Deus na totalidade das coisas, narrativa e profecia na Idade Média. Projetando feixes de luz em uma instituição centrada no poder dos homens, com música e poesia, Hildergard de Bingen compreendia Deus em toda a Criação. A mulher, monja, teóloga, musicista, poeta e dramaturga, pregava em meio aos homens, assumia originalidade e protagonismo — aos 38 anos já era abadessa de mosteiro. "O que nós chamamos agora de arte, na sua época, era religião. Se eu tivesse que definir Hildegard para o nosso mundo, eu diria que ela era uma artista", definiu a filóloga Victoria Cirlot.
A teóloga Felisa Elizondo relatou à IHU On-Line a escassez de fontes sobre a vida de Hildegard, mas que novas pesquisas dão conta de mostrar o complexo era seu pensamento "não faltam trabalhos sobre seus saberes de ciências naturais e medicina, sua arte culinária, e sobre as iluminuras dos códices", afirmou.
A monja do século XII escreveu amplamente sobre a igualdade entre homens e mulheres. A teóloga italiana Karin Heller explica que Hildegard "não adotaria a teoria da indiferença dos sexos", mas compreendia nas diferenças da natureza dos sexos o equilíbrio, de forma que "A virtude da mulher está em construir e em falar no mesmo nível do homem". A espanhola Ana Marta Rubios aponta que a teologia da mulher feita por ela é muito distinta da teologia dos séculos que a sucederam. "Para Hildegard, a ideia de que o pecado original era de luxúria, a culpa foi de Satanás, que soprou veneno sobre a maçã antes de entregá-la a Eva, invejoso de sua maternidade vida", afirma em seu livro História Medieval do Sexo e do Erotismo.
A potência da sabedoria de Hildegard a fez instrutora e conselheira de reis, imperadores, clérigos e de papas, e até mesmo reformista dos mosteiros femininos. Sua eclesiologia, compreendia a própria mística da Trindade entre o povo, a Igreja comunidade e trina — clero, religiosos/religiosas e leigos/leigas. Papa Eugênio III registrou as visões que narram a compreensão de Deus, formulando uma doutrina cristã de ensinamentos para vida eterna na Cidade Celestial, das virtudes, pecados e suas penitências, assim como a cosmovisão, ainda que antropocêntrica, mas calcada no cuidado da Criação.
Obra retrata Hildergard como ativista ambiental (Foto: ytimg.com)
Seu conhecimento da natureza, e de todas as coisas da Criação, fizeram dela a "primeira naturopata da Idade Média". "Em toda a criação – árvores, plantas, animais, pedras preciosas – estão escondidas virtudes secretas curativas. Ninguém pode conhece-las, senão por revelação de Deus", escreveu em uma de suas visões.
Hildegard von Bingen, ou a Sibila do Reno, nasceu na Alemanha, em 1098 e viveu até os 81 anos. Em 2012, foi proclamada pelo papa Bento XVI como "Doutora da Igreja". Na Carta Apostólica em que faz a proclamação, o atual papa emérito enfatiza: "Em Hildegard resultam expressos os valores mais nobres da feminilidade: por isso também a presença da mulher na Igreja e na sociedade é iluminada pela sua figura, tanto na ótica da pesquisa científica como na da ação pastoral".
Esse artigo compõe a série "Mulheres na Igreja. Vozes que nos Desafiam", produzida pelo Programa Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Compartilhamos abaixo músicas e poesias de Hildegard von Bingen, o filme sobre a sua vida e uma série de entrevistas, artigos e reportagens com pesquisadores da sua vida publicadas no sítio do IHU e na Revista IHU On-Line.
Ó gloriosa luz vivente, que vives na divindade!
Anjos que fixais vossos olhos com ardente desejo,
Em meio à mística escuridão que rodeia todas as criaturas,
Sobre aquele de que vossos desejos jamais se podem saturar!
Ó gloriosa alegria, viver em vossa forma e natureza!
Com efeito, sois livres de toda obra do mal,
Embora aquele mal primeiramente tenha aparecido
em vossa companhia,
O anjo caído, que tentou plainar acima de Deus,
E, portanto, aquele deformado foi submerso na ruína.
E, pois, para si mesmo preparou uma queda maior
Mediante suas insinuações àqueles que a mão de Deus fez.
Ó anjos de faces brilhantes, que guardais as pessoas,
Ó vós, arcanjos, que levais as almas justas para o céu,
E vós, ó virtudes e potências, ó principados,
Dominações e tronos, que sois contados secretamente em cinco,
E vós, querubins e serafins, selo dos segredos de Deus,
Louvados sejais, todos vós, que contemplais o coração do Pai,
E vedes o Ancião dos Dias a brotar na fonte,
E seus íntimos poderes aparecerem de seu coração,
semelhantes a uma face.
Hildegard de Bingen, uma “artista” mística e profética. Entrevista especial com Victoria Cirlot
“Hildegard de Bingen foi uma visionária, profeta e mística do século XII. Escreveu uma obra profética, isto é, revelada, na qual transcreve a voz de Deus, mas também na qual introduz passagens autobiográficas em que fala de uma experiência de união com Deus”. Mas não só: “Ela escreveu uma obra ‘científica’, nascida da observação direta da natureza. Foi poeta e compôs música”. Nestas poucas linhas, Victoria Cirlot, professora de Filologia Românica na Faculdade de Humanidades da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona, busca resumir um “caso único” da história da mística e da espiritualidade universais.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Victoria afirma que “o fato de uma mulher escrever e falar em público perante os prelados da Igreja é algo extraordinário para a condição da mulher na Idade Média”. Hildegard pôde fazer isso “graças ao carisma que lhe foi proporcionada pela sua faculdade visionária em uma época (século XII) em que a Igreja ainda estava aberta a esse tipo de experiências”, além de contar com o apoio de Bernardo de Claraval , o que sem dúvida foi decisivo.
Portanto, uma mística que revela “o aspecto feminino de Deus”, afirma Victoria. Eu situo Hildegard nas origens da mística feminina”, explica. “Se eu tivesse que definir Hildegard para o nosso mundo, eu diria que ela era uma artista. Dito de outro modo, se Hildegard tivesse vivido no século XX ou XXI, teria sido uma artista de primeira ordem, pela sua elevadíssima capacidade criadora”, sintetiza.
Hildegard e Hadewijch: mística da luz viva, mística do amor. Entrevista especial com Felisa Elizondo
Em Hildegard de Bingen, o símbolo por excelência é a luz. “Minha alma não carece em nenhum momento da luz que eu chamo sombra de luz viva”, afirmava. Já Hadewijch de Antuérpia expressa o que há de mais terno, ousado e sublime no amor de Deus e humano, explica Felisa Elizondo.
Não é possível separar em Hildegard de Bingen suas duas características fundamentais: mística e visionária. “A ‘visão’ – afirma Felisa Elizondo, professora do Instituto Superior de Pastoral – ISP da Universidade Pontifícia de Salamanca, de Madri – é um gênero que tem componentes tais como relatos bíblicos, imagens e certa vontade de ensinar aos outros, juntamente com uma dimensão profética que o diferenciam de outras formas de experiência interior”. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Felisa analisa a “luz, em sua intensidade variável, e o uso das cores”, dois usos simbólicos nos escritos de Hildegard que “‘dizem’ o que é dificilmente exprimível”. Nela, “o símbolo por excelência é a luz”, afirma. Outra mística analisada por Felisa é Hadewijch de Antuérpia. “A ‘mística do Amor’ tem em Hadewijch um expoente de relevo singular e supõe a reação a uma teologia que, por influência de diversos filósofos, falava da incognoscibilidade de Deus e levava à separação entre as disputas teológicas e a espiritualidade”, afirma. “‘Dominada por um Amor apaixonado’, como ela mesma reconhece, Hadewijch cantou como poucos o desejo, a calma e a tempestade, o gozo e o tormento do amor”, explica Felisa.
"Se Deus é amor, tudo é amor"
Teóloga, filósofa, cientista, psicóloga, promotora de uma medicina alternativa, musicista, reformadora da moral, uma profetisa - Hildegard de Bingen (1098-1179) foi uma das figuras mais “intensas e extraordinárias" da história da Igreja. Em sua multifacetada produção se revela "a versatilidade de interesses e vivacidade cultural dos mosteiros femininos da Idade Média" - como escreveu Bento XVI, por ocasião de uma das duas catequeses dedicadas à Hildegard, antes de a proclamar Doutora da Igreja universal, em 10 de maio de 2012.
A monografia de Giordano Frosini oferece uma leitura atualizada da personalidade e da obra do "profetisa teutônica", "na convicção de que a reflexão teológica, que perdura mais ou menos há vinte séculos, constitui um continuum que se estende progressivamente ao longo do tempo, até sua conclusão, que não é desta terra" (p. 7). Um método que o próprio Frosini não hesita em definir como sui generis, e "que parte da análise dos pensamentos mais originais e fundamentais da autora e do seu século, e confronta-os com desenvolvimentos ocorridos especialmente em nossos tempos, de alguma maneira continuando-os e trazendo-os até nossos dias" (p. 11s).
Hildegard de Bingen e a igualdade homem-mulher. Artigo de Karin Heller
Karin Heller analisa o que se dizia nos séculos XI e XII sobre as "naturezas" feminina e masculina. O debate não era menos forte do que hoje.
Para Hildegard, a visão da relação homem-mulher estava ancorada em uma complementaridade, baseada em uma igualdade entre os sexos. Ela expressa o seu pensamento utilizando uma linguagem emprestada de Aristóteles e de Platão, mas, ao mesmo tempo, distanciando-se deles. Ela explica o ser humano com a ajuda dos quatro elementos da natureza (fogo, água, ar, terra).
Hildegard von Bingen, uma "grande profetisa", segundo Bento XVI
Publicamos aqui a catequese do Papa Bento XVI na audiência geral da manhã desta quarta-feira, no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo. Diante de grupos de peregrinos e fiéis da Itália e de todas as partes do mundo, o Papa, se deteve sobre a figura de Hildegard von Bingen.
"Também naqueles séculos da história que nós habitualmente chamamos de Idade Média, diversas figuras femininas destacam-se pela santidade da vida e pela riqueza do ensinamento. Hoje, gostaria de começar apresentando-lhes uma delas: santa Hildegard von Bingen, que viveu na Alemanha no século XII."
Confira a catequese na íntegra.
Conheça a monja medieval que foi pioneira ao descrever orgasmo do ponto de vista de uma mulher
Hildegard falava sem medo de sexo: de uma forma tão clara, como apaixonada. Foi a primeira a se atrever a garantir que o prazer era coisa de dois e que a mulher também o sentia. A primeira descrição do orgasmo feminino do ponto de vista de uma mulher foi a sua.
Hildegard: mulher moderna e inspirada. Artigo de Marina Monego
Pode uma freira de clausura do século XII, mística, inspirada por visões, ainda ter algo a dizer aos homens e mulheres do século XXI, tão ocupados, tecnológicos, aparentemente tão distantes das realidades ultraterrenas e daquele mundo simbólico?
Certamente os textos de Hildegard não são de fácil leitura e, muito menos, interpretação, já que se trata de visões (algumas realmente fascinantes e ricas em símbolos); reconstruir de forma ordenada o pensamento da santa não deve ter sido uma tarefa fácil e isso aumenta o crédito de Frosini, que realmente realizou uma grande obra.