02 Abril 2019
Tendo acabado de voltar de uma jornada de 18 dias pelos Estados Unidos que nos levou a Boston, Denver, South Bend, Anaheim, Simi Valley, Whittier e Detroit, esta provavelmente é a pergunta mais comum que me foi feita ao longo do caminho dos católicos norte-americanos em relação ao Vaticano: “Será que eles entenderam isso?”.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 31-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O “isso” refere-se à crise dos abusos sexuais clericais e, mais especificamente, à gravidade e à profundidade da situação experimentada pelos católicos norte-americanos ao longo dos últimos meses e, portanto, à necessidade percebida de ação urgente e fundamental.
Obviamente, teria sido ótimo se a minha resposta pudesse ter sido: “Sim, absolutamente, é claro”. Isso seria reconfortante para as pessoas que conhecemos e também facilitaria infinitamente a vida dos pastores, dos párocos e dos bispos que encontramos.
Infelizmente, a experiência recente dita uma resposta mais complicada. Para entender por que, vamos considerar os desdobramentos apenas dos últimos dias.
Para começar, na semana passada, começou uma investigação apoiada pelo Vaticano na diocese argentina de Oran a respeito de acusações de má conduta sexual e financeira contra seu ex-pastor, Dom Gustavo Zanchetta, que agora é o número dois da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, ou seja, seu principal centro de administração financeira.
O arcebispo Carlos Alberto Sánchez, da vizinha Tucumán, foi designado para conduzir a investigação, que aparentemente envolverá entrevistas com seminaristas que afirmaram ser vítimas de abuso de Zanchetta.
Embora levar a sério essas denúncias seja obviamente uma medida bem-vinda, os críticos perguntaram por que se demorou tanto, já que as acusações contra Zanchetta surgiram em 2015. Por sua vez, isso levou as pessoas a se perguntarem por que, em primeiro lugar, o Papa Francisco levou Zanchetta para Roma, em 2017 – e por que, nesse sentido, ele convidou Zanchetta a participar do retiro anual da Quaresma para os membros do Vaticano apenas algumas semanas atrás.
No último sábado, 23 de março, o Papa Francisco aceitou a renúncia do cardeal Riccardo Ezzati, de Santiago do Chile, que enfrenta acusações de ter encobertado o mais famoso padre pedófilo do país, Fernando Karadima, e que recentemente também foi citado em um processo que chega a 500.000 dólares relacionado a um estupro que supostamente ocorreu em um quarto da residência da sua catedral em 2015, que Ezzati supostamente tentou silenciar.
O Chile foi devastado pelo pior escândalo de abuso clerical em qualquer parte do mundo nos últimos anos, de modo que a renúncia de Ezzati era esperada. Embora Francisco não tenha nomeado um sucessor, ele nomeou um administrador apostólico enquanto isso: o bispo capuchinho Celestino Aós Braco, que antes era promotor de Justiça na Diocese de Valparaíso e enfrentou críticas por descartar denúncias de abuso apresentadas por ex-seminaristas contra cinco padres, um dos quais agora está morto e os outros estão enfrentando investigações.
Com toda a justiça, alguns sobreviventes de abuso no Chile estão dispostos a dar a Aós o benefício da dúvida pelo seu papel em Valparaíso, observando que, como um simples padre na época, não era seu papel definir políticas. Essa era a função do agora renunciante Dom Gonzalo Duarte, que foi acusado de acobertar casos de abuso.
Isso nos leva às novas diretrizes antiabusos emitidas pelo Papa Francisco na sexta-feira, 29, para o Estado da Cidade do Vaticano e para as missões estrangeiras do Vaticano no exterior, como a embaixada papal em Washington e nas outras capitais do mundo.
(Como uma questão técnica, o Vaticano divulgou três novos documentos na sexta-feira – as diretrizes em si, que dizem refletir as “melhores práticas” nos esforços antiabusos; uma nova lei para o Estado da Cidade do Vaticano; e um motu proprio que aplica tais normas para a Cúria Romana, ou seja, a burocracia governante da Igreja em Roma.)
Entre outras coisas, as regras exigem que as autoridades denunciem imediatamente as acusações de abuso sexual de menores aos promotores – neste caso, uma vez que o foco é em crimes cometidos em território vaticano, a denúncia seria para promotores vaticanos.
A verdadeira questão sobre o anúncio dessa sexta-feira é por que demorou tanto tempo para se chegar a isso, já que o Vaticano ordenou que as Conferências Episcopais em todo o mundo elaborassem esse tipo de diretrizes em 2011. Desde aquele momento, tem sido irritante para muitas pessoas o fato de o Vaticano insistir que as Igrejas locais atuem rapidamente para redigir e implementar políticas que não foram impostas a si mesmo, e é um mistério por que foram necessários oito anos para tapar esse buraco.
Em princípio, cada um desses três desdobramentos poderia ser considerado uma boa notícia.
Sobre Zanchetta, Francisco autorizou uma investigação de um amigo e de um bispo do seu país de origem. No Chile, o principal símbolo público da crise do país foi removido, criando a possibilidade de um novo começo. E, no que diz respeito ao Vaticano, ele está agora vinculado aos mesmos protocolos de última geração adotados pela Igreja em partes do mundo como os Estados Unidos e a Europa ocidental.
A dificuldade com uma virada tão otimista, no entanto, é que cada um desses três desdobramentos é ambivalente.
Com Zanchetta, a questão-chave é o quanto Francisco sabia quando o levou a Roma há dois anos e por que ele não foi suspenso agora, aguardando a investigação. Em Santiago, é legítimo questionar a sensibilidade de escolher um líder interino para um lugar tão traumatizado com a sua própria história conturbada. Sobre as diretrizes, bem, ninguém ainda explicou por que razão se demorou tanto.
Em outras palavras, Francisco pode ocasionalmente tornar desafiador o modo de “vender” às pessoas a ideia de que o Vaticano realmente “entendeu isso” – e a sua janela de tempo para fechar essa venda pode não permanecer aberta por muito mais tempo.
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Desafio do Vaticano é mostrar às pessoas que entendeu a relevância dos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU