27 Setembro 2017
“Com ou sem Fernando Karadima nesta terra já houve um grande dano à instituição eclesiástica, o que não se reflete apenas nos altos índices de desaprovação e falta de credibilidade naquilo que a hierarquia católica local diz ou faz. A questão é mais profunda e tem a ver com um ‘modelo’ de Igreja que Karadima e seu seleto círculo de poder conseguiram colocar em prática”. A análise é de Danilo Andrade Barrientos, leigo inaciano da diocese chilena de Osorno, em artigo publicado por Reflexión y Liberación, 14-09-2017. A tradução é de André Langer.
Tanto no Vaticano como no Chile, conhece-se o enorme dano que Fernando Karadima causou aos jovens abusados sexualmente na paróquia em que trabalhava há décadas e como esses graves delitos, e que ainda não terminaram, afetam negativamente a credibilidade e a missão da Igreja chilena, sobretudo em Osorno e no dissimilar mundo juvenil. Infelizmente, como dizem as próprias vítimas e os especialistas em um assunto tão delicado, esses desprezíveis comportamentos persistem. Prova disso são os novos casos de pederastia que atualmente afetam a Congregação dos Irmãos Maristas, cujo carisma é educar os jovens. Haverá mais denúncias? A resposta mais provável é um doloroso "sim". Como já vimos em Santiago, Buenos Aires, Barcelona...
À luz dos fatos recentemente denunciados pela Congregação, custa entender por que se ocultou durante tantos anos o caso do Irmão Abel Pérez, que há mais de dez anos confessou seus abusos sexuais de estudantes do Instituto Alonso de Ercilla e do Colégio Marcelino Champagnat. No entanto, ele não foi levado aos tribunais eclesiásticos ou civis, mas, pelo contrário, deixou o Chile com a clara intenção de não prestar contas do crime de ter abusado de pelo menos 14 jovens estudantes.
Há mais de cem anos, o objetivo missionário fundamental da ordem marista no Chile são "os jovens a quem queremos servir, especialmente os mais desfavorecidos, a tarefa de evangelizar através da educação e do nosso próprio caráter marista..." (Comissão Marista Internacional de Educação – 1998). Mas de forma temerária e ignorando seu próprio carisma herdado de São Marcelino Champagnat, alguns representantes da Congregação declararam que "não tivemos nesse momento essa sensibilidade, a de denunciar. Não passou pela nossa mente". E que estão agradecidos "por todo o trabalho do Irmão Abel...". Esta curiosa explicação que acompanha o pedido de perdão é séria e aceitável?
Em face da estupefação e rejeição causada por essas declarações da equipe maior da Ordem Marista da Província do Chile, recordo o que um religioso da mesma congregação comentou sobre os abusos sexuais cometidos em colégios maristas da Catalunha: "A experiência dos abusos perturba a percepção real das coisas, afunda na vergonha e na perplexidade, submerge em um silêncio de gritos silenciados. Nem a rede escolar nem a casa da família conseguiram adivinhar interioridades infantis destroçadas. Sofrimento, muito sofrimento... As feridas nas vítimas são sempre sérias. No passado, o tratamento foi, muitas vezes, muito deficiente. Agora estamos no caminho certo e temos que trilhá-lo com determinação. Todas as instituições devem remar na mesma direção: detectar, reconhecer, denunciar, curar... Tarefas indispensáveis para cicatrizar as feridas" (Irmão Luis Serra, teólogo marista e psicólogo).
Alguns dias atrás, Fernando Karadima sofreu um ataque cardíaco no Hospital Clínico da Universidade Católica. A notícia foi comentada em vários círculos cristãos e uma questão legítima foi levantada: falará, finalmente, a verdade, reconhecerá seus crimes e pedirá perdão por todas as perversidades sexuais que cometeu? Não se sabe. Mas sabemos que deixa um rastro de desgraças, injustiças e calamidades em muitas pessoas, dentro e fora da Igreja. É o alto custo que a hierarquia da Igreja chilena está pagando por não ter enfrentado o drama da pedofilia entre o clero com verdade e justiça. Em vez disso, esta hierarquia, liderada pelo cardeal Francisco Javier Errazuriz Ossa, de seu pedestal de poder optou – durante anos – pela permissividade e pelo silêncio acobertador.
Há outro ângulo herdado desses escândalos de abusos e poder relacionado à enorme influência que o presbítero Fernando Karadima teve nas mais altas instâncias da Igreja de 1980 a 2006 de sua posição estratégica na Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida como El Bosque. Refiro-me à nomeação de novos bispos, em que ele desempenhou um papel preponderante junto com o núncio daquela época, dom Angelo Sodano. Existem vários nomes que responderam aos íntimos desejos de Karadima, entre eles Juan Barros Madrid, que hoje é titular de nossa diocese de Osorno e foi nomeado contra o parecer da Conferência Episcopal e rejeitado por um número considerável de fiéis e cidadãos desta bela porção eclesiástica situada no sul do Chile.
Diante disso, não podemos ficar calados e devemos dizer em consciência o que muitos dentro da Igreja já sabem. Da minha modesta posição leiga, repito com a devida cautela: com ou sem Karadima nesta terra já houve um grande dano à instituição eclesiástica, o que não se reflete apenas nos altos índices de desaprovação e falta de credibilidade naquilo que a hierarquia católica local diz ou faz. A questão é mais profunda e tem a ver com um "modelo" de Igreja que Karadima e seu seleto círculo de poder conseguiram colocar em prática. Consequentemente, passarão muitos anos antes que a Igreja recupere seu verdadeiro sentido de serviço para o bem daqueles que mais sofrem... E com um apego menor à ferrenha doutrina, dogmas e cânones que, às vezes, entorpecem ou retardam a simples e humilde missão a que é chamada.
Em reiteradas oportunidades, eu expliquei as razões da demanda de um novo bispo para a Diocese de Osorno; da mesma forma, denunciei que a Conferência Episcopal não tomou as medidas adequadas para não perpetuar o "modelo" de Igreja que Karadima implantou nos seus longos anos de pároco e diretor espiritual de várias gerações de seminaristas. A este respeito, é bem conhecida a clara posição da Comunidade de Leigos e Leigas de Osorno, que há anos vem pedindo – com argumentos sólidos e várias ações não-violentas – para que a Diocese não continue na mão de um bispo que foi imposto, não desejado pela maioria da grei e que não conta com o apoio unânime do pessoal consagrado nesta província eclesiástica, mas que, ao contrário, sua presença no trabalho pastoral cotidiano produz divisão, confusão e escândalo.
Mas agora, às vésperas do Te Deum e da visita do Papa ao Chile, o nosso pedido torna-se mais urgente e tem um significado diferente. Urgente, porque o Papa terá que dizer alguma coisa quando vier a Temuco. Nossos vizinhos estão esperando por ele, e nós, de Osorno, também diremos o que temos a dizer: queremos um novo bispo! E um significado diferente, porque a cada dia que passa e diante dos novos casos de abusos sexuais cometidos pelo clero, uma maioria cidadã entende melhor a nossa luta e expressa, de uma ou de outra forma, sua solidariedade ativa e pacífica. É razoável quando uma causa é justa. Não tolerar a pederastia nem a cumplicidade com ela é justo e necessário – é o que eu sinto da minha perspectiva cristã, considerando que estamos diante de um problema ético-moral maior.
Nesta ocasião, desejo compartilhar um importante dado estatístico que considero apropriado lembrar e reconhecer: em janeiro de 2014, a Santa Sé expôs oficialmente que durante os anos de 2011 e 2012, durante o pontificado de Bento XVI, a Santa Sé expulsou oficialmente cerca de 400 sacerdotes por questões relacionadas ao abuso sexual de menores em várias partes do mundo. O próprio porta-voz papal da época, o Pe. Federico Lombardi, reconheceu que esta asseveração e o número apresentado eram corretos e, certamente, teve a aprovação expressa do Papa Joseph Ratzinger.
Sem nenhuma vontade de provocar uma polêmica incontestável, mas em honra da verdade: quantos clérigos abusadores e pedestres reconhecidos o atual pontífice expulsou da Igreja? Seria bom para todos nós – Igreja e povo de Deus – saber que se prossegue com esta justiça baseada na "tolerância zero" diante do "flagelo da pedofilia" que tem sido praticado sistematicamente por décadas na Igreja; seria, além disso, uma maneira eficaz de tornar estes crimes transparentes, ajudando, fortemente, a recuperar a confiança em uma instituição que é chamada a ser credível e profética tanto na sua palavra como na sua prática de difundir e proclamar o Evangelho de Jesus na terra.
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Chile. As cicatrizes da Igreja. O fantasma dos abusos sexuais às vésperas da visita do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU