03 Agosto 2018
Escócia tem a única força policial do mundo que adotou formalmente um modelo de saúde pública. Após 13 anos, homicídios em Glasgow caíram 60%.
A reportagem é de Samira Shackle, publicada por Mosaic Science e reproduzida por Outra Saúde, 25-07-2018. A tradução e adaptação é de Raquel Torres.
Glasgow é a maior cidade da Escócia e, em 2005, um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre crimes em 21 países europeus mostrou que aquela era a “capital do assassinato” da Europa. No mesmo ano, as Nações Unidas publicaram um relatório declarando a Escócia o país mais violento do mundo desenvolvido.
Também foi naquela época que uma analista da polícia chamada Karyn McCluskey escreveu um relatório onde notava que o policiamento tradicional não melhorava o problema. Esses relatórios sempre incluem uma lista de recomendações. “Um foi irônico: ‘Faça algo diferente’. Acho que não era para estar lá. Mas o chefe de polícia disse: ‘Ok, faça algo diferente’”, lembra Will Linden, que trabalhou para McCluskey.
Então a equipe liderada por ela e seu colega John Carnochan começou a reunir evidências sobre os fatores que impulsionam a violência. “Particularmente na Escócia, eram a pobreza, a desigualdade, coisas como masculinidade tóxica, uso de álcool, todos esses fatores — muitos dos quais estavam fora dos limites do policiamento”, diz Linden.
Em seguida, eles fizeram pesquisas encontrar e aprender com programas pioneiros no mundo todo. Esta foi a base da criação da Unidade de Redução da Violência (VRU), da qual Linden é agora a diretor interino. A Unidade tem elementos dos programas que a inspiraram e conseguiu apoio de uma série de órgãos escoceses, como o serviço de saúde, o de apoio a adicções e centros de emprego. O resultado: desde que a VRU foi lançada, ainda em 2005, a taxa de homicídios em Glasgow caiu em 60%.
A estratégia da VRU é descrita como uma abordagem de ‘saúde pública’ para prevenir a violência. Isso se refere a toda uma escola de pensamento que sugere que além dos óbvios problemas de saúde que resultam da violência — o trauma psicológico e as lesões físicas — o próprio comportamento violento é uma epidemia que se espalha de pessoa para pessoa.
Um dos principais indicadores de que alguém vai realizar um ato de violência é, em primeiro lugar, ser vítima de um. A ideia de que a violência se espalha entre as pessoas, reproduzindo-se e mudando as normas do grupo, explica por que uma localidade pode ver mais esfaqueamentos ou tiroteios do que outra área com muitos dos mesmos problemas sociais.
“Apesar do fato de que a violência sempre esteve presente, o mundo não precisa aceitá-la como uma parte inevitável da condição humana”, afirma o guia da OMS sobre a prevenção da violência. Ele diz que “a violência pode ser evitada e seu impacto reduzido, da mesma forma que os esforços de saúde pública impediram e reduziram complicações relacionadas à gravidez, lesões no local de trabalho, doenças infecciosas e doenças resultantes de alimentos e água contaminados em muitas partes do mundo. Os fatores que contribuem para as respostas violentas — sejam eles fatores de atitude e comportamento ou relacionados a condições sociais, econômicas, políticas e culturais mais amplas – podem ser alterados ”.
Mas em grande parte do mundo, agir de forma dura contra o crime é o que rende votos, então a recomendação é difícil de ‘vender’. Como Glasgow fez isso? Ao investigar o que realmente significa tratar a violência como um problema de saúde, a VRU prestou atenção a um exemplo vindo de Chicago.
Nos anos 1980 e início dos anos 1990, o epidemiologista americano Gary Slutkin esteve na Somália, como um dos seis médicos que trabalham em 40 campos de refugiados contendo um milhão de pessoas. Seu foco estava em conter a disseminação da tuberculose e da cólera.
Conter doenças infecciosas é algo que depende da sistematização de dados. Primeiro, as autoridades de saúde pública mapeiam exatamente onde a maioria das transmissões da doença está ocorrendo, então podem se concentrar em conter a disseminação nessas áreas. Slutkin seguiu essas etapas para conter surtos nos campos de refugiados somalis e, mais tarde, quando trabalhou para a OMS na prevenção da Aids. Qualquer que fosse a natureza exata da doença infecciosa em questão, os passos para contê-la eram praticamente os mesmos.
Grande parte do esforço estava em promover mudanças comportamentais, algo mais eficaz do que simplesmente fornecer informações às pessoas. E, para mudar o comportamento — seja usando soluções de reidratação, evitando água suja ou usando preservativos — mensageiros confiáveis são essenciais. “Em todos esses surtos, usamos mensageiros do mesmo grupo [que a população alvo]”, diz Slutkin: “Refugiados na Somália para alcançar refugiados com tuberculose ou cólera, trabalhadoras do sexo para alcançar profissionais do sexo com AIDS, mães para alcançar mães em amamentação e tratamento da diarreia.”
Depois de mais de uma década trabalhando no exterior, Slutkin retornou à sua cidade natal, Chicago, no final da década de 1990, exausto das viagens perpétuas e constante exposição à morte. “Eu queria uma pausa de todas essas epidemias”, diz ele. Não lhe ocorreu que a América também tinha dificuldades, e ele voltou a um tipo diferente de problema: uma taxa de homicídios disparada.
Suas ideias sobre como lidar com esse problema começaram como um projeto nerd, nascido da obsessão por gráficos e tabelas que ele havia desenvolvido no exterior. Ele reuniu mapas e dados sobre a violência armada em Chicago e, ao fazê-lo, viu que os paralelos com os mapas de surtos de doenças aos quais ele estava acostumado eram inevitáveis. “As curvas epidêmicas são as mesmas, o agrupamento. De fato, um evento leva a outro, que é diagnóstico de um processo contagioso. A gripe causa mais gripe, os resfriados causam mais resfriados e a violência causa mais violência ”.
Esta foi uma mudança radical do pensamento dominante sobre a violência na época, que se concentrou principalmente na aplicação da lei. “A ideia errada é que essas pessoas são ‘más’ e sabemos o que fazer com elas, o que é puni-las”, diz Slutkin. “Isso é fundamentalmente um entendimento errado da condição humana. O comportamento é formado por modelagem e cópia. Quando você o observa sob a lente da saúde, você não culpa. Você tenta entender e busca soluções”.
Ele passou os próximos anos tentando reunir fundos para um projeto piloto que usaria os mesmos passos contra a violência que a OMS toma para controlar surtos de cólera, tuberculose ou HIV. Ele teria três pontos principais: interromper a transmissão, impedir a disseminação futura e alterar as normas do grupo.
Em 2000, um piloto foi lançado no bairro de West Garfield, em b. No primeiro ano, houve uma queda de 67% nos homicídios. Mais financiamento veio, mais bairros foram atingidos. Em todos os lugares, os homicídios caíram em pelo menos 40%. A abordagem começou a ser replicada em outras cidades. Embora houvesse muitos fatores estruturais mais profundos contribuindo para a violência de Chicago — pobreza, falta de emprego, exclusão, racismo e segregação —, Slutkin argumentou que vidas poderia ser salvas mudando o comportamento dos indivíduos e mudando as normas do grupo.
Hoje ele comanda uma organização chamada Cure Violence, no Departamento de Saúde Pública da Universidade de Illinois, em Chicago. Um pôster no corredor traz uma foto de um menino, com o slogan “Não atire. Eu quero crescer’. A organização trabalha em 13 bairros, e versões do programa são executadas em Nova York, Baltimore e Los Angeles, bem como em outros países ao redor do mundo.
Embora haja um nível de debate sobre o uso da estatística Cure Violence, a eficácia geral do método tem sido demonstrada por vários estudos acadêmicos. Um estudo de 2009 na Universidade Northwestern descobriu que o crime caiu em todos os bairros analisados onde o programa estava ativo.
Em 2012, pesquisadores da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins analisaram quatro partes de Baltimore que administravam o programa e descobriram que os tiroteios e os homicídios caíram nos quatro. Os resultados são freqüentemente impressionantes. Em San Pedro Sula (Honduras), as primeiras cinco zonas do Cure Violence tiveram uma queda de 98 tiroteios em janeiro-maio de 2014 para apenas 12 no mesmo período em 2015.
Demetrius Cole tem 43 anos, um homem gentil e de fala mansa que passou 12 anos na prisão. Quando ele tinha 19 anos, um amigo próximo comprou um carro novo. Alguns outros garotos do bairro tentaram roubar o carro e atiraram no amigo de Cole. Cole não parou para pensar. Ele retaliou. Naqueles poucos minutos, sua vida mudou completamente. Enquanto seu amigo ficou paralisado, incapaz de trabalhar novamente, Cole foi enviado para a prisão.
Desde outubro de 2017, ele trabalha para a Cure Violence como ‘interruptor de violência’, intervindo no rescaldo de um tiroteio para evitar retaliações e para acalmar as pessoas antes que uma disputa se agrave para a violência. “Meu trabalho é interromper as transmissões”, diz Cole.
A capacidade dos interruptores para serem eficazes depende da sua credibilidade. Muitos, como Cole, cumpriram longas sentenças de prisão e podem falar por experiência própria. A maioria também tem um relacionamento próximo com a comunidade local. Eles podem responder quando um tiroteio acontece, por exemplo, convencendo os entes queridos a não revidar. Mas eles também sabem quando um conflito está se formando entre dois indivíduos ou grupos rivais, e pode tentar neutralizar a tensão ou sugerir alternativas pacíficas.
Embora deva sempre ser adaptado para cada local, o Cure Violence segue aproximadamente as mesmas etapas ao estabelecer-se em um novo lugar. Primeiro, mapeia-se a violência para ver onde ela se agrupa. Em seguida, contratam-se trabalhadores confiáveis como interruptores. Eles então patrulham as ruas em seu ritmo, conhecendo lojistas, vizinhos — e construindo ligações com homens e mulheres jovens considerados de alto risco.
Em um dos centros mais recentes, em South Side, há 11 interruptores, que normalmente gastam pelo menos seis das oito horas em turnos em seus bairros, bem como quatro trabalhadores de extensão, que interagem com os participantes no longo prazo. Durante um período de seis meses a dois anos, os trabalhadores comunitários tentam mudar as atitudes em relação à violência, assim como conectam pessoas com oportunidades de trabalho, aconselhamento ou educação.
“Você tem que ter alguns truques na manga”, diz Jermaine Peace, um trabalhador de extensão na Grand Crossing. Às vezes, ele pode atrair o interesse de alguém dizendo que pode ajudá-lo a obter um documento com foto, como uma carteira de motorista. “Alguns desses meninos e meninas pensam que ninguém se importa”, diz ele.
“Quando você começa a mostrar que se importa e liga para eles, eles podem ligar um dia e dizer: ‘Cara, eu não comi em dois dias’. Você vai lá e compra algo para comer, você tem mais chance de falar para eles”. Peace usa essas aberturas para tentar mudar a visão deles sobre a violência. Os trabalhadores de apoio ajudam com um pouco de tudo — encaminhando-os para tratamento de dependência, procurando emprego ou até mesmo comprando roupas novas para usar nas entrevistas.
Enquanto Slutkin enfatiza a rapidez com que este modelo pode ser eficaz na redução de homicídios, e como ele custa menos do que o encarceramento em massa, não há como escapar do fato de que são necessários muitos trabalhadores para obter resultados. Alguns dos territórios de gangues de Chicago são muito pequenos, apenas alguns quarteirões. Um interruptor de violência respeitado em uma área pode, em outra, ser desconhecido, ou não parecer confiável. Para trabalhar, deve haver pelo menos um interruptor com fortes conexões em cada distrito, de modo que, se houver um conflito, alguém com a confiança do grupo possa mediar.
Quando a VRU foi fundada em 2005, Karyn McCluskey e John Carnochan, da polícia de Strathclyde, procuraram no mundo possíveis soluções para o problema de Glasgow com a violência. O que eles acabaram criando misturou a abordagem de Gary Slutkin com a de David Kennedy, um criminologista.
O modelo de Kennedy, que foi lançado em Boston na década de 1990, envolve reunir membros de gangues e dar a eles uma opção: renunciar à violência e entrar na educação ou no trabalho, ou enfrentar penas severas. Isso significou o aumento das medidas penais tradicionais, mas juntamente com medidas preventivas alinhadas com a abordagem de saúde pública.
Will Linden, o diretor em exercício da VRU, argumenta que isso era politicamente necessário. “Antes de irmos aos serviços para fazer as coisas de forma diferente, tivemos que mostrar que a polícia estava fazendo o melhor que podia, mas ainda não era suficiente”, diz ele. Se, a princípio, a ênfase foi distribuída de forma igualmente igual entre o policiamento mais rigoroso e o trabalho preventivo, hoje Linden estima que cerca de 90% do financiamento e ênfase estão na prevenção.
O VRU é dirigido pela força policial, com apoio do governo escocês. Isso é altamente incomum — a Escócia tem a única força policial do mundo que adotou formalmente um modelo de saúde pública. O Cure Violence funciona na universidade, enquanto programas semelhantes em Nova York e Baltimore são administrados através dos departamentos de saúde das cidades. Slutkin, uma purista do modelo de violência na saúde pública, diz que é “horrível” para a polícia administrá-la, já que a polícia costuma ser parte do problema.
Mas na Escócia, ao lado da polícia, toda uma gama de funcionários públicos — de médicos a assistentes sociais — está envolvida. A VRU também emprega ‘navegadores’ que, como os interruptores de violência de Chicago, intervêm diretamente após incidentes violentos para aliviar a tensão e ajudar as pessoas a encontrar apoio. Mas é diferente. Os navegadores de Glasgow não são atribuídos a localidades específicas; em vez disso, eles trabalham em departamentos de emergência e acidentes e abordam pessoas que chegam depois de um incidente violento.
“Muitas pessoas entram na emergência planejando vingança e é muito importante que elas deixem de fazer isso”, diz Christine Goodall, cirurgiã maxilofacial que ajudou a criar o Médicos contra a Violência, uma ONG parceira da VRU. Depois de uma conversa inicial, o navegador segue ajudando a pessoa a obter tratamento para álcool ou outras drogas, a procurar oportunidades de emprego ou terapia.
Karyn McCluskey e John Carnochan toparam com a abordagem da saúde pública durante sua pesquisa sobre a prevenção da violência, mas logo descobriram uma crescente rede internacional de trabalhos altamente orientados por dados. Eles se uniram à Aliança de Prevenção da Violência da OMS, uma organização global que compartilha estudos de todo o mundo. “Algo que funciona na Jamaica pode não funcionar na Escócia, a menos que você o ajuste — mas é realmente útil ver o que os outros estão fazendo e o que funciona”, diz Goodall.
Adaptar uma ideia a uma localidade específica é fundamental — mas a OMS divide a abordagem da saúde pública em violência em quatro etapas. A primeira é descobrir o máximo de conhecimento básico sobre todos os aspectos da violência. A segunda é investigar por que a violência ocorre — examinando causas, correlações e fatores de risco. A terceira é explorar formas de prevenir a violência usando essas informações. A quarta é implementar essas estratégias. E, para ver um efeito sério, este trabalho precisa de níveis massivos de colaboração – e mais do que um ciclo eleitoral de quatro ou cinco anos.
Onde mais a abordagem da violência sob a ótica da saúde pública poderia ser testada? O médico Duncan Bew, do King’s College London Hospital, sugere que alguns locais podem se adaptar bem ao modelo de interruptores de Chicago, com pessoas trabalhando nas ruas e, em outros, o apoio mais holístico e a redução da pobreza da Escócia podem ser mais eficazes. “O que não podemos ter é que as comunidades tenham a ideia de que a violência é inevitável. Elas merecem coisa melhor ”, diz ele: “A violência exibe padrões semelhantes aos de doenças. Nós sabemos isso. Isso pode ser evitado ”.
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Se violência é epidemia, solução está na saúde? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU