Por: Cesar Sanson | 20 Julho 2016
David Graeber é um antropólogo e anarquista renomado. Foi um dos criadores do Movimento Occupy em 2011. É o autor do livro Dívida: os primeiros 5000 anos, muito aclamado pela crítica. Recentemente lançou o livro The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the “Secret Joys of Bureaucracy” [“A utopia das regras: Sobre tecnologia, estupidez e os brinquedos secretos da burocracia].
A entrevista é de Arthur DeGrave, publicada por OutrasPalavras, 19-07-2016. Tradução de Cauê Ameni.
Eis a entrevista.
Em 2011, você esteve entre os impulsionadores do Movimento Occupy. Desde então, muitos movimentos sociais similares apareceram, mas, aparentemente, nenhum teve folego suficiente para continuar vivo e atingir seu objetivo. Por que fracassaram?
Não acho que estes movimentos sociais tenham falhado. Tenho uma teoria sobre isso: “3,5 anos de atraso histórico”. Após o choque da crise financeira, em 2008, as forças de segurança começaram, no mundo inteiro, se armar para os inevitáveis protestos.
No entanto, depois de dois ou três anos, parecia que nada iria acontecer. De repente, em 2011, começou – embora nenhum grande fato novo tenha se dado. Como em 1848 ou 1968, estes movimentos não buscam tomar o poder: almejam mudar a forma como pensamos política. E neste quesito, creio que tivemos uma mudança profunda.
Muitos anseiam que o Occupy tome o caminho da política formal. Verdade, não aconteceu, mas veja onde estamos 3.5 anos depois: na maioria dos países onde ressurgiram movimentos sociais e populares, partidos de esquerda estão mudando para abraçar as sensibilidade desses movimentos (Grécia, Espanha, Estados Unidos e etc.). Talvez demore mais 3,5 anos para que eles tenham um impacto real sobre os projetos políticos, mas parece-me que é o caminho natural das coisas.
Vejam bem, vivemos numa sociedade de gratificação instantânea: esperamos que ao clicar em algo, alguma coisa vai acontecer. Essa não é a forma como os movimentos sociais trabalham. A mudança não aconteceu do dia para noite. Levou uma geração para os abolicionistas ou os movimentos feministas alcançarem seus objetivos, e ambos enfrentaram instituições que existiam há séculos!
Mas os movimentos de base poderiam se tornar organizações estruturais da política? O exemplo recente na Grécia não parece muito encorajador.
Em primeiro lugar, não vejo como o Syriza poderia ter ganho: eles estavam numa posição estratégica muito complicada. Se alguma coalizão política do mesmo tipo se formasse na Inglaterra, num instante, a história poderia ser completamente diferente. Neste exato momento, o mais importante para os movimentos horizontais e anti-autoritários é aprender como fazer alianças com aqueles dispostos a trabalhar com o atual sistema político sem comprometer sua própria integridade. Isso é algo que subestimamos com o Ocuppy. Acreditamos que nossos aliados do Partido Democratas e na esquerda institucional tivessem uma compreensão mais clara sobre seu interesse estratégico.
Veja, precisamos ter nossos próprios radicais, para aparecermos como uma alternativa razoável. Isso é algo que a direita e o Partido Republicano compreendem bem. Se os democratas estivessem unidos na defesa da 1ª emenda [que assegura liberdade de expressão, manifestação e crença] assim como a direita está em relação a 2ª emenda [protege o direito do povo de portar armas], o Ocuppy estaria provavelmente, vivo, e não estaríamos discutindo sobre equilíbrios fiscais, mas sobre os problemas reais que afligem as pessoas.
Ainda assim, acredito que é necessária uma sinergia positiva entre a esquerda radical e a institucional. Não precisamos, necessariamente, gostar um do outro, mas devemos encontrar um caminho para nos reforçar reciprocamente. A esquerda radical deveria estar mais preocupada em ganhar, ao invés de brincar de superioridade moral.
Qual sua análise em releção aos últimos desenvolvimentos da crise na Grécia? A ideologia da dívida parece estar em alta na Europa.
É sempre possível pegar o fenômeno mais repressivo e transformá-lo em sinais de esperança. Neste caso em particular, a crise europeia revela que a justificativa tradicional para a existência do capitalismo não funciona mais. Claro que o capitalismo sempre gerou desigualdades de forma maciça, mas havia três argumentos políticos cruciais que contrabalanceiam esse fato. Em primeiro lugar o suposto efeito econômico trickle-down [“escorrer para baixo”], a ideia de que se os ricos se tornarem mais ricos, a camada mais pobre da sociedade melhorá naturalmente. O que não acontece mais. Em segundo lugar: o capitalismo traz estabilidade. Novamente, não é mais o caso. Em terceiro lugar: o capitalismo aceleraria o caminho para a inovação tecnológica. Também não é mais o caso.
Então, o que sobrou para sustentar o capitalismo, agora que todos os argumentos práticos se foram? Eles não têm mais escolha exceto recorrer a argumentos puramente morais, à ideologia da dívida (“as pessoas que não pagam sua dívida são más”), e à ideia de que se você não trabalhar ainda mais intensamente, mesmo naquilo de que não gosta, você é uma pessoa má.
Em seu último livro, você sustenta que o capitalismo não é capaz de gerar novos desenvolvimentos tecnológicos. No entanto, o que o dogma contemporâneo tenta fazer crer é que vivemos numa época de grande inovação. Quem está certo?
Me parece óbvio: entre 1750 e 1950, tivemos grandes descobertas cientificas, novas formas de energia foram descobertas, num caminho rápido para inovação. Não me parece que aconteça novamente. O capitalismo tornou-se uma espécie de força reacionária, freando o desenvolvimento tecnológico. O que aconteceu com os carros voadores? A viagem ao espaço? Hoje, as universidades, abarrotadas burocraticamente, são incapazes de reunir gente comprometida com a verdadeira inovação. Os artigos do Einstein não passariam, provavelmente, nas bancadas acadêmicas de hoje!
Pergunte às pessoas e você verá que, no final das contas, a maioria não compra a retórica dessa suposta inovação contemporânea. Não se trata mais de saber como a ideologia atua — porque o importante já não é convencer as pessoas de que algo seja verdade, mas de que todo mundo acredita que é verdade. Num certo sentido, o cinismo substitui a ideologia.
Pense em outro mito: a meritocracia. Todos nós sabemos que as pessoas não sobem na escala hierárquica graças à meritocracia — mas devido à relação com o chefe, à influência de um primo etc. Há um senso de cumplicidade: se você quer ser promovido, não conte com seus méritos, mas com seu poder teatral de encenar esses méritos. Seguir com as linhas oficiais. Isso é um subproduto da mentalidade burocrática que descrevo no livro.
Você acha que é possível conciliar inovação tecnológica e progresso social?
Já está acontecendo: Anonymous, Wikileaks ou, num certo sentido, a impressão em três dimensões estão começando algo. O desenvolvimento tecnológico sempre segue as tendências sociais. Alguém pensa que as pessoas em Florença, durante o Renascimento, diziam “vamos criar o capitalismo: irá envolver fábricas, trocas de mercadoria, e etc”? Claro que não. Não é algo planejado. O mesmo é verdade para nós: uma vez que exergarmos o que queremos alcançar, como sociedade, a inovação tecnológica virá em seguida.
Imagine se todas as pessoas sentadas na frente de suas mesas, produzindo derivativos securitizados ou negociando algorítimos, estivessem tentando criar um sistema de alocação de recursos que fizesse o mesmo planejamento que os soviéticos tentaram, mas não tiveram capacidade. Eles poderiam criar, provavelmente, algo interessante.
Para você, já não está claro se o atual sistema economico pode ser chamado de capitalismo. Por que?
A natureza da acumulação capitalista mudou dramaticamente. Quando eu era estudante, meu professor de história econômica dizia que quando a extração da mais-valia é feita diretamente através da política, não é sinal de capitalismo, mas de feudalismo. É o que vivemos hoje: uma fusão de burocracia pública e privada que propõem criar mais formas de dívida, que será objeto de variadas formas de especulação. A única forma de criar mais dívida é por meio da política: não existe isso que alguns chamam de “desregulação financeira” — é apenas uma mudança no modo de regulação. Na teoria marxista clássica, o papel do Estado é garantir as relações de propriedade que permitem a extração de mais-valia ocorrer por meio do trabalho assalariado, mas agora, o aparato de Estado desempenha um papel muito mais ativo no processo.
Vivemos na era da burocracia predatória. Que porcentagem da receita familiar é extraída diretamente pelo setor financeiro?
Estranhamente, estas são as estatísticas econômicas mais dificeis de conseguir, mas quando os economistas fazem as estimativas, encontram algo em torno de 20% a 40%. A maior parte do lucro já não vem do setor produtivo. No entanto, quando pensamos na história do capitalismo, pensamos nas indústrias, no trabalho pesado. Isso, claramente, não é o que temos hoje. Não há mais razão para acreditar que o capitalismo estará vivo para sempre. Por séculos, o Império Romano foi capaz de absorver as tribos bárbaras, de atraí-los para o sistema romano, dando-lhes títulos de chefe e comandantes. Mas um dia, eles se esqueceram de promover Alarico, que ficou muito irritado. Nós todos sabemos o que aconteceu em seguida. O sistema é permanente até que não é; toda contradição é absorvida até um ponto em que não é mais possível fazê-lo.
Qual é a sua opinião sobre a ideia de renda básica da cidadania, paga de forma incondicional a todos os seres humanos?
Eu sou muito entusiasta dessa ideia. É uma medida perfeitamente de esquerda e anti-burocrática. Hoje, ao contrádio, cada vez mais, as autoridades fazem os pobres sentirem-se piores, com aumento crescente de monitoramento.
Na Inglaterra, é fascinante analisar as estratégias dos diferentes partidos políticos. Os britânicos conseguiram abolir o aparato industrial e agora estão tentando matar o sistema universitário. O que nos sobrará para exportar? No momento, tudo é baseado no mercado financeiro e imobiliário. Por que? Porque todos os ricos do mundo querem ter uma casa em Londres? Há tantas belezas em outras cidades da Europa. Qual é o apelo? Eu percebi duas coisas. Primeiro, você pode ter e acumular tudo que desejar na Inglaterra, graças a uma classe trabalhadora dócil e subserviente. Tenho um amigo cujo trabalho é entregar lagostas, em qualquer momento da noite. Segundo, e mais importante: no Bahrein, Rússia ou Hong Kong, se algo der errado pode haver um levante social. Não na Inglaterra, é perceptível: a derrota histórica da classe trabalhadora inglesa tornou-se o maior produto de exportação da Grã Bretanha.
E realmente, esta é a estratégia do Partido Conservador: vender o sistema de classe para estrangeiros ricos. Contra isso, qual foi a estratégia do Novo Trabalhismo? Focar na exportação da cultura industrial. Mas nisso há um problema: a criatividade não vem só da classe média, mas da classe trabalhadora também. O Partido Trabalhista destruiu o que estava tentando criar ao impor limites ao bem-estar social. No século XX, a Inglaterra criava, a cada década, movimentos musicais incríveis, que repercutiam no mundo todo. Por que não acontece mais isso? Essas bandas viviam no Estado de bem estar social! Tome um grupo de jovens da classe trabalhadora, dê a eles dinheiro suficiente para curtir e brincar juntos, e você terá os Beatles. Onde está o próximo John Lennon? Provavelmente, embalando caixas num supermercado qualquer.
Foto: commons.wikimedia.org
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A fase do capitalismo impotente. Entrevista com David Graeber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU