25 Abril 2018
Na surpreendente Exortação Apostólica “Gaudete et Exsultate” (Alegrai-vos e exultai), Francisco muda a norma tradicional católica sobre santidade. A Exortação teve sua redação concluída numa assembleia com o pequeno Emanuele de 10 anos de idade e com os pobres da periferia de Roma. Ela indica que o caminho para a santidade é a decidida opção pelos pobres e a busca pela justiça. Mais ainda: que este caminho não é exclusivo dos católicos e nem mesmo dos cristãos; está aberto a todos, inclusive aos ateus e ateias. Dom Oscar Romero é santo; igualmente santas são Edith Stein, Olga Benário Prestes e Marielle Franco.
O comentário é de Mauro Lopes, jornalista, em artigo publicado por Caminho pra Casa, 24-04-2018.
O Papa imaginou haver concluído no dia dedicado à memória de São José (19 de março) o mais franciscano documento de seu papado, a Exortação Apostólica sobre o caminho de santidade. Mas não. O texto foi finalizado por Francisco somente um mês depois, no 3º Domingo da Páscoa, em 15 de abril, no encontro com um menino de dez anos com o significativo nome de Emanuele, numa assembleia com pobres da periferia de Roma.
Naquele domingo, o Papa, que é antes de tudo o bispo de Roma, foi à paróquia de São Paulo da Cruz, na periferia mais pobre de sua diocese. O primeiro momento da agenda foi um encontro com crianças que frequentam a catequese. Quando chegou a vez de Emanuele, de apenas 10 anos, o menino aproximou-se do microfone e começou a chorar copiosamente.
Francisco chamou-o, “Vem, vem aqui comigo, Emanuele, e me diz ao ouvido, diz-me ao ouvido”. O menino foi, aos prantos, abraçado pelo pároco, padre Roberto Cassano. Francisco e o menino conversaram por poucos minutos, longe dos microfones, cabeça a cabeça. Quando Emanuele voltou ao seu lugar, o Papa, autorizado pela criança, relatou o diálogo.
Emanuele perdeu o pai recentemente e estava com o coração apertado com a dúvida se seu pai, que era ateu, estaria no céu no inferno – mesmo ateu, o pai de Emanuele fez batizar o menino e seus dois irmãos e uma irmã. Esta era a razão do choro angustiado.
O que disse o Papa?
Primeiro, sobre o pai de Emanuele:
“Que bonito quando um filho diz que o seu papai era bom! Um bonito testemunho sobre aquele homem, quando os seus filhos podem dizer que ele era um homem bom! Se esse homem foi capaz de ter filhos assim, é verdade que era um grande homem!”
Depois, sobre a angústia do menino:
“Quem diz quem vai para o céu é Deus! Mas como será o coração de Deus diante de um pai assim? (…) Será que Deus abandona os seus filhos quando eles são bons?”
Nesta hora, a comunidade reunida respondeu – e foi um dos momentos culminantes do papado de Francisco, pois ali, na periferia, entre os pobres de Roma, sua Exortação Apostólica teve seu ponto final, em redação comunitária do o bispo com o povo pobre. Em uníssono, todos responderam à indagação do Papa se Deus abandona seus filhos:
“Não!”
“Bom, Emanuele, esta é a resposta” – atalhou o Papa, dirigindo-se ao menino e, na verdade, a todos os católicos e à humanidade.
Assista ao vídeo emocionante deste encontro decisivo:
Pois assim completou-se o espírito que animou a Exortação do Papa. O céu, tempo/lugar de realização máxima do ser, da Partilha e da Amizade, e a santidade são caminhos abertos a todas as pessoas que têm sede de justiça e fazem a opção de estar ao lado, vive e conviver com os pobres, marginalizados e excluídos pelo sistema.
Uma revolução na história do cristianismo. Nunca antes um Papa concluiu um texto seu numa assembleia com os pobres e sob inspiração de um menino de 10 anos de idade.
Como escrevi, Emanuele, o nome do menino, talvez não tenha sido tão acidental assim. Pois esse era o nome do menino esperado em Israel quando do nascimento de Jesus, conforme a profecia de Isaías (Is 7,14), o sinal de que Deus estava com seu povo pobre de Israel – Emanuel quer dizer exatamente Deus conosco. A passagem foi retomada no Evangelho de Mateus (Mt 1, 23) para anunciar que o Esperado havia chegado. Não teve o nome de Emanuel, mas de Jesus (o Senhor salva), mas era o pequeno Emanuel tão aguardado por seu povo.
Pois o pequeno Emanuel tomou para si a condução da assembleia de Francisco com aquele grupo de pobres em Roma e imprimiu uma virada história no catolicismo.
Sim, porque a resposta da comunidade da paróquia de São Paulo da Cruz não foi nada óbvia. Fosse um encontro com paroquianos ricos ou integristas, a resposta seria provavelmente oposta. Ou seja: que a santidade e o céu eram “propriedades” reservadas exclusivamente aos batizados e (aqueles que a hierarquia denomina de fiéis). Este era até agora o estabelecido, a regra, a lei, e ela foi reafirmada por João Paulo II em 1983 na Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister e no Catecismo da Igreja Católica (nº 1023)
Com a Exortação de Francisco em coautoria com Emanuele e os pobres da paróquia de São Paulo da Cruz não é mais assim.
O coração da Exortação de Francisco diz: santidade é um caminho aberto a todas as pessoas e não exclusivamente aos fiéis católicos e um caminho que se faz à luz da grande convocação de Jesus no texto central dos Evangelhos, o Discurso das Bem-Aventuranças, complementado por um trecho do capítulo 25 do Evangelho de Mateus.
Sobre este trecho, escreveu frei Leonardo Boff no último sábado, 21 (Estive preso e me impediram de visitar-te):
“Há uma cena de grande dramaticidade no evangelho se São Mateus quando se trata do Juízo Final, quer dizer, quando se revela o destino último de cada ser humano. O Juiz Supremo não perguntará a que Igreja ou religião alguém pertenceu, se aceitou os seus dogmas, quantas vezes frequentou os ritos sagrados.
Esse Juiz se voltará aos bons e dirá: ‘Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino preparado para vós desde a criação do mundo; porque tive fome e de me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, estava preso e viestes me ver… todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos e irmãs menores, foi a mim que o fizestes… e quando deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes’ (Evangelho de S.Mateus25, 35-45).
Neste momento supremo, são as práticas e não as prédicas para com os sofredores deste mundo que contarão. Se os tivermos atendido, ouviremos aquelas palavras benditas.”
Segundo o texto de Gaudete et Exsultate, a caminhada para a santidade tem uma única “grande regra de comportamento”, estabelecido por este trecho de Mateus, à luz das Bem-Aventuranças: “No capítulo 25 do Evangelho de Mateus (vv. 31-46), Jesus volta a deter-se numa destas bem-aventuranças: a que declara felizes os misericordiosos. Se andamos à procura da santidade que agrada a Deus, neste texto encontramos precisamente uma regra de comportamento com base na qual seremos julgados: ‘Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo’ (25, 35-36)” [95].
As bem-aventuranças são a grande convocação de Jesus para um jeito de levar a vida, rumo a um novo tempo e lugar chamado Reino de Deus. No seu discurso, Jesus convocou: “em marcha!”. Em marcha (ashréi, em aramaico/hebraico, línguas de uso corrente na Israel de Jesus). Em marcha os pobres em espírito (ou os pobres, simplesmente, na versão de Lucas), os aflitos, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que são perseguidos. Santos e santas são, dentre estes, os que se colocarem em marcha a caminho do tempo/lugar chamado por Jesus de Reino de Deus e se dispuserem a, de alguma maneira, por suas vidas, presentificarem tal Reino.
Não, escreve o Papa, rezar o terço e ir à missa aos domingos por si só não faz ninguém santo ou santa. Obedecer às prescrições formais da religião, mas alimentar o ódio, incensar os ricos e a riqueza, desejar o mal não é caminho de santidade:
“Não é saudável amar o silêncio e esquivar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a atividade, buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e integrado como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do caminho de santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da ação, e santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão.” (26)
“Poder-se-ia pensar que damos glória a Deus só com o culto e a oração, ou apenas observando algumas normas éticas (é verdade que o primado pertence à relação com Deus), mas esquecemos que o critério de avaliação da nossa vida é, antes de mais nada, o que fizemos pelos outros. A oração é preciosa, se alimenta uma doação diária de amor. O nosso culto agrada a Deus, quando levamos lá os propósitos de viver com generosidade e quando deixamos que o dom lá recebido se manifeste na dedicação aos irmãos.” (104)
É cara aos jesuítas como o Papa a expressão “contemplar na ação”. Em outras palavras, caminhar no cotidiano com os olhos e o coração bem apertos para testemunhar a Presença daquele que se fez Amor entre nós. É viver contagiado pelo Mistério. É este o espírito original da oração que pode desenhar um traço de união entre toda a gente de todo mundo, os que creem e os que não creem, mas estão comprometidos com este desejo.
Um homem que está para ser declarado formalmente santo pela Igreja, dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador assassinado pelos militares sob a indiferença do Vaticano em março de 1980, deixou claro em uma homilia em dezembro de 1977 o caminho de santidade e como ele pode ser corrompido no interior mesmo da Igreja Católica:
“Uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas não agrada ao Deus da Vida. Uma religião de muita reza, mas de hipocrisias no coração não é cristã. Uma Igreja que instala só para estar bem, para ter muito dinheiro, muita comodidade, porém que não ouve os clamores das injustiças não é a verdadeira igreja de nosso Divino Redentor.”
O caso de Oscar Romero é exemplar. Fez-se santo no exato espírito da Exortação de Francisco ainda em vida. Portanto, era santo – e assim foi considerado por milhares de católicos de todo o mundo por décadas- muito antes de seu reconhecimento pela hierarquia católica. Era santo enquanto era condenado por João Paulo II, que lhe ordenou abandonar os pobres de seu país e aliar-se à genocida elite política salvadorenha e à reacionária cúpula da Igreja local. Era santo quando, depois de morto, sua memória sofreu intensa campanha de difamação orquestrada pela Cúria romana, que bloqueou o processo de canonização por mais de 30 anos.
Santa foi também Edith Stein, sequestrada pelos nazistas no mosteiro carmelita de Echt, na Holanda, em 2 de agosto de 1942 para ser morta na câmara de gás em Auschwitz uma semana depois. Ela oficialmente canonizada em 1999. Mas sua santidade continha uma contradição que só agora, com a Exortação de Francisco, está resolvida: Edith Stein não foi sequestrada e morta pelos nazistas por ser católica ou por ser monja, mas por ser judia. Tornou-se santa por pertencer a um povo e fazer a escolha de levantar-se contra a injustiça e o ódio e não por seu caminho particular de fé.
A história de Edith Stein guarda enorme semelhança com a de outra judia, Olga Benário Prestes, ambas alemãs. Enquanto Edith foi sequestrada na Holanda, a comunista Olga, casada com Luís Carlos Prestes foi sequestrada no Brasil e enviada para uma prisão de mulheres da Gestapo. Grávida, deu à luz Anita Leocádia Prestes (hoje com 81 anos). Depois não de sete dias, como Edith, mas de sete anos de intenso sofrimento na prisão, onde sofreu diversas torturas psicológicas, agressões e humilhações morreu na câmara de gás quatro meses antes da monja carmelita, em 23 de abril de 1942, no campo de extermínio de Bernburg. É santa, por sua vida pobre ao lado dos pobres, igualmente pelo Reino, como Stein.
Santa igualmente fez-se Marielle Franco, mártir do tempo da Justiça-Paz como Edith Stein e Olga Benário Prestes. Executada, como as duas, com uma diferença de quase 80 anos. Não num campo de concentração nazista, mas numa rua do Rio, cidade cercada por um sem-número de campos de concentração conhecidos, no Brasil, como favelas.
Francisco, o pequeno Emanuele e a comunidade da periferia mais pobre de Roma mudaram a história da Igreja e proclamam em alto e bom som: Oscar Romero, Edith Stein, Olga Benário Prestes, Marielle Franco e milhares de homens e mulheres ao redor do planeta e ao longo da história, fizeram-se santas e santos. Cada um do seu jeito escutou a convocação de Jesus e pôs-se em marcha.
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O Papa, um menino e os pobres redefinem santidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU