20 Fevereiro 2017
O poeta e sacerdote trapense Ernesto Cardenal denunciou estar sendo vítima de uma perseguição política por parte do governo do presidente Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo através do sistema de Justiça nicaraguense, enquanto foi constituído um movimento de solidariedade com o poeta que envolveu poetas, jornalistas, intelectuais e religiosos que exigiram do regime de Manágua a suspensão da perseguição do governo.
A reportagem é de Israel González Espinoza e publicada por Religión Digital, 16-02-2017. A tradução é de André Langer.
Na última terça-feira, o padre Ernesto Cardenal deu as primeiras declarações sobre a sentença judicial que o obriga a pagar 17,2 milhões de córdobas nicaraguenses (cerca de 750 mil euros) por supostos danos, prejuízos, deterioração de bens e perda de ativos em um litígio pela propriedade de um hotel na Ilha de Solentiname interposta por Nubia del Socorro Arcia Mayorga, viúva de Alejandro Guevara (líder formado na comunidade criada pelo padre na ilha e que faleceu em um acidente de trânsito em 1994) e ex-ministra da primeira administração de Ortega após seu retorno ao poder após 17 anos de governos de centro-direita.
“Alegro-me com o fato de que o mundo inteiro esteja tomando conhecimento de que sou um perseguido político na Nicarágua. Perseguido pelo governo de Daniel Ortega e sua esposa, que são donos de todo o país, inclusive da Justiça, da Polícia e do Exército. Não posso dizer mais, porque esta é uma ditadura”, disse o sacerdote – indicado em 2010 ao Prêmio Nobel de Literatura – a um jornalista do portal de notícias socialdemocrata Confidencial.
Segundo o autor de Hora 0 e Oração por Marilyn Monroe e outros poemas, ele está contente com o fato de que o mundo esteja se dando conta de que o governo de Daniel Ortega e sua esposa Rosario Murillo o perseguem politicamente. Além disso, apontou o casal governante da Nicarágua de ter poderes absolutos sobre toda a estrutura do Estado nicaraguense. Enfático, o poeta e sacerdote não duvidou em dizer que o país entrou novamente em uma ditadura.
Assinalou, além disso, que sua única defesa é Deus e a solidariedade das pessoas que o estão acompanhando neste momento. As declarações do poeta e sacerdote foram feitas durante a sua participação no XIII Festival Internacional de Poesia de Granada (FIPG-Nicarágua 2017), que este ano reúne 100 poetas de 91 países do mundo, na considerada “capital turística da Nicarágua”.
O processo movido contra Ernesto Cardenal provocou feridas no Festival, e vários poetas do mundo não duvidaram em mostrar a sua irritação e surpresa com a decisão da Justiça nicaraguense – totalmente controlada pelo partido do governo – de obrigar o veterano sacerdote de 92 anos a pagar uma milionária dívida que é vista no país como uma demonstração de revanchismo político contra um homem que dedicou sua vida a trabalhar pela Nicarágua a partir da poesia, do sacerdócio e do compromisso com a opção preferencial pelos pobres.
“Agora todo o mundo está tomando conhecimento – isso me alegra muito – de que sou um perseguido político na Nicarágua. O governo que temos, o casal presidencial de Daniel Ortega e sua mulher, está me perseguindo. Eles são os donos de todos os Poderes da Nicarágua. Eles têm um poder absoluto, infinito, que não tem limites, e esse poder está agora contra mim. Não tenho nenhuma outra defesa senão Deus, que não me desampara... e tenho a solidariedade de muitas pessoas que me acompanham neste momento. Mas não posso dizer mais do que isso, porque, como é uma ditadura, não posso falar mais”, disse Cardenal ao redator de Confidencial na cidade de Granada (a 45 quilômetros de Manágua).
A medida judicial contra Ernesto Cardenal não caiu no vazio na classe intelectual da Nicarágua, composta em sua maioria por artistas, poetas, escritores e jornalistas que foram muito ativos durante a década revolucionária (1979-1990).
Sergio Ramírez Mercado, escritor, ex-vice-presidente da Nicarágua (1985-1990) e Prêmio Alfaguara de Romance 1998, escreveu no Facebook um artigo de opinião intitulado “Os juízes de Caifás”, no qual diz que o poder “odeia o Ernesto Cardenal por ser tão grande e por falar tão alto”.
“Quando vierem os juízes de Caifás com seus taxadores oficiais para fazer o inventário do que há nesta casa (de Ernesto Cardenal) para confiscar tudo, encontrarão muito pouco. Os mesmos móveis velhos, seus livros nas estantes, esses sim, muitos, mas que seguramente não servirão à voracidade de quem quer despojá-lo por vingança. Odeiam-no por ser tão grande e por falar tão alto, por não se calar nunca”, assinalou o escritor.
O autor de Margarita, está linda la mar (1998) e Te Dio miedo la sangre (1977) indicou que o único propósito da sentença judicial é despojar o poeta Ernesto Cardenal do pouco que possui para deixá-lo na rua. Nesta situação, convidou o padre para mudar-se para a sua casa (são vizinhos na mesma colônia do centro da capital nicaraguense) e para preparar-se, porque muitos irão brigar para convidá-lo para morar com eles.
“Notificaram a sentença condenatória ao maior poeta da Nicarágua, maquinada no meio da noite, por meio de cédula judicial, como a alguém que não tem domicílio conhecido. O juiz que o condenou vai ordenar que o tirem desta casa para entregá-la ao demandante inventado pelo poder que quer humilhá-lo. Nenhuma outra coisa se pode esperar. A pretensão é deixá-lo na rua. Isso sim, acrescento, prepare-se para uma grande disputa, porque serão milhares na Nicarágua que vão querer levá-lo para morar com eles; uma honra assim não passa tão facilmente despercebida, como não passa despercebida esta colossal injustiça à qual o submetem os juízes de Caifás”, termina o texto de Sergio Ramírez Mercado.
A Igreja católica nicaraguense (à qual pertence Cardenal na sua qualidade de sacerdote) não fez nenhum pronunciamento oficial, mas dom Silvio José Báez Ortega, OCD, bispo auxiliar de Manágua retuitou em sua conta oficial no Twitter @silviojbaez a publicação do escritor Sergio Ramírez Mercado, “Os juízes de Caifás”.
Também diversos sacerdotes, religiosas na Nicarágua e na América Latina, assim como meios de comunicação como Amerindia na Rede ecoaram a notícia. Outros, como a ativista feminista Sofía Montenegro e o jornalista Carlos Fernando Chamorro Barrios condenaram a ação da Justiça nicaraguense e compartilharam a nota jornalística de Religión Digital para ecoar que o “caso Cardenal” está em nível internacional.
“O poeta foi absolvido em 2010 e agora volta a sair uma ordem judicial absurda. Aqui estão todos os nicaraguenses para abraçá-lo, para recebê-lo em suas casas e defendê-lo como merece”, manifestou à agência DPA a escritora Gioconda Belli, amiga de Cardenal, presente no Festival de Poesia de Granada.
A poetisa mexicana Lina Zerón manifestou seu desacordo com a medida, posto que, na sua opinião, Ernesto Cardenal contribuiu para o desenvolvimento do país centro-americano. “É uma terrível injustiça. Ele foi fundamental para o desenvolvimento da Nicarágua”, disse.
Em sua carta aberta, o escritor, roteirista e jornalista uruguaio Fernando Butazzoni qualificou o presidente Ortega de “reizinho preso em seu palácio e, pelo que dizem, quase príncipe consorte”, e disse que bastaria uma ordem do presidente para acabar com o assédio contra Cardenal, expoente da Teologia da Libertação.
“Hoje, ele é um idoso de 92 anos, e é um patrimônio do idioma e de toda América Latina. Tem muito mais prestígio agora do que em 1979. O mesmo não acontece com você, Daniel, porque você tem muito mais poder e muito mais dinheiro que naquela época. Ele é um padre decente, pobre e revolucionário, admirado em todo o mundo. Você é apenas um reizinho preso em seu palácio e, pelo que dizem, quase um príncipe consorte. Todos sabem que bastaria um gesto da sua corte para que cessem os assédios e a perseguição a Ernesto Cardenal. Somos milhares de escritores e artistas que, em todo o mundo, exigem há anos que deixe o poeta em paz. Muitos pensam que fazer esse pedido mais uma vez é um gesto inútil. Em todo o caso, é um gesto de dignidade que o povo da Nicarágua merece. Peço que o leve em consideração”, escreveu Butazzoni, que participou da luta revolucionária contra a ditadura de Anastasio Somoza Debayle.
Enquanto isso, a Rede Internacional de Escritores pela Terra (RIET) da Espanha emitiu um contundente comunicado de apoio ao poeta e sacerdote trapense, e pede ao governo do presidente Daniel Ortega Saavedra a anulação da milionária multa que a Justiça do país centro-americano impôs a Ernesto Cardenal, acrescentando que tal medida “é uma vergonha do governo de Ortega”.
Mesmo assim, a RIET começou outra campanha de apoio internacional em favor do padre Ernesto Cardenal na plataforma virtual, como já o tinha feito em 2008, durante o momento mais forte da perseguição do governo da Nicarágua contra dissidentes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), entre os quais estava o poeta e sacerdote, que não duvidou em denunciar a deriva totalitária da administração de Daniel Ortega.
“A RIET sempre criticou este processo já que é evidente que responde à instrumentalização judicial que se vive na Nicarágua e é uma desculpa para perseguir o Cardenal (não devemos esquecer que em 2005 foi declarado inocente). Assim, a RIET fez várias campanhas midiáticas para apoiar o seu presidente de honra. Em 2008, elaborou ‘Escritores contra a Ditadura’, um documento que contou com o apoio de todos os membros da RIET e de outras destacadas personalidades, como José Saramago, Mario Benedetti, Joan Manuel Serrat, Mario Vargas Llosa, Almudena Grandes, Fernando Savater, Joaquín Sabina, etc.”, assinala parte do comunicado.
De acordo com este mesmo comunicado, a RIET começará esta semana a pedir a solidariedade mundial de seus membros ao padre Ernesto Cardenal, além de abrir um espaço em sua plataforma na internet para que as pessoas possam mostrar seu descontentamento com a medida. Por último, informa que enviará uma carta de protesto à Embaixada da Nicarágua em Madri para solicitar ao governo de Ortega que cesse a perseguição.
“A RIET decidiu lançar uma nova campanha a favor de Cardenal, e esta semana animará os seus membros para que façam chegar seu apoio através da rede. A organização também abrirá um espaço em sua página na internação para que todo o mundo possa expressar sua rejeição a esta condenação. Finalmente, a RIET enviará uma carta oficial à Embaixada nicaraguense na Espanha na qual mostrará sua rejeição a esta situação e pedirá ao governo de Daniel Ortega e à Justiça nicaraguense para que intervenham neste assunto, anulem a sanção econômica e acabem de uma vez por todas com este processo judicial que não prejudica apenas o Ernesto Cardenal, mas também a imagem que a Nicarágua está projetando ao mundo”, finaliza o comunicado, com data de 13 de fevereiro do ano em curso, escrito na Península Ibérica.
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Ernesto Cardenal: “A Nicarágua é uma ditadura. Sou um perseguido político de Ortega e sua esposa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU