06 Junho 2018
"a Europa, agente da dominação colonial global, não tem o direito de oferecer seus princípios ideológicos como uma possível arma contra o racismo. Há alguma verdade nisso: não espanta saber que os mais radicais “defensores” da Europa olham com desconfiança para o Cristianismo e preferem espiritualidades pagãs (célticas, nórdicas)", escreve Slavoj Žižek, filósofo e crítico cultural, em artigo publicado por Philosophical Salon e reproduzido por Lavra Palavra, 05-06-2018. A tradução é de Márcio Tarouco.
Todos que estão preocupados com o novo populismo anti-imigrantes deveriam fazer o esforço de assistir a Europa – The Last Battle (Tobias Brett, Suécia, 2017), um documentário de 10 episódios que apresenta in extenso a versão neonazista do último século de história europeia. De acordo com a série, essa história foi dominada por banqueiros judeus que controlam todo o sistema financeiro; desde o início, o judaísmo esteve por trás do comunismo, e os judeus ricos financiaram diretamente a Revolução de Outubro para desferir um golpe mortal à Rússia, defensora ferrenha do Cristianismo; Hitler era um alemão patriota e pacífico que, tendo sido eleito democraticamente, fez com que a Alemanha passasse de uma terra devastada a uma nação de bem-estar social com a qualidade de vida mais alta do mundo se retirando do sistema financeiro internacional controlado por judeus; embora Hitler se empenhasse desesperadamente pela paz, o judaísmo internacional declarou guerra a ele; após o fracasso das revoluções comunistas europeias na década de 1920, o centro comunista percebeu que primeiro era preciso destruir os alicerces morais do Ocidente (religião, identidade étnica, valores familiares), então fundou a Escola de Frankfurt, cujo intuito era declarar a família e a autoridade como instrumentos patológicos e enfraquecer toda identidade étnica como uma forma de opressão.
Hoje, a linha argumentativa de Europa continua, os esforços da Escola de Frankfurt estão finalmente mostrando resultados sob o disfarce de diversas formas de marxismo cultural; nossas sociedades estão cativas de uma culpa eterna por seus supostos pecados, abertas para a irrefreável invasão de imigrantes e perdidas ante o individualismo hedonista vazio e a falta de patriotismo. Essa corrupção é secretamente controlada por judeus como [George] Soros, e somente uma nova personalidade como Hitler, que reacendesse nosso orgulho patriótico, poderia nos salvar… Ao assistir esse show, não se pode evitar a impressão de que, embora os autores tenham ido muito mais longe do que o populista racista médio estaria disposto a ir, encontramos em Europa um tipo de “centro ausente” de múltiplos movimentos populistas-comunitários, o ponto-zero ao qual todos tendem e ao qual todos convergiriam.
Quando afirmei, em minha crítica a essa tendência, que a maior ameaça à Europa são seus defensores populistas/racistas, eu fui repreendido pela óbvia absurdez dessa afirmação: como aqueles que querem defender a Europa podem representar-lhe uma ameaça? A princípio, a resposta é fácil: a Europa que esses defensores tentam salvar (uma Europa neotribal de identidades étnicas fixas) é uma negação da grandeza do legado europeu. A óbvia censura antieurocêntrica à minha alegação é que a Europa, agente da dominação colonial global, não tem o direito de oferecer seus princípios ideológicos como uma possível arma contra o racismo. Há alguma verdade nisso: não espanta saber que os mais radicais “defensores” da Europa olham com desconfiança para o Cristianismo e preferem espiritualidades pagãs (célticas, nórdicas). E pode-se ver com facilidade onde o problema se encontra – Orban declarou recentemente o fim da “democracia liberal” na Hungria, dizendo que ela falhou em defender liberdades e a cultura cristã no decorrer da crise de imigrantes. Ele prometeu construir uma “democracia cristã” desafiando os comandos da União Europeia. “A era da democracia liberal chegou ao fim. É incapaz de proteger a dignidade humana, inaceitável para prover liberdade, não consegue garantir segurança física, e não consegue mais sustentar a cultura cristã”, Orban disse.
Mas não seriam essas declarações difíceis de relacionar com outras tais como a seguinte, de Gálatas 3:28: “Já não há judeu nem gentio; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus”? E como os bastiões cristãos da família lidariam com a famosa passagem de Mateus 12:46-50: “Falava ainda Jesus à multidão quando sua mãe e seus irmãos chegaram do lado de fora, querendo falar com ele. Alguém lhe disse: ‘Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo’. ‘Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?’, perguntou ele. E, estendendo a mão para os discípulos, disse: ‘Aqui estão minha mãe e meus irmãos! Pois quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe’.”?
Existe, no entanto, outro argumento mais complexo, frequentemente levantado contra imigrantes: a questão não é que, em seu modo de vida, eles são diferentes de nós, mas que eles têm problemas com a diferença em si (coexistência de modos de vida diferentes). O caso exemplar aqui é o do político holandês populista de direita Pim Fortuyn, morto no início de maio de 2002, duas semanas antes das eleições em que era esperado que ganhasse um quinto dos votos. Fortuyn era um populista de direita cujas características pessoais e até mesmo (a maioria das) suas opiniões eram quase perfeitamente “politicamente corretas”: ele era gay, tinha boas relações pessoais com muitos imigrantes, com um senso de ironia inato… Em resumo, ele era um bom liberal, tolerante com relação a tudo, exceto sua posição política básica: ele se opunha aos imigrantes fundamentalistas por causa do ódio aos homossexuais, direitos das mulheres, etc.
A resposta é que esse argumento se apoia em metarracismo, por exemplo, numa forma mais sutil de racismo por meio da qual nós asseveramos nossa superioridade sobre o Outro precisamente por afirmar que o nosso Outro, e não nós, é racista… Porém, há outro problema mais básico para lidar aqui. Asseverar abertura ao diferente e fluidez de identidades não é o bastante, e essa indeterminação é o que está empurrando as pessoas em direção aos partidários da identidade étnica populista. A questão difícil, portanto, é: que tipo de identidade é aceitável para um radical de esquerda?
A universalidade abstrata não funciona, como deixou claro, entre outros, Claude Lévi-Strauss, que, em artigos reunidos no segundo volume do seu Antropologia Estrutural, demonstrou com clareza que a afirmação firme de uma identidade étnica e mesmo de sua superioridade em relação às outras não necessariamente implica racismo. Ele dá o exemplo de muitas tribos que se chamam de “humanas” (diante de outras tribos às quais se nega essa qualidade), em cuja linguagem a palavra para “humano” é a mesma que a usada para “pertencente à nossa tribo”. Ainda que possa parecer racista, olhando mais de perto, essa posição é muito mais modesta, e deveria ser lida como uma afirmação implícita de estar dentro de um modo de vida próprio: “nós somos o que somos, e para nós isso é o que significa ser humano, nós não podemos sair do nosso mundo para julgar a nós e aos outros a partir de nenhum lugar, então nós também deixamos que os outros sejam”. Em resumo, essa declaração de autoidentidade não é mediada negativamente pelos outros como inveja.
Com o fim de mascarar suas próprias divisões, a identidade populista se baseia na referência negativa ao Outro: não há nazista sem judeu, não há europeu sem a ameaça dos imigrantes, etc. Entretanto, o politicamente correto também está fundado numa referência negativa, parasitando o Outro “incorreto” machista/racista. Essa é a razão pela qual a subjetividade politicamente correta é uma mistura de autoculpabilização eterna (procurando por resquícios de machismo ou racismo em si mesmo) e arrogância (constantemente repreendendo e julgando os outros culpados). Portanto, o paradoxo é que o problema do fundamentalismo populista não se encontra no fato de que ele é muito identitário (contra o qual devemos enfatizar a fluidez e a contingência de toda identidade), mas, ao contrário, no fato de que lhe falta uma identidade própria, de que essa identidade apenas se sustenta numa negação do seu Outro constitutivo.
Os ditos fundamentalistas, sejam cristãos ou muçulmanos, são realmente fundamentalistas, no sentido autêntico do termo? Eles realmente acreditam? O que lhes falta é uma característica que é fácil de discernir em todos os autênticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amish nos EUA: a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença ante o modo de vida dos não-crentes. Se o atual dito fundamentalismo realmente acredita ter encontrado o caminho para a Verdade, porque eles se sentiriam ameaçados por não-crentes? Por que teriam inveja deles? Quando um budista encontra um ocidental hedonista, ele raramente o condena. Ele apenas observa, de maneira benévola, que a busca do hedonista pela felicidade está fadada ao fracasso. Em oposição aos verdadeiros fundamentalistas, os pseudofundamentalistas são profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos não-crentes. Eles sentem que, lutando contra o outro pecador, lutam contra a própria tentação. Por isso os ditos fundamentalistas cristãos ou muçulmanos são uma vergonha para o verdadeiro fundamentalismo.
E o que pensar da afirmação de identidades marginais na política identitária? Atinge-se o seu cume (ou, talvez, o seu ponto mais baixo) quando esta se refere à experiência única de um grupo identitário particular como o fato supremo que não pode ser dissolvido em nenhuma universalidade: “só uma mulher/lésbica/trans/negra/chinesa sabe o que é ser uma mulher/lésbica/trans/negra/chinesa”. Embora isso seja verdade num certo sentido trivial, deve-se negar profundamente qualquer relevância política a isso e persistir desavergonhadamente firme ao velho axioma do Iluminismo: todas as culturas e identidades podem ser compreendidas, desde que se faça um esforço adequado para isso. O segredo da política identitária é que, nela, o branco/homem/hétero continua sendo um padrão universal; todo mundo entende e sabe o que significa ser isso, fazendo desse lugar o ponto cego da política identitária, a identidade que é proibida de se afirmar.
Cedo ou tarde, no entanto, temos o retorno do recalcado: a identidade branco/homem/hetéro escapa ao controle e começa a jogar o mesmo jogo: “ninguém nos entende de verdade, é preciso ser um branco/homem/hétero para entender o que é ser um homem/branco/hétero…” Essas reversões provam que não é possível se livrar da universalidade tão facilmente. O argumento velho-marxista óbvio sobre não existir universalidade neutra, sobre como toda universalidade que se apresenta como neutra ofusca e, assim, privilegia os privilégios atuais, não deve nos seduzir a abandonar a universalidade em si. Se fizermos isso, nós eliminamos o fato de que a nossa própria argumentação contra falsas universalidades fala a partir de uma posição da verdadeira universalidade (que nos permite perceber a posição dos desprivilegiados como injusta). Paradoxalmente, a afirmação da identidade branco/homem/hétero os destituiria de sua universalidade implícita e os impeliria a aceitar sua particularidade.
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Problemas com identidades. Artigo de Slavoj Žižek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU