O vento que varreu a Praça São Pedro, em Roma, na noite de 13 de março de 2013 e levou para longe a fumaça branca, anunciando o novo pontífice, Jorge Mario Bergoglio – papa Francisco, foi abrindo lentamente as portas da Igreja. Com a paciência e constância dos ventos que sopram na amplitude dos lugares abertos, o novo Papa deixou que os ares cruzassem e rompessem as portas e janelas do Vaticano e trouxessem uma lufada de frescor. Com seu jeito particular, Francisco abandonou o Palácio Apostólico, residência dos pontífices desde o século XIV, e fez morada na Casa Santa Marta, local bem mais modesto, ainda mais para os padrões papais. Deixou de lado os ornamentos vermelhos e dourados e preferiu a sobriedade das roupas de cor branca e tons de tecidos crus.
Foi, justamente, em um desses dias de vento na Praça São Pedro que Bergoglio percebeu que os ares sopravam em direção ao Mediterrâneo. Decidiu que sua primeira viagem seria a Lampedusa, a ilha que abriga a esperança para milhares de refugiados vindos da Tunísia e o ponto sensível de uma União Europeia insensível ao drama contemporâneo de quem tenta se exilar da fome, da guerra e do sofrimento. Esse era o primeiro passo do papa Francisco em direção a um pontificado que o transformaria, em pouco tempo, em uma das principais lideranças geopolíticas do planeta no século XXI.
Dias antes de Bergoglio ser escolhido o novo Papa, mais precisamente em 28 de fevereiro de 2013, Joseph Ratzinger, que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé entre 1981 e 2005 e Bispo de Roma entre 2005 e 2013, o papa Bento XVI, atualmente emérito, deixou o pontificado a bordo de um moderno helicóptero. A renúncia, até então inédita, coloca em relevo o reconhecimento radical da humanidade do próprio papa à época, que percebeu seu descompasso com o presente e com a dificuldade de anunciar o Evangelho diante da crise civilizacional instaurada pela modernidade.
No arco do tempo, a chegada de Francisco simboliza o tardio encontro de um Papa com o Concílio Vaticano II. Cinco décadas mais tarde, o pontífice assume o poder sem um discurso de coroação, simplesmente porque não há trono, não há príncipe. Ao descrever a chegada de Bergoglio, Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, ponderou que foi estabelecido uma nova ordem de poder no Vaticano. “Poder de apascentar, isto é, sobretudo de alimentar e cuidar do rebanho de Deus, até dar a sua vida por ele; e esse poder só pode ser exercido como serviço”, analisa La Valle.
Ao recuperar o Evangelho como referência de seu pontificado, o papa Francisco, durante a homilia de uma de suas primeiras missas, lembrou que o mundo precede a Igreja. Havia ali pistas de como ele trataria temas sensíveis como os da crise civilizacional que o mundo atravessa atualmente. Diante da encruzilhada em que fomos jogados pela própria modernidade e para onde parecia não haver mais saída, nem para as formas laicas de organização da vida (os dilemas políticos; econômicos e ambientais), nem para os modelos católicos pré-conciliares (as disputas entre a Igreja e a ciência; o desejo de Estados confessionais e a negação de reciprocidade com outras religiões), Bergoglio nos entrega a força viva do Evangelho e de uma Igreja em saída.
Na primeira homilia, ele ressaltou a importância de dois cuidados essenciais: o cuidado da terra e de todas as suas criaturas; e a fé no amor destemido e na ternura que o expressa. Mais tarde essas ideias estariam mais longamente formuladas na Encíclica Laudato Si’. sobre o cuidado da casa comum e na exortação apostólica Amoris Laetitia. Sobre o amor na família, respectivamente. Tais eixos orbitam na ordem de uma Igreja sonhada pelo papa João XXIII, que um mês antes do Concílio Vaticano II havia dito em uma entrevista para a uma rádio italiana do sonho de construir uma “Igreja de todos e especialmente uma Igreja dos pobres”.
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Se a modernidade jogou o homem no centro do universo e fez dele senhor das criaturas, a contemporaneidade inscreve um enorme ponto de interrogação neste paradigma. Isso porque quanto mais se supõe o controle da natureza, mais somos nós os governados por ela, considerando os eventos climáticos extremos e todo o rearranjo provocado e previsto, por exemplo, pelo aquecimento global. A encíclica Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum joga uma luz nova sobre o ideal tecnocrático de nosso tempo e coloca em causa o ideal de ser humano atual. Lançado meses antes da 21ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – COP 21, o documento se conecta à primeira homilia de Francisco e o coloca no centro de um dos mais importantes debates geopolíticos da atualidade. A Igreja finalmente dava seus primeiros passos para além da encruzilhada moderna, colocando-se como um ator que voltava a ter peso no cenário global e na opinião pública laica.
A revista IHU On-Line dedicou a edição 469, de 3-8-2015, intitulada O ECOmenismo de Laudato Si’, para debater o tema. Entre os entrevistados, o ex-agente do mercado financeiro que mais tarde tornou-se jesuíta, Gaël Giraud, debateu as implicações econômicas do documento apostólico e o débito do sistema financeiro com os pobres. “Em sua Encíclica, ele (o Papa) denuncia a ‘dívida ecológica’, ou seja, o fato de que, extraindo hoje da natureza mais do que ela é capaz de nos dar sem pôr em perigo sua própria renovação, acumulamos uma dívida muito maior do que os bilhões que a dívida da Grécia representa”, pondera Giraud.
Se a encíclica Laudato Si’ causou menos alvoroço no mundo eclesial, a exortação apostólica Amoris Laetitia. Sobre o amor na família suscitou maior discussão e críticas ora suaves, ora severas. O documento encontra guarida para quem esperava uma mudança pastoral em relação às questões ligadas à família, mas nem de longe apresenta uma mudança radical na doutrina. Vale lembrar que Amoris Laetitia é, também, resultado de um processo sinodal realizado entre 2014 e 2015.
Logo nas primeira páginas do texto, o papa Francisco deixa claro sua opção e seu apelo ao amor, um amor sem medo. “Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela”, pondera o Papa. Massimo Faggiolli, ao analisar o documento, ressalta o cuidado em sua elaboração, que, paradoxalmente, é a fonte das controvérsias e, ao mesmo tempo, a razão pela qual nenhum dos lados do debate pode alegar “vitória” ou “derrota”.
A edição 483 da revista IHU On-Line, Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje, abordou a exortação apostólica trazendo uma série de pontos de vista sobre o tema. Todd A. Salzman e Michael G. Lawler, professores da Teologia da Universidade de Creighton, nos Estados Unidos, e autores do livro A Pessoa sexual. Por uma antropologia católica renovada (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012), em artigo publicado na edição apontam que o texto de Amoris Laetitia assinala "o início de uma Igreja mais aberta, compreensiva, convidativa e misericordiosa e esperamos que, assim como está moldando um desenvolvimento orgânico da abordagem pastoral de questões morais, vá além, no longo prazo, para moldar também um desenvolvimento da doutrina da teologia moral católica relacionada a questões controvertidas da ética matrimonial e sexual”, concluem Salzman e Lawler.
Sem dúvida, um dos principais desafios do atual pontífice diz respeito aos casos de pedofilia em que pesa sobre a Igreja centenas de acusações. Em 2016, o filme vencedor do Oscar, Spotlight - Segredos Revelados (2015), que retrata casos de abusos sexuais ocorridos em Boston, nos Estados Unidos, durante a década de 1990, deu ainda mais visibilidade ao tema. No mesmo ano, na América Latina, o drama vivido por jovens chilenos foi retratado na obra El bosque de Karadima (2015). Tais produções cinematográficas, entre outras, destapam uma gigantesca ferida aberta na Igreja Católica, jogando o tema no debate da cena pública.
Sem ser tratado como tabu, atualmente a problemática tem sido percebida pela Igreja como uma tragédia. Por ocasião do prêmio da academia norte-americana de cinema de 2016, o cardeal Sean P. O’Malley divulgou uma nota afirmando o seguinte. “Ao fornecer reportagens em profundidade sobre a história da crise de abuso sexual clerical, a mídia levou a Igreja a reconhecer os crimes e pecados de seus funcionários e a começar a encarar os seus erros, o dano feito às vítimas e suas famílias e as necessidades dos sobreviventes”, ponderou.
O mundo da pedofilia dentro do catolicismo deixou o subterrâneo da história para se tornar um dos principais desafios contemporâneos a Francisco, colocando em xeque suas intenções pessoais e a capacidade da Igreja de lidar com tema tão delicado. Uma das principais questões ainda em aberto, apesar das inúmeras investigações, é saber como a questão dos abusos sexuais tornou-se um fenômeno global dentro da Igreja, pensando-a como um acontecimento histórico. O vento que arrancou a sujeira debaixo do tapete romano espalhou as peças do quebra-cabeças, que agora tenta ser remontado.
Isso mostra não só a nossa fragilidade, mas também – digamos claramente – nosso nível de hipocrisia – Papa Francisco, em entrevista à Civittà Cattolica
“Ainda não temos uma visão clara de exatamente quando e onde os casos de abuso sexual começaram na Igreja global. Já passamos muito do momento de acreditar que isso aconteceu apenas nos Estados Unidos durante o período que se seguiu ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Ainda não temos uma cronologia dos abusos sexuais do clero em todo o mundo. Mas isso não deve impedir que comecemos imediatamente a refletir sobre a eclesiologia dos abusos sexuais clericais e como ele está ligado à necessidade de reforma institucional e cultural na Igreja”, frisa Massimo Faggiolli.
Ainda que certos setores esperem posições mais claras e firmes do pontífice em relação aos casos de pedofilia dentro da Igreja, o que parece estar em curso é uma profunda transformação nas relações entre o centro a periferia do catolicismo. Esses movimentos são típicos das crises que assolam a história da igreja fundada por Pedro. Essa é a face eclesial de um dos limites da modernidade, que é a crença na hierarquia dos representantes. Se a forma hegemônica de seleção do bispado tinha mais a ver à adesão às políticas vaticanistas, o pontificado de Francisco reposiciona o eixo histórico, mais pelo exemplo que por formalizações, exigindo dos bispos mais capacidade de servirem à missão pastoral que às hierarquias de Roma. Se por um lado isso presume um desafio sem precedentes, de outro relega à Igreja a missão inaciana de encarar os dilemas com audácia, imaginação e coragem.
Transformar os abusos sexuais em uma marca, ainda que indelével, do passado exige o esforço de percorrer muitos caminhos. O papa Francisco, durante sua passagem pelo Peru, em janeiro de 2018, disse aos jesuítas que “o abuso nessas congregações é sempre o fruto de uma mentalidade ligada ao poder que deve ser sanada em suas raízes malignas. E acrescento que são três níveis de abuso que vão juntos: abuso de autoridade – o que significa misturar os foros interno e externo –, abuso sexual e enredos econômicos”. No fundo, a crítica do Papa remete à necessidade de se reconstruir a Igreja (e esse é maior desafio de todos) a partir daquilo que poderia ser considerado seu mantra desde o primeiro gesto papal, ou seja, a obsessão por uma “Igreja pobre” e de uma “Igreja para os pobres”. Vem dessa horizontalização das relações, de uma dessacralização do pontífice e do pontificado, uma resposta, que é individual e coletiva, à crise dos abusos sexuais.
Papa Francisco é o pontífice mais progressista desde o fim do Concílio Vaticano II, mas está longe de ser feminista. A conclusão que fecha a frase anterior é de Mary Hunt, teóloga feminista, cofundadora e codiretora da Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual – WATER. Outra dificuldade importante diz respeito aos limites de se pensar a posição do Vaticano como um claro ou escuro totalmente definido, isso porque historicamente há posições que reforçam uma postura misógina da Igreja, mas há também, ainda que em gestos muito sutis, uma maior abertura ao feminismo cristão. “Não há mudanças estruturais na Igreja institucional para sinalizar um reconhecimento da igualdade das mulheres, nem há movimentos para alterar a linguagem e o imaginário sobre o divino para refletir o todo da criação. Pelo contrário, há uma aceitação implícita do feminismo, mas segundo a definição singular própria do Vaticano”, descreve Hunt.
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O apelo da opinião pública em relação aos casos de abusos sexuais na Igreja acaba sendo mais estridente que o da igualdade de gênero porque é capaz de compor um campo semântico maior e com apoio mais amplos, inclusive de certos setores de viés mais conservador. Contudo, quando se trata das minorias políticas de gênero, a luta tende a ficar mais restrita à militância feminina e LGBTIs, dada uma certa antipatia a priori em sociedades marcadamente machistas. A percepção construída em torno do papa Francisco nesse contexto oscila entre, na melhor das hipóteses, uma posição confusa e, na pior, uma posição horrível. “Francisco designou várias mulheres para coordenar agências no Vaticano. Elas são, porém, previsivelmente conservadoras e estão a lidar com questões de família. Então é difícil dizer que ele não tem promovido a mulher, mas é igualmente difícil dizer que está promovendo mulheres que sejam outra coisa que não clones ideológicos dos homens que as nomearam”, complexifica Hunt.
Se para muitos Francisco representa uma virada profética, para Mary Hunt isso não ocorre em relação às mulheres. Uma instituição de dois mil anos move-se lentamente e custa a desprender-se dos fardos do tempo. A misoginia encrustada na tradição católica configura-se em um dos tremendos desafios a este e aos futuros pontificados. Apesar dos avanços e limites de Francisco nesta agenda, o temor de um retrocesso permanece vivo. “O meu medo é que a reação negativa a Francisco se expresse na eleição de um Papa mais conservador da próxima vez. É provável que quaisquer ganhos que Francisco tenha feito na questão das finanças, nas tomadas de decisão locais a respeito das anulações matrimoniais, por exemplo, sejam rapidamente revertidas”, pontua Hunt.
Mas voltemos no tempo. Lembremos da noite romana de 13 de março de 2013, quando Jean-Louis Pierre Tauran foi ao balcão da Basílica de São Pedro e proferiu a célebre expressão: “Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam!”. Em seguida completou: “Eminentissimum ac reverendissimum Dominum, Dominum Georgium Marium Sanctae Romanae Ecclesiae…”. Dito em latim, o nome continuou uma incógnita para grande parte da audiência, fosse na Praça São Pedro, fosse nas centenas de canais de televisão que transmitiram o anúncio. Quando a gritaria acalmou e Bergoglio finalmente apareceu ao público, a surpresa transformou-se em choque. “Foram três choques ao mesmo tempo, porque eram três estreias de uma vez só. A lista de estreias veio em cascata à minha mente, e era difícil deglutir todas elas: O primeiro papa jesuíta. O primeiro papa do hemisfério sul. O primeiro papa a ter o distinto e santo nome de Francisco”, assinala James Martin, editor- chefe da revista America, no texto de apresentação da edição comemorativa aos cinco anos do pontificado, relembrando a noite do anúncio em que estava na ABC News,nos Estados Unidos, para falar sobre o novo pontífice.
Fonte: Osservatore Romano
Quando as cortinas da basílica se abriram para o novo Papa, o pano do tempo revelou seu capricho. Quando os dilemas da modernidade pareciam ter jogado a Igreja Católica na encruzilhada derradeira, onde parecia não haver mais possibilidade de encaixe entre os evidentes sinais de esgotamento de um tempo (a modernidade) e uma instituição incapaz de dar respostas ao seus enigmas, surge Francisco, o Papa. Quando pensávamos estar diante do fim o mundo é que surge o Papa do fim do mundo, como ele próprio se descreveu.
Diante dos prognósticos que anunciavam o inevitável fim da civilização humana, como um fim que todos sabiam, tal qual o assassinato de Santiago Nasar no romance de Gabriel Garcia Márquez, o papa Francisco aparece não como figura salvadora, mas como alguém obcecado por uma Igreja em movimento, uma Igreja em saída, que encontrou nos pobres, nos refugiados, nos desempregados, nos marginalizados, nas crianças e nas mulheres a cara do Cristo e do amor misericordioso. Sem se colocar como um messias enviado por providência divina, senão por uma feliz causalidade do mais surpreendente conclave do último século, papa Francisco é um zeloso defensor da casa comum e do amor destemido, que convoca a todos à missão, antes humana que pastoral, de defender a vida dos mais frágeis e todas as formas de vida. Como disse Raniero La Valle em tom de provocação e convocação, “se o papel histórico é de parar o fim, então ele deve ser assumido como uma tarefa. Neste caso, nós, o que fazemos?”.
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Entre os dias 21 e 24 de maio o Instituto Humanitas Unisinos - IHU realiza o XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo reunindo conferencistas nacionais e internacionais. A programação completa e as inscrições podem ser acessadas na página do evento.