12 Julho 2017
Três meses depois que teólogos e religiosas indianos pressionaram um congresso dos bispos no sentido de agirem enfaticamente contra a onda de casos de abuso sexual envolvendo padres no país, nenhuma resposta oficial lhes foi dada.
A reportagem é de Jose Kavi, publicada por National Catholic Reporter, 10-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mas autoridades eclesiásticas contaram ao National Catholic Reporter em entrevistas exclusivas que os bispos da Índia estão seguindo as orientações aprovadas pelo Vaticano no tratamento dos casos de abuso sexual clerical. Essas diretrizes entraram em vigor em 2015, porém não foram divulgadas para além dos bispos e superiores religiosos a fim de evitar com que fossem usadas de modo impróprio, segundo informou um funcionário da conferência episcopal nacional.
Uma carta de 22 de março assinada por 127 religiosos, teólogos e feministas foi enviada ao Cardeal Baselios Cleemis, presidente da Conferência dos Bispos Católicos da Índia, com cópias aos presidentes das três igrejas rituais do país [1].
A carta foi escrita depois da prisão, em 28 de fevereiro, do Pe. Robin Vadakkumcherry, que teria violentado e engravidado uma adolescente de sua paróquia no estado de Kerala. A diocese local desligou o padre dos postos que ocupava em decorrência de sua detenção e teria atuado contra um outro padre e cinco religiosas acusados de acobertamento.
Apesar do pedido do Papa Francisco por uma política de “tolerância zero” diante de casos de abuso clerical, uma mudança nesse sentido não tem sido repentina. É mais provável que padres como Vadakkumcherry sejam acusados criminalmente antes de serem processados internamente na instituição. E, na semana passada, a polícia australiana anunciou que havia aceito as acusações contra um dos assessores mais próximos do papa, o Cardeal George Pell, por abusos sexuais históricos contra menores. O cardeal deve se apresentar aos magistrados em Melbourne no próximo dia 18.
Astrid Lobo Gajiwala, teóloga que coordenou a elaboração da carta e o envio aos bispos indianos, informa que apenas o Cardeal Oswald Gracias acusou o recebimento com uma resposta. Em 6 de abril, o arcebispo de Bombaim, que preside o Rito Latino no país e participa do Conselho dos Cardeais assessores do papa, expressou apoio pelas preocupações do grupo, dizendo que as orientações estariam publicadas em breve.
Em entrevista no começo de maio ao National Catholic Reporter, Cleemis afirma que considera os casos recentes de abuso sexual envolvendo o clero na Índia “dolorosos, chocantes e prejudiciais”. Falou que a Igreja tem a responsabilidade de investigar os atos “infelizes, imorais e antiéticos” cometido pelo padre em evidência. “Casos assim não podem simplesmente ser ignorados”, disse na entrevista.
Ele ainda esclareceu que a reunião dos bispos não havia abordado o conteúdo da carta porque o bispo da diocese onde o incidente ocorreu, Dom Jose Porunnedom, de Mananthavady, não se fazia presente. “Não era apropriado discutir o caso em sua ausência”, explicou.
Mas Gajilwala diz que a falta de resposta por parte de outros líderes eclesiásticos é um “insulto” aos que assinaram a missiva. Entre os signatários estão teólogos que assessoram os bispos há décadas. Outros são presidentes de instituições católicas, provinciais, ativistas e profissionais variados.
“Eles escreveram aos seus ‘pastores’, não para acusar ou fazer exigências, mas por preocupação tanto pelas vítimas de abuso quanto pela Igreja. As regras de cortesia exigem uma resposta”, falou Gajiwala ao National Catholic Reporter em fins de junho.
Segundo ela, os bispos ignoram cartas assim “porque podem considerá-las difíceis de implementar ou porque temem atrair uma publicidade negativa, ou ainda porque já possuem suas normas em vigor, as quais não desejam compartilhar com a comunidade, ou também porque não acreditam que eles são os responsáveis pelo rebanho de fiéis”.
Virginia Saldanha, teóloga leiga que também ajudou na elaboração da carta, diz que os grupos de mulheres e outros continuam à espera, muito embora os líderes eclesiásticos os têm ignorado, continuam no desejo de que iniciativas assim “venham pelo menos a tocar-lhes a consciência”.
Saldanha também explicou que as cartas anteriormente escritas foram enviadas por um grupo que trabalhava na questão há tempos. “Desta vez, decidimos ampliar o público da carta para um espectro mais amplo por causa da fúria gerada com as histórias de abuso publicadas nos jornais. Esperávamos que este espectro ampliado gerasse um impacto sobre os bispos e fizesse com que agissem”.
Cleemis reconheceu ter recebido a carta, mas falou que os teólogos exigiram uma coisa que já estava em vigor. Informou que, há dois anos, a conferência dos bispos publicou orientações rigorosas para o tratamento de casos de pedofilia na Igreja. Essas normas estipularam que as dioceses e congregações religiosas estabelecessem comissões voltadas a tais casos.
No entanto, estas normas – ou orientações – permanecem um mistério para o público, padres e freiras. Gajiwala e Saldanha, que participaram inicialmente na elaboração do documento, disseram que não sabiam que as normas já haviam sido lançadas.
Saldanha questiona o sigilo em torno deste documento, que, segundo ela, “deveria ser publicizado de forma que as pessoas pudessem apresentar suas queixas”.
Saldanha declara ainda que um tal sigilo é uma estratégia contra o medo dos bispos de que uma publicação como esta leve a uma enxurrada de denúncias. “Eles estão se comportando como aquele avestruz, que é enterrado com a cabeça na areia. Um dia esse problema irá implodir e sinais disso já estão surgindo”, disse.
Cleemis explica que as pessoas exigem ação de parte da conferência, sem perceber que ela possui um papel consultivo somente. Cabe às dioceses implementar normas e garantir a sua execução, diz. O cardeal ficou feliz que a Diocese de Mananthavady, onde ocorreu o mais recente escândalo sexual, respondeu à situação de acordo com os padrões estabelecidos.
Embora o cardeal tenha dito que o documento estivesse sob domínio público, o Monsenhor Joseph Chinnayyan, vice-secretário-geral da Conferência dos Bispos, esclareceu que o documento estava em circulação somente entre os bispos e superiores maiores. Estes dois grupos receberam instruções claras para não compartilharem o conteúdo do texto com outras pessoas a fim de que não caísse em mãos que poderiam não usá-lo com a devida discrição, contou Chinnayyan ao National Catholic Reporter no último dia 22.
O vice-secretário falou que o documento, intitulado “Procedimentos para lidar com casos envolvendo abusos sexuais de menores”, foi publicado em 01-10-2015 (Dia de Santa Teresinha do Menino Jesus), e entrou em vigor em 01-11-2015 (Dia de Todos os Santos).
Segundo Chinnayyan, teólogos e outros parecem estar confundindo as orientações para menores de idade com um outro conjunto de diretrizes que a conferência preparou para tratar abusos clericais cometido por religiosas. A comissão voltada ao tema, ligada à Conferência dos Bispos, aprovou essas normas sobre o tratamento às religiosas em setembro de 2016, e Cleemis disse que elas estariam publicadas assim que estivessem num nível satisfatório e fossem juridicamente convincentes. Chinnayyan informou que o documento, atualmente em fase final, poderá ser lançado este mês.
Chinnayyan disse que foram necessários quatro anos para preparar as orientações a serem aplicadas em casos de abuso sexual infantil cometidos pelo clero. A conferência episcopal indiana começou a trabalhar neles imediatamente depois de a Congregação para a Doutrina da Fé publicar as suas próprias diretrizes em 03-05-2011. O Vaticano pediu às conferências episcopais que preparassem documentos semelhantes levando em conta as necessidades locais.
Presidente da conferência dos bispos em 2011, Gracias preparou uma primeira versão e a circulou entre os bispos e membros da Conferência dos Religiosos da Índia, organismo nacional dos superiores e superioras maiores das ordens religiosas. Ele igualmente criou uma subcomissão para incorporar as respostas e preparar uma segunda versão, que foi enviada a Roma para aprovação em 2012.
Na época em que Gracias finalizava o documento com as modificações sugeridas por Roma, o seu mandato expirou e Cleemis o substituiu na presidência em 2014.
Chinnayyan e Cleemis trabalharam na versão final e conseguiram aprovar duas partes do texto na reunião de 2014 da comissão episcopal permanente.
Lendo o texto do documento, que ele mantém dentro de dois envelopes lacrados, Chinnayyan informou que, na introdução, explicam-se os padrões aos bispos e superiores maiores bem como os modos de implementação.
A parte operativa do documento busca uma adesão rígida aos procedimentos. “As normas indianas seguem a política de tolerância zero do Papa Francisco no tocante ao abuso sexual de menores”, completou o monsenhor.
A conferência pediu que os bispos convoquem uma reunião com os padres locais para explicar os padrões e procedimentos. De forma semelhante, os superiores maiores deveriam fazer o mesmo com os membros de suas respectivas ordens.
Chinnayyan disse que os padrões estipulam que uma diocese prepare um código de conduta a ser adotado pelas pessoas e instituições que atuem com menores. Ele também resumiu o procedimento apresentado nas orientações:
• Se um caso emerge em uma diocese ou província, uma comissão preliminar analisará a queixa e conversará com a vítima, com as testemunhas e com o acusado.
• Se a comissão encontrar “um indício de verdade” no caso, informará o bispo ou o superior maior. O bispo irá remeter o assunto para a congregação vaticana. Se Roma concordar que o caso tem fundamento, pedirá que a diocese prossiga com a investigação.
• Uma Comissão Especial para Crimes Sexuais nomeada pelo bispo ou superior maior estudará o caso. O mandato da comissão é de três anos e deverá possuir três membros, em que pelo menos um será especialista em Direito Canônico.
• A Comissão Especial irá analisar novamente o caso, conversando com o acusador, o acusado e testemunhas, e preparará provas documentais para submeter ao bispo ou superior dentro de 90 dias.
• As orientações estipulam que o bispo ou superior deve mostrar o relatório final à vítima e ao acusado e garantir que a justiça seja feita. Dependendo da gravidade em questão, o tema é de novo enviado a Roma.
• As penas podem ser severas a ponto de laicizar o acusado. No entanto, os padrões concluem com o Cânon 1752 do Código de Direito Canônico: “(…) tendo-se sempre diante dos olhos a salvação das almas, que deve ser sempre a lei suprema na Igreja”.
Em entrevista por telefone concedida posteriormente, em 4 de julho, Chinnayyan disse que uma diocese poderá muito bem agir contra um padre acusado antes que todos os passos no processo sejam realizados. Se uma comissão preliminar e o bispo concordarem que há verdade na acusação, o acusado estará proibido de exercer os seus deveres, como o de celebrar missas, pregar, realizar os sacramentos ou cumprir outras funções.
Chinnayyan disse que as diretrizes não levam os líderes eclesiásticos a relatar à polícia quaisquer conclusões tiradas com base em uma queixa de abuso.
Segundo Cleemis, todas as dioceses da Índia já criaram suas comissões permanentes.
Nesse ínterim, o padre abusador, Vadakkumcherry, propôs por duas vezes pagar fiança, o que foi negado. Atualmente ele aguarda julgamento numa prisão de Tellicherry, cidade no estado de Kerala. As religiosas e o padre acusados de acobertamento foram liberados após o pagamento de fiança e aguardam suas respectivas audiências nos tribunais.
A Diocese de Mananthavady destituiu Vadakkumcherry de todas os cargos que ocupava no mesmo dia em que fora levado pela polícia. Dom Porunnedom disse que a suspensão e proibição do padre em exercer os seus deveres sacerdotais permanecerão em vigor até que o acusado seja declarado inocente.
O Cardeal George Alencherry, que preside a Igreja Católica Siro-Malabar, considerou “muito sério” o caso e prometeu tomar medidas para que tais abusos não se repitam em sua igreja, que conta com aproximadamente 5 milhões de fiéis. “Este padre cometeu um erro grave. A Igreja não vai proteger o acusado”, contou o cardeal a repórteres em Kochi, capital comercial de Kerala em 5 de março.
Cleemis acolheu o gesto da Diocese de Mananthavady e de Porunnedom em confortar a vítima e seus familiares. Chinnayyan disse que manter contato constante com a vítima e sua família depois que uma queixa é registrada está em conformidade com os padrões estabelecidos pela conferência episcopal. Uma tal medida não deve servir para afastar as pessoas ou intimidá-las, e sim para prestar um acompanhamento neste momento de dor e angústia.
A polícia prendeu Vadakkumcherry três semanas depois que uma menina de 16 anos deu à luz um menino. O padre foi acusado de ter engravidado a adolescente, que na época estudava em sua escola. Num primeiro momento, Vadakkumcherry tentou implicar ao pai da garota como sendo o abusador, porém um teste de DNA, divulgado no dia 31 de março deste ano, provou que Vadakkumcherry é o pai biológico do recém-nascido.
Gajiwala ficou feliz com que os bispos de Assam, no norte da Índia, publicaram recentemente diretrizes para lidar com o clero abusador. “Os bispos deixaram claro que irão suspender os que cometem crimes e que informarão os casos às autoridades civis. Tomara que outras dioceses tenham iniciativas como estas também”, acrescentou.
Em 6 de março, a Diocese de Mananthavady emitiu um conjunto de 12 diretrizes que visam evitar escândalos futuros e a transformar a diocese no sentido de se tornar mais transparente. Elaboradas por padres e membros do conselho pastoral, estas normas exigem que todas as igrejas e presbitérios instalem circuitos fechados de TV e criem comissões paroquiais voltadas ao tema.
Representantes diocesanos afirmaram que a diocese nada fará para proteger o padre acusado e seus cúmplices.
Cleemis disse que o escândalo se tornou uma desculpa para a imprensa questionar inclusive a existência da Igreja. “Estes casos têm causado um grande dano não às dioceses, mas para a Igreja em Kerala e na Índia como um todo. Não só os católicos, mas os cristãos de outras denominações e todas as pessoas de boa vontade estão muito tristes”, observou o cardeal.
No entanto, o incidente de Kottiyoor e a resposta subsequente da Diocese de Mananthavady encorajaram muitas outras jurisdições eclesiásticas a abordar problemas parecidos de uma forma objetiva e a dar passos no sentido de prevenir que casos assim se repitam.
Os escândalos desafiam os bispos e outras lideranças a praticarem a humildade enquanto representam a Igreja “com autenticidade e credibilidade” diante do público, acrescentou Cleemis.
Nota:
[1] A Índia é o lar de três tipos diferentes de liturgia: as liturgias do Rito Sírio das igrejas siro-malabar e siro-malancar e a liturgia de Rito Latino comum nos países ocidentais. (Nota do tradutor)
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Índia: sigilo nas orientações para casos de abuso sexual causa confusão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU