheres marginalizadas na sociedade, aos negros dos EUA que sofreram a discriminação racial, ao mundo da diferença da orientação sexual, discriminada e muitas vezes fisicamente perseguida: são todos mundos onde não havia poder, havia apenas a força fraca de estar juntos. E através desse poder fraco, as pessoas conseguiram afirmar não a igualdade, porque as diferenças permanecem - mas uma igual dignidade, que deveria ser a base para a coexistência de toda sociedade civil.
Você quase sempre vai em busca de "a outra versão da história", destaca o que nunca foi contado. Por quê?
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora de uma bela conferência que se chama O perigo de uma única história, parte de uma frase bastante famosa que deveríamos sempre nos repetir: ‘Não tenho medo daqueles que não leram sequer um livro, mas de quem leu um único livro’. Porque esse livro lhe deu uma visão do mundo que, não tendo outra ao lado, se torna absoluta. De fato, ter lido um único livro torna-se a matriz do fanatismo, a mono-matriz. Possuir tantas histórias, cultivar a biblio-diversidade é uma maneira de imaginar mais respostas para o mesmo mundo, mas também mundos diferentes onde as respostas sejam outras. A ideia de contar as vozes que não tiveram dignidade de expressão é fundamental para mim, porque restitui polissemanticidade. Dá a ideia de que as histórias sejam materiais com muitas perspectivas internas.
Falando sobre histórias infantis, teve grande sucesso o livro Storie della buonanotte per bambine ribelli [Histórias da Boa Noite, para Meninas Rebeldes, em tradução livre], que reúne uma centena de histórias de mulheres excepcionais. Mesmo ali, no entanto, se trata de heroínas ...
É uma operação que não me convenceu. Para responder a uma exigência de igualdade de gênero não se questiona o modelo de poder, mas se pretende que também seja estendido às mulheres. Esta é, para mim, uma batalha pela metade. Porque eu quero ver as mulheres no poder, mas eu gostaria de ver um modelo de poder em que os homens e as mulheres possam estar mais à vontade, possam ser até melhores, não tenho medo de usar esse termo. Uma Igreja mais feminista é conveniente para as mulheres, para os homens e até para Deus.
Em um seu livro recente, L'inferno è una buona memoria [O Inferno é uma boa memória, em tradução livre], conta como a leitura de um livro popular, As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, comprado por acaso em uma banca de jornal, tenha representado para você um ponto de virada, inclusive em relação ao seu percurso de fé. Naquele momento, você tinha 30 anos e era vice-presidente diocesana da Ação Católica. O que manteve de suas convicções de então e ao que você renunciou?
Aquele livro, que muitos dos intelectuais que conheço nunca leriam, inverte a narrativa da lenda bretã da Távola Redonda partindo do ponto de vista das mulheres: Morgana e Guinevere, em vez de Merlin e Artur. Mas também conta a luta aterrorizante entre um mundo politeísta, aquele dos druidas e o monoteísmo. Sem entrar no mérito do que cada um acredita, é inevitável que um mundo politeísta ofereça um potencial de identificação muito amplo: inclui as mulheres, os homens e as crianças; os jovens e os idosos, as jovens e as idosas; às vezes até mesmo os animais. No monoteísmo, por outro lado, existe a tendência de retratar a divindade através de um único esquema, um único símbolo.
Os percursos iconoclastas tentaram se defender desse risco, evitando a representação do divino. A Ortodoxia se defendeu representando o divino de uma maneira não realista, que era uma maneira de dizer que não se pode compreender completamente a realidade de Deus e até mesmo reproduzi-la com uma intenção realista, quase tangível.
A Bíblia não permitiria isso: dentro dela existem "figuras" de Deus variegadas, que paramos de representar porque decidimos que não nos serviam. Penso nas semelhanças com os animais: Deus eleva-se nas asas da águia, protege como uma mãe ursa. Durante muito tempo nas Igrejas do Ocidente, tivemos tabernáculos em forma de pelicano. Pensava-se que este pássaro, que remói a comida para seus filhotes, rasgasse o peito para alimentá-los, e havia se tornado a imagem do Cristo eucarístico.
Cristo-mãe pelicano, no entanto, é uma alegoria completamente desaparecida do nosso imaginário. Para nós, a combinação Deus-animais se tornou uma blasfêmia.
Na arte, Rembrandt faz uma tentativa muito terna de reproduzir a maternidade de Deus pintando duas mãos diferentes, feminina e masculina, nas costas o filho pródigo, porque o imaginário de Deus-pai é muito pobre, não pode bastar a uma humanidade em que há também as mulheres, as mães.
Acima de tudo, é incorreto em relação a Deus, pois permite a identificação com uma ficção, que nem mesmo é masculina, porque muitos homens não são pais. Isaías já dizia que Deus também é mãe. Está tudo na Bíblia, o problema é a narração.
Para responder à sua pergunta, aquele livro não virou a minha ideia de Deus, mas me fez querer contar todos os rostos de Deus que a hierarquia não contou, indo procurar as vozes que o fizeram. Acredito que na Bíblia haja bastante indícios para a pluralidade: o politeísmo não é necessário se você contar um Deus polissêmico, mas isso só pode ser feito dando espaço a narrativas diferentes daquelas que estruturaram nosso sistema social.
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À insígnia de Deus-Mãe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU