Chineses tentam construir alternativa à geopolítica internacional enquanto Trump privatiza o Estado americano. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo

Alinhamento de países à China é provocado pelo “desespero americano de recuperar a sua hegemonia, com o ‘América grande outra vez’”, diz o economista

Foto: Territory of American Canada/ Wikimédia Commons - CC

Por: Patricia Fachin | 10 Setembro 2025

As disputas econômicas entre os dois gigantes mundiais, China e Estados Unidos, sugerem que transformações estão em curso nos dois países. A situação, segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, pode ser resumida em dois movimentos. De um lado, Xi Jinping tenta “construir outro ambiente para a geopolítica internacional”, apostando em um “multilateralismo como uma forma de expansão da economia chinesa na direção de outros países, respeitando a soberania”. De outro lado, Trump “está privatizando o Estado americano” enquanto busca recuperar a hegemonia perdida e reindustrializar a sua nação. O país, afirma Belluzzo, caminha para o “ápice de uma economia capitalista de mercado, que consiste em entregar totalmente ao setor privado as decisões políticas”.

Esses processos indicam que está em curso um “movimento de transformação das relações geoeconômicas de afastamento do dólar”, diz o economista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp. O recente encontro entre Xi Jinping, Putin, Kim Jong-un e Narendra Modi na Organização para a Cooperação de Xangai e, posteriormente, na Praça da Paz Celestial, em Pequim, é um sinal de que “está acontecendo um processo de substituição do dólar por outro sistema monetário”, sublinha.

Na avaliação do entrevistado, ainda que o desfile militar chinês na semana passada tenha evidenciado o poder bélico do gigante asiático, o projeto expansionista de Xi Jinping é “pacífico” e precisa ser compreendido à luz dos Analectos de Confúcio. “É muito clara essa relação entre a exibição de força que a China tem, a partir de um aparato militar impressionante, e o discurso de Xi Jinping acentuando pontos como o multilateralismo, o respeito à soberania, entre outros. Precisamos entender isso nos seus movimentos contraditórios porque, ao mesmo tempo que Xi Jinping fala isso, ele desenvolve um poder militar chinês agudo. Eu não diria que ele não tem razão por que o desempenho americano depois da doutrina Monroe (…) demonstra que os Estados Unidos nunca abandonaram o propósito de dominação. Isso está no DNA deles”, conclui.

Belluzzo em conferência no IHU | Foto: Ricardo Machado

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social (ILPES/CEPAL) e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores das Faculdades de Campinas – Facamp, onde leciona. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (Facamp/Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Facamp, 2009), Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo (Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outros livros.

Confira a entrevista.

IHU – Qual o significado simbólico dos encontros entre Xi Jinping, Putin, Kim Jong-un e Modi na semana passada? Trump acusou eles de conspirarem contra os Estados Unidos e disse que “perdeu a Índia e a Rússia para a ‘sombria’ China”. A presença de Putin, Kim Jong-un e Modi na China sugere uma aliança entre os países e uma nova reorganização geopolítica?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma questão estrutural. O que está acontecendo é um processo, que vai levar algum tempo, de substituição do dólar por outro sistema monetário. Eu diria que assim como depois da Primeira Guerra Mundial, devido à fragilidade da Inglaterra e à dívida com os Estados Unidos, o dólar passou a ser a moeda reserva junto com a libra, hoje assistimos a uma situação semelhante, porque possibilidade de substituição da moeda corrente está ligada à estrutura do comércio exterior e das relações financeiras. O que Trump está fazendo é colocar o dólar em risco. Aliás, é visível que ele está empurrando todos os países para se juntarem ao Brics.

A reunião mais importante foi a de Xangai [abertura da cúpula da Organização para Cooperação de Xangai], onde estiveram Modi, Putin e todos os chefes de Estado que se alinharam e estão se alinhando à China. A China age de uma maneira muito prudente e inteligente; ela não entra em confronto aberto com Trump, mas, ao mesmo tempo, vai se afastando dos Estados Unidos. É preciso ler Confúcio para entender como é a cultura chinesa. Esta é a questão central: estamos observando um movimento de transformação das relações geoeconômicas que definem um processo muito claro de afastamento do dólar, inclusive por conta da tentativa americana de recuperar a hegemonia perdida.

São circunstâncias e processos que precisamos fazer um esforço para entender. Faço aqui uma digressão histórica para entendermos como a China surgiu. Ela se separou da União Soviética e foi acolhida por Nixon e Kissinger. Aí começaram as reformas chinesas, as quais tentaram se desvencilhar da forma anterior de tratamento da economia. A China passou a integrar os mercados no seu projeto socialista – hoje, o maior índice de empreendedorismo no mundo é chinês por causa da conexão entre China e outros países. Nos anos 1980, o gigante asiático começa sua caminhada e passa a receber capital estrangeiro e a incorporá-lo. Basta ver quantas empresas americanas estão lá. Isso surge porque, numa tentativa semelhante à de Trump, Paul Volcker, do Fed, por conta do declínio do dólar ao longo dos anos 1970, depois do choque do petróleo, disse que ninguém contestaria a supremacia do dólar e, portanto, diante da valorização da moeda americana, as empresas começaram a se mover para a China, onde as relações câmbio/salário eram muito mais favoráveis. Naquele contexto houve um movimento de migração de empresas para a China e os chineses foram se apropriando das tecnologias porque todas as empresas entravam lá sob a condição de joint ventures com as empresas chinesas. Esse é o pontapé inicial da expansão da China e sua transformação.

O pessoal diz que a China é a segunda potência mundial. Eu tenho dúvidas porque, pela paridade do poder de compra, ela já é maior. Isso tudo afetou os Estados Unidos porque são decisões históricas que se tomam em determinado momento histórico, mas que se voltam contra o país posteriormente. Esse é um exemplo da decisão do Volcker, mas agora vemos um exemplo mais agravado no caso de Trump. Ele está empurrando todos os outros países que hostilizou com tarifas para o âmbito chinês.

IHU – Depois do desfile chinês, Trump disse que Xi Jinping deveria agradecer aos Estados Unidos porque, se a China é o que é hoje, ela é graças aos americanos.

Luiz Gonzaga Belluzzo – Ele tem uma maneira peculiar para explicar esse processo que narrei. Ele é muito tosco e afirma isso sem ter noção do que aconteceu. Por isso diz que a China deve agradecer aos Estados Unidos. Mas é verdade. Em boa medida isso é fruto da migração das empresas americanas para a China. A Tesla e a Volkswagen estão lá, inclusive as empresas europeias.

IHU – Que mensagem o presidente Xi Jinping transmitiu ao mundo com o desfile militar chinês em memória ao 80° aniversário da rendição do Japão e o fim da Segunda Guerra Mundial? O que a exibição do armamento chinês sugere: poder e influência chineses, poderio bélico e tecnológico, manifestação de força, um contraponto ao Ocidente, ou “desenvolvimento pacífico”, como disse Xi Jinping?

Luiz Gonzaga Belluzzo – É pacífico realmente, e a sustentação desse pacifismo está no poderio militar chinês. Os chineses anunciaram mísseis que não podem ser detectados e atacados por defesas aéreas. É muito clara a relação entre a exibição de força que a China tem, a partir de um aparato militar impressionante, e o discurso de Xi Jinping, acentuando pontos como o multilateralismo, o respeito à soberania, entre outros. Precisamos entender isso nos seus movimentos contraditórios porque, ao mesmo tempo que Xi Jinping fala isso, ele desenvolve um poder militar chinês agudo. Eu não diria que ele não tem razão por que o desempenho americano depois da doutrina Monroe, e mais agudamente no século XX – basta lembrar da Operação Condor, que promoveu as ditaduras no Brasil e no Chile –, demonstra que os Estados Unidos nunca abandonaram o propósito de dominação. Isso está no DNA deles. Não é uma questão de bondade ou maldade; é um problema sistêmico. Eles acabaram se transformando na maior economia do mundo e ultrapassaram a Inglaterra no século XIX e a Alemanha e foi feita toda a caminhada para a Primeira Guerra, que foi provocada pela inconformidade inglesa com o surgimento dessas duas economias [Estados Unidos e Alemanha]. Se formos olhar o movimento em direção à Primeira Guerra, veremos que a Inglaterra está presente em todos os momentos de atração para si mesma da solidariedade de outros países. Não podemos descartar a possibilidade de que isso ocorra outra vez.

IHU – Xi Jinping falou em “unir forças com o resto do mundo para construir uma comunidade com futuro compartilhado”. A China caminha nessa direção ou parece dar passos para se consolidar como um novo imperialismo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim, caminha, mas há o risco, sim. Para entender a cultura chinesa, seria preciso ler os Analectos de Confúcio.

IHU – Por que em Confúcio encontramos a base para entender a China e o pensamento chinês? Pode dar alguns exemplos?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Porque é tudo relacionado com as relações humanas e a necessidade de respeitar o próximo, o outro. Citarei alguns itens. “O mestre disse: o céu é o autor da virtude que há em mim”. Em seguida, ele diz:

“O mestre ensina quatro matérias: cultura, conduta moral, fazer o melhor possível e ser coerente com aquilo que se diz”.

Depois: “Não tenho qualquer esperança de encontrar um sábio; ficaria contente se encontrasse um cavalheiro”.

“O mestre diz: não tenho qualquer esperança de encontrar um homem bom; ficaria contente se encontrasse alguém constante. É difícil considerar constante um homem que diz ter quando lhe falta e diz estar cheio quando está vazio e estar confortável quando está em circunstâncias difíceis”.

“Existem presumivelmente homens que inovam sem possuir conhecimento. Mas essa é uma falha que eu não tenho. Faço amplo uso dos meus ouvidos e sigo o que é bom daquilo que ouvi. Faço amplo uso dos meus olhos e retenho na minha mente o que vi. Isso constitui o melhor substituto para o conhecimento inato”.

Ou seja, ele está falando do processo de aprendizado. Isso tudo está ancorado na cultura chinesa, visivelmente. Nas manifestações bélicas havia uma multidão de jovens assistindo à cerimônia de celebração da vitória na Segunda Guerra. Eles estavam ouvindo e repetindo o que Xi Jinping dizia. Então, é preciso entender que a China – e o próprio Xi Jinping acabou de dizer – é um socialismo à moda chinesa. O que é o socialismo à moda chinesa? É uma coisa que corresponde ao que Hegel e Marx chamavam de aufhebung, ou seja, superação. Eles entenderam a transformação da economia chinesa como uma superação daquela forma que eles haviam adotado, da economia de comando.

O Partido Comunista Chinês tem uma estrutura dentro dele que vem de baixo para cima. Por exemplo, Xi Jinping veio de baixo e ascendeu. Os chineses realizam congressos anuais em que as lideranças regionais vão ascendendo a uma posição importante entre as lideranças. Esse é um exemplo de como eles veem a política. Ou seja, a política é muito participativa. Para termos uma ideia: quando a China se afastou dos Estados Unidos, foi promovido um debate enorme sobre como transformar a economia chinesa. Eles escreveram livros sobre isso, traduzidos para o inglês. Essa forma de se desvencilhar do bloqueio econômico da economia de comando, daquela ineficiência, foi caminhando no sentido de fazer as reformas econômicas que culminaram com Deng Xiaoping, o grande patrono da transformação chinesa.

IHU – Nessa proposta de “futuro compartilhado” e no processo de substituição do dólar, como a Europa se situa em relação à China?

Luiz Gonzaga Belluzzo – As relações da China com a Europa são um tanto complicadas porque Ursula von der Leyen, presidente do Parlamento Europeu, foi aos Estados Unidos e negociou uma coisa submissa aos americanos, uma coisa que revela a fragilidade da Europa. Mas, ao mesmo tempo, anteriormente ela deu uma declaração dizendo que não admitiria mais o avanço das exportações chinesas de automóveis mais baratos porque isso prejudicava a economia europeia, sobretudo as empresas automobilísticas. Ela disse que havia muitos subsídios para os chineses, mas a questão mais importante a se registrar é que as fábricas chinesas são imensas, escuras, com uma multidão de trabalhadores porque isso promove ganhos de escala. Todos os economistas ocidentais falam disso, mas essa questão não se realiza. Quer dizer, a China produz muito para poder ter um preço acessível.

IHU – Há aí um risco de dependência dos produtos chineses? No caso do Brasil, quais os efeitos do investimento chinês em montadoras, plataformas de delivery, HUB de energia renovável, parques industriais de ecossistema verde?

Luiz Gonzaga Belluzzo – A meu ver, Xi Jinping entende o multilateralismo como uma forma de expansão da economia chinesa na direção de outros países, respeitando a soberania. A China, desde o Império do Meio, nunca teve uma ação extraterritorial. Os chineses estão tentando construir outro ambiente para a geopolítica internacional. É uma caminhada. Vamos observar porque no mundo dos homens sempre tem que se desconfiar dos propósitos, que podem se transformar em malefícios. Mas, no caso da China, acho que essa chance é um tanto quanto remota.

IHU – O Brasil tem que seguir nesse caminho de aproximação com a China?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim. Não tem jeito. O que mostra a operação Xangai é que os países estão se alinhando em torno da China, sobretudo na Eurásia. A Índia mantinha uma posição hostil em relação à China, mas Modi foi à reunião. Isso é provocado pelo desespero americano de recuperar a sua hegemonia, com o “América grande outra vez”. Eu, certamente, não vou assistir a esse desfecho porque ele será muito longo, mas diria que os Estados Unidos estão numa posição difícil.

De maneira geral, Trump lançou tarifas sobre todo mundo. Ele acha que essa é uma forma de promover a reindustrialização americana. Nos anos 1980 e 1990, as empresas americanas foram produzir na China, que era mais barato, para exportar aos Estados Unidos. O que precisamos considerar é o fato de que o Brasil não tem muita alternativa. Ele tem que buscar relações como está ocorrendo agora, ou seja, redefinir suas relações comerciais de modo a se afastar um pouco da dependência das exportações dos Estados Unidos. Aliás, o nosso grande cliente comercial é a China, por causa das commodities. O Brasil tem essa vantagem territorial e climática que favorece a agricultura. O avanço e a automação na agricultura é muito importante e dá competitividade para os produtos brasileiros, vis-à-vis, por exemplo, os Estados Unidos. Os chineses já estão encrencando com as exportações de soja americanas e estão propondo que sejam substituídas pelas exportações brasileiras.

IHU – O senhor menciona a tentativa dos Estados Unidos de se reindustrializar. De outro lado, que está sendo gestado no país com o governo Trump e os CEOs das big techs? As análises que apontam para o slogan “Menos Estado, mais Big Tech” e a formação de um tecnofeudalismo dão conta de compreender o que se passa no interior dos EUA e as transformações em curso?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Na semana passada, Trump ofereceu um jantar para todos os figurões das big techs. Vou fazer uma conjectura um tanto quanto estranha: ele está privatizando o Estado americano. Está entregando a essas empresas o poder de definir as políticas. Aliás, ele vem fazendo isso sistematicamente. Chegará ao ápice de uma economia capitalista de mercado, que consiste em entregar totalmente ao setor privado as decisões políticas. As decisões não deixam de ser políticas, mas são privadas. É isso que está em curso.

Leia mais