Fortalecer o SUS e transformar a saúde pública em uma política de Estado é alternativa para controlarmos melhor as futuras pandemias. Entrevista especial com Celso Granato

Sobre uma coisa não há dúvida, haverá novas pandemias, mas não sabemos quando e é bom que nesses momentos os erros de agora não sejam repetidos

Enfermeira Thaisa Sousa sendo vacinada (Foto: Thiago Gaspar | Prefeitura de Fortaleza)

Por: Ricardo Machado | 03 Mai 2021

 

O Brasil no final da última semana bateu o macabro recorde de 400 mil mortes oficiais por Covid-19. Isso ocorreu a despeito da infraestrutura de vacinação de que o país dispõe, mas cujas doses de imunizantes estão aquém da necessidade atual. “De uma forma geral, a condução da pandemia foi ruim, especialmente no plano federal, com uma negação da pandemia, uma negação da (análise) clínica, uma negação das medidas de prevenção – como, por exemplo, o uso de máscaras e distanciamento social – e, o mais grave, o atraso que isso gerou na compra das vacinas”, pondera o pesquisador e médico infectologista Celso Granato, em entrevista concedida por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Não está descartado, inclusive, o risco de o coronavírus se tornar uma doença endêmica entre a população mais empobrecida caso a vacinação se estenda demais. “Sim, [o risco] existe. Isso vai depender muito da nossa capacidade de vacinar e até da nossa capacidade de isolamento social, porque isso é outra coisa que temos reparado. A vacina é certamente uma estratégia muito importante, mas também é importante manter o isolamento social até que se atinja a imunidade da população como um todo”, observa o entrevistado.

 

Uma estratégia para enfrentar todos esses desafios passa por criarmos “mecanismos de Estado e não mecanismos de governo, porque o governo, por uma série de razões, pode ter interesses outros que talvez não tenham as melhores medidas. Mas, agora, se houver uma política de Estado, não importa se for PT, PSL, PSDB. Nós não podemos, como povo, depender disso”, sustenta.

 

Celso Granato (Foto enviada pela assessoria)

Celso Granato é infectologista e diretor clínico do Grupo Fleury, graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP. Tem doutorado na disciplina Infectologia pela Escola Paulista de Medicina - Unifesp, o título de professor livre docente na disciplina de Infectologia, pela mesma instituição. Também é especialista em Infectologia pela Sociedade Brasileira de Infectologia e em Patologia Clínica pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica. Além disso, é membro da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica. Atualmente, é pesquisador associado do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da USP, além de ter atuado como pesquisador visitante no Instituto Central de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, no Laboratório de Hepatites Virais da Universidade Alexis Carrel, na França, e no Laboratório de Medicina Internacional da Universidade Cornell, em Nova York.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Passado mais de um ano, como o senhor avalia a condução da pandemia no Brasil?

Celso Granato – Houve muita diferença regional. Se pensarmos no plano federal, que deveria ser o responsável pela maior parte das atitudes, foi um fracasso. Quando se observa dentro de cada estado ou eventualmente dentro de cada município, há uma variação grande, com casos em que o poder público ignorou as medidas de proteção e outros em que foram mais atentos. Infelizmente houve muita contaminação pela politização e isso é muito ruim quando se tem uma situação pandêmica com uma doença tão grave. De uma forma geral, a condução da pandemia foi ruim, especialmente no plano federal, com uma negação da pandemia, uma negação da (análise) clínica, uma negação das medidas de prevenção – como, por exemplo, o uso de máscaras e distanciamento social – e, o mais grave, o atraso que isso gerou na compra das vacinas.

Temos a impressão, e se trata tão somente de uma impressão, de que poderíamos ter tido as vacinas mais cedo, mas há, apesar do atraso, um exagero nisso, porque muitos dos países que tiveram uma atitude correta com relação à vacina também não estão tendo acesso aos imunizantes. Não sei se, no mundo real, teria feito tanta diferença começarmos mais cedo o processo de seleção de vacinas, mas no conjunto foi muito ruim, com exceção de alguns estados e municípios que controlaram um pouco melhor a situação.

 

 

IHU On-Line – O que se sabe de concreto sobre o Plano Nacional de Imunizações e quais podem ser as consequências epidemiológicas de postergar a conclusão da vacinação dos grupos prioritários para setembro?

Celso Granato – O Brasil tem uma infraestrutura para vacinação que é fantástica, haja vista que nos últimos anos conseguimos vacinar 80 milhões de pessoas em dois meses. Isso depende de uma infraestrutura muito bem montada sem a qual a compra, distribuição e aplicação das vacinas se torna muito difícil. O Brasil é um exemplo mundial pela dimensão que o país tem e, mesmo assim, executa esse fenômeno de vacinação em massa tão bem quanto conseguimos fazer.

No entanto, agora, parece que nesse aspecto o Brasil teve mais dificuldade, em primeiro lugar, porque faltaram vacinas. Não adianta ter o melhor sistema do mundo se a vacina não chega. Além disso, algumas vacinas dependem de uma cadeia refrigerada que precisa ter um funcionamento bem articulado, porque teremos vacinas da Pfizer e da Moderna que dependerão de um freezer a -80ºC. Imagino que grandes capitais do Brasil não terão grandes problemas, mas se pegarmos o oeste brasileiro, quantos freezers a -80ºC teremos? De uma forma geral a nossa rede é boa, mas não conseguimos implementar isso devido à falta de vacinas.

 

 

Bem, então quais são as consequências? Todos os países que conseguiram fazer uma vacinação em massa, como Israel, Escócia, EUA e Inglaterra, tiveram uma queda enorme no número de casos. Quando se começa a observar os dados após a vacinação, a primeira redução é o número de casos novos, a partir daí diminuem as internações e o número de mortes. Todos esses índices foram muito positivos nos países que conseguiram implementar esta política.

Há algumas comparações complicadas. Por exemplo, no caso de Israel, o país inteiro tem uma população de 9 milhões de habitantes. A Escócia a mesma coisa e até a Inglaterra poderíamos considerar, pois são países relativamente pequenos com uma infraestrutura de logística muito melhor. No caso do Brasil, vamos ter consequências com o atraso da vacinação, pois teremos mais gente morrendo, mais gente doente.

O lado positivo, para não ficarmos sendo somente pessimistas, está, por exemplo, no fato de termos dois institutos de pesquisa produzindo vacinas, como o Butantan e a Fiocruz. Poucos países se preocuparam com isso. A maior parte acabou comprando do exterior estas vacinas, mas o que acontece? O acesso depende de alguém querer vender as vacinas para o país. Na hora em que conseguirmos fazer as vacinas e distribuir como desejarmos, estaremos diante de uma grande vantagem, mas o desafio é que neste momento, no final de abril, estamos dependendo da compra do Insumo Farmacêutico Ativo - IFA, em que só conseguimos fazer uma parte do processo, mas não a totalidade. Na hora que conseguirmos internalizar todo o procedimento, seremos capazes de produzir vacinas para o Brasil inteiro sem depender da “boa vontade” de alguém querer exportar. Eu sou otimista, mas isso deve ocorrer somente no segundo semestre de 2021.

 

 

IHU On-Line – Levando em conta o cenário brasileiro, qual a importância de termos mais independência na produção de vacinas? O que isso significa?

Celso Granato – Essa independência é importantíssima, e não só porque vai garantir a independência de vacina. Quando conseguirmos fazer a transferência completa de tecnologia – agora só fazemos uma parte – teremos independência não só da vacina contra a Covid-19, mas também de outras doenças. Há uma série de vacinas que gostaríamos de ter e que podem ser adaptadas com esta metodologia. Há um vírus chamado “vírus sincicial respiratório”, especialmente nos locais do Brasil mais frios, que castigam muito as crianças e as deixa com o peito chiando, precisam ir ao hospital para fazer inalação. Em nenhum lugar do mundo há vacinas contra esse vírus. A tecnologia que foi desenvolvida para a Covid-19 pode ser adaptada a esse vírus. É possível que nos próximos dois ou três anos tenhamos no Brasil uma vacina para esta doença com uma tecnologia nova e totalmente independente.

Existem trabalhos que foram desenvolvidos com base nesta tecnologia de RNA contra o HIV. Os estudos de um centro muito importante da Califórnia, o Scripps Clinic, permitiram a produção de uma vacina cujo resultado foi de 97% de produção de anticorpos. Isso ainda está em fase inicial, mas existe a possibilidade bastante concreta de que possamos utilizar essa tecnologia para vacinar contra o HIV.

É fundamental que tenhamos independência para produzir essa vacina, no curto ou médio prazo, porque a vacina da Covid-19 nos permitirá produzir imunizantes contra outras doenças. Tudo isso traz um impacto muito importante na saúde dos brasileiros.

 

 

IHU On-Line – O que é uma “vacina de RNA”?

Celso Granato – A maior parte das vacinas que existem são feitas ou com um vírus produzido em laboratório, que é inativado – com substância química ou com radiação – e depois injetado na pessoa por meio de uma vacina. O organismo reconhece esse vírus, mesmo estando “morto” e ele produz anticorpos. No futuro, quando nos encontrarmos com o vírus vivo, para o nosso organismo não fará diferença, de modo que teremos células que aprenderam a fazer anticorpos e a produção é muito rápida, assim a pessoa não fica doente.

A outra maneira de produzir vacinas é pegar o vírus e torná-lo mais fraco, como se déssemos menos “alimento” para ele. Ou seja, é o vírus mesmo da doença, está “vivo”, mas foi enfraquecido de modo que ele não é capaz de causar a doença.

Por exemplo, a vacina do vírus morto é a vacina da gripe ou a vacina para a poliomielite. A vacina de vírus enfraquecido é a vacina tríplice viral contra sarampo, rubéola e caxumba. A inovação que surgiu não exatamente com a Covid-19, mas com a Síndrome Respiratória Aguda Grave - SARS e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio - MERS, é que se usa um pedaço do material genético do vírus, especificamente a parte que dá a ordem para produção do espinho do vírus, e se dirige uma resposta imune contra ele. Se fizéssemos um anticorpo contra esse espinho, funcionaria como se colocássemos um Bombril na antena da televisão, ou seja, tapamos o vírus e ele não consegue se ligar a nossa célula. Isso é totalmente seguro, pois não estamos nem dando vírus morto, nem o vírus enfraquecido, mas, sim, um pedacinho do material genético que ensina o organismo a reconhecer o espinho como uma coisa estranha. Então, quando uma pessoa entrar em contato com o vírus vivo, tais espinhos serão reconhecidos pelo corpo, que produzirá, rapidamente, anticorpos contra ele.

Por isso essas vacinas são seguras e, de um modo geral, bastante eficientes. Além de tudo, esse processo é muito mais barato de se realizar. Mas por que não foi feito antes? Porque não havia tecnologia. Foi necessário um avanço tecnológico para chegarmos ao atual estágio, de modo que agora para produzir diferentes vacinas – a partir desta técnica – será necessário mudar o tipo de RNA de acordo com a doença. Pode-se fazer um RNA contra o HIV, o vírus sincicial respiratório, contra a Covid-19, contra influenza e uma variedade muito grande de vacinas.

 

IHU On-Line – Isso serviria contra outros tipos de coronavírus?

Celso Granato – Existe uma série de trabalhos mostrando que a China é um centro produtor de coronavírus. Não é porque eles estão fazendo isso de propósito. A grande parte dos coronavírus são, originalmente, vírus de morcegos, então locais onde há muito morcego – e a China tem muito morcego – há muitas variantes de coronavírus. Quando juntamos isso aos hábitos alimentares dos chineses, tudo isso se transforma em uma bomba atômica. Há mercados chineses em que se vendem animais mortos e vivos juntos, rãs, morcegos, lagartos etc. Nesse ambiente os vírus passam de um animal a outro e nesse processo eles sofrem mutações, até que em um dado momento ele pode ser capaz de pegar um ser humano. Foi o que aconteceu agora. O vírus passou de um morcego para um pangolim – um animal que nos lembra o tatu –, que é um mamífero mais parecido conosco. Ele se adaptou e, a partir daí, deu um pulo para o ser humano. Isso não teria acontecido se não houvesse esses mercados que são usinas de produção de vírus novos.

Refiro-me a esse episódio para dizer que esta não será a última pandemia que teremos, embora não saibamos quando ela vai acontecer, mas vai acontecer. Termos uma tecnologia de vacinação que nos permita uma adaptação para outros coronavírus é fantástico, pois nos dará uma tranquilidade muito maior. Nesse sentido a produção do Butantan e da Fiocruz, somada à rede do SUS, é muito bem montada.

 

IHU On-Line – Por que apostar na imunidade de rebanho sem vacinação sempre foi, e continua sendo, um erro? Quais os principais riscos dessa estratégia?

Celso Granato – Essa é uma das coisas que tivemos que “comer o chapéu”, porque acreditávamos que poderia funcionar. Isso porque a imunidade de rebanho é um conceito que usamos para uma série de infecções, sarampo, rubéola e até para a gripe. O que não contávamos é que o vírus estava em um processo de adaptação e quando ele passou do pangolim para nós ele teve de se adaptar ao ser humano. O vírus precisa se modificar e se adaptar às vítimas e isso fez com que ele mudasse e se readaptasse. Esse foi o problema, porque quando se pensa em imunidade de rebanho, está se falando de um só tipo de vírus. Quando 60% ou 70% da população já teve a infecção, o vírus não tem para onde ir, pois precisa de vítimas novas; quando tem muita gente imune ele começa a ficar com dificuldade de encontrar alguém que não teve infecção.

Nesse processo no Amazonas, como houve uma grande pandemia, o vírus teve a oportunidade de realizar várias mutações. Assim ele começou o processo de novo, e aqueles 60 ou 70% da população que tinham sido infectados pelo vírus que chamamos de original, ou vírus canônico, ficaram novamente expostos. Isso porque o vírus já sofreu mutações, não é mais aquele canônico e sim o P1, e aí começa tudo de novo.

 

 

A mutação é finita

Essa é uma questão que as pessoas não entendem muito. Esse processo de mutação tem fim, mas as pessoas pensam que porque o vírus sofreu uma mutação, pode sofrer outra e outra e não ter mais fim. Mas isso não é verdade, pois o processo de mutação se dá porque o vírus está se adaptando a um novo hospedeiro e essa adaptação não é infinita, porque se ele chegar a um momento de sofrer uma mutação muito grande, não vai conseguir se ligar à célula humana.

Então, esse é um processo de adaptação à célula humana. Isso, na Biologia, se chama de evolução convergente. Se pegarmos, por exemplo, a cepa P1, que é do Amazonas, a cepa P2, que é do Rio de Janeiro, e a cepa da África do Sul e a da Inglaterra, veremos que quase todas as mutações são iguais. Pode-se dizer que tem uma variação genética, mas se pensarmos em qual é a diferença genética de um manauara e de um africano ou de um inglês, veremos que não há essa diferença.

O fato é que o vírus tem uma capacidade limitada de mutação e ele já está atingindo, provavelmente, essa conformação mais estável. É possível que tenhamos de mudar as vacinas daqui para frente, mas não é uma mudança muito grande porque o maior estrago, aparentemente, já aconteceu.

 

 

IHU On-Line – Existe alguma possibilidade de que, em demorando meses e talvez mais de um ano a vacinação mais massiva da população, a Covid-19 se torne uma doença endêmica, especialmente para uma fatia mais pobre da população?

Celso Granato – Sim, existe. Isso vai depender muito da nossa capacidade de vacinar e até da nossa capacidade de isolamento social, porque isso é outra coisa que temos reparado. A vacina é certamente uma estratégia muito importante, mas também é importante manter o isolamento social até que se atinja a imunidade da população como um todo.

Se nos contentarmos com apenas 30 ou 40% de imunização da população, é possível que a falta desse isolamento social seja suficiente para que esse processo de contaminação se mantenha. Agora, se conseguirmos chegar a 70 ou 80% da população vacinada, começa a ser mais difícil para esse processo de contaminação se manter. Por isso, reitero, é importante juntarmos, especialmente nessa fase inicial, as duas medidas: isolamento social e vacinação. Isso até termos vacinado o suficiente – o que provavelmente vai ser lá no final do ano – para que não se dê muito espaço para o vírus se disseminar.

 

“Não podemos esperar para ver”

Agora, uma coisa que pode acontecer também, mas aí já um pouco exagerado, é o vírus perder a sua patogenicidade tão elevada quanto ele tem agora, porque para o vírus também não é um bom negócio ele matar o hospedeiro. Isso porque na hora que mata o hospedeiro, encerra sua capacidade de transmissão. Se formos analisar, a tendência histórica dos vírus é que eles vão se atenuando ao longo do tempo. Mas não sabemos quanto tempo isso vai demorar e se de fato vai acontecer.

Por exemplo, existem seis outros coronavírus e a maior parte deles causa resfriados comuns. O OC43 e o 299E, por exemplo: é possível que lá no passado, quando não tínhamos história escrita, eles fossem muito agressivos, matassem um monte de gente e ao longo do tempo se tornassem vírus que apenas causam resfriado. Então, é possível que isso aconteça também, mas, neste momento, não podemos esperar para ver. Vamos vacinar todo mundo, que é a coisa certa a fazer, e manter as medidas sanitárias e de distanciamento social; isso é muito importante para outras coisas também.

 

Medidas que diminuem outras contaminações

Algo que foi interessante no ano passado é que praticamente não se teve gripe e esses vírus de que falamos, de problemas respiratórios, sumiram. Isso porque as pessoas começaram a lavar as mãos, começaram a usar máscaras, as escolas fecharam. Lógico que não se pode fechar e ficar assim indefinidamente, mas isso mostra que essas medidas acabaram até diminuindo diarreia, pois quando se tem essas medidas de higiene, educação e bom senso, por tabela, se resolve uma série de problemas e não somente aquele que se acha que está resolvendo.

 

IHU On-Line – O que explica o fato de o Brasil ter 2,7% da população mundial, mas 12% do total de mortes por Covid-19?

Celso Granato – Isso depende muito de nossa infraestrutura de saúde. O Brasil ainda é um país em que ¾ da população depende do SUS, e de forma alguma esse sistema é ruim, tanto ele é bom que precisa ser até estimulado para que melhore. Mas o fato é que quando se tem uma catástrofe desse tipo, o SUS não dá conta. Ele é bem montado para uma situação normal, mas quando se tem uma pandemia desse tipo, coisas que nunca pensamos ser possível de acontecer aconteceram, como faltar oxigênio. Isso nunca passou pela nossa cabeça.

Além disso, quantas cidades do Brasil não têm nenhum leito de UTI? E não estou falando de cidades minúsculas, são importantes cidades com 50 ou 60 mil habitantes que não têm um só leito de UTI. Nesse sentido, deveríamos ter uma conduta mais proativa. Infelizmente, precisamos pensar que essas coisas podem acontecer. Não dá para um prefeito de uma cidade de 50 mil habitantes comprar uma ambulância para levar o sujeito para a cidade vizinha; a cidade dele é quem tem de ter um mínimo de infraestrutura de saúde.

 

 

Fortalecimento do SUS

Se você comparar, a letalidade que teve o vírus no Brasil com a letalidade na Inglaterra, verá que não foi tão diferente assim. A Inglaterra certamente é o melhor país do mundo com sistema público de saúde e mesmo assim morreu muito mais gente, por milhão de habitantes, porque ninguém está preparado para uma pandemia dessas. Nunca se está suficientemente preparado, mas, agora, acho que precisamos aproveitar essa oportunidade para melhorar o SUS. Não dá para achar que se vai preparar o SUS para uma pandemia o tempo inteiro, pois isso tem um gasto. Mas é preciso ter mecanismos que permitam atender um certo tanto e que se possa ampliar quando houver uma emergência.

Eu fiz pós-graduação na Alemanha e lá se discutia – veja, um país riquíssimo – se havia necessidade de que cada leito de hospital que fosse montado, fosse também um leito de UTI. Até isso pensaram: vamos deixar preparado um leito de UTI, se não precisar, se usa como leito normal. Mas isso não aconteceu, porque para manter um leito de UTI para quem não precisa de UTI é um gasto que nem a Alemanha pode se dar ao luxo.

Mas eu acho que poderíamos melhorar bastante. Temos que dar muita força para o SUS, temos que investir em prevenção, saúde básica, vacinação, são coisas que ainda precisam melhorar no Brasil.

 

 

IHU On-Line – Qual o legado que a pandemia nos deixa?

Celso Granato – Apanhamos muito, mas também aprendemos muito. Agora, acho que, como povo, temos que cobrar das nossas autoridades para que consigamos tornar esse aprendizado útil. Por exemplo, desenvolvemos muito nossa capacidade de testagem; se compararmos com o que se fazia há um ano e meio, veremos que era muito inferior ao que se consegue fazer agora.

Hoje, também não podemos mais ter a ideia de que tudo precisa ser centralizado, tudo tem de ser nas grandes capitais. Será que não podemos ter um sistema mais capilarizado, no sentido de ter, num estado, três, quatro, cinco locais bem desenvolvidos para atender as pessoas e não precisar drenar tudo para a capital? A maneira de atendermos as pessoas pode ser melhorada nesse sentido. Seguramente tem demanda para isso.

Outra coisa, deveríamos ter mecanismos de Estado e não mecanismos de governo, porque o governo, por uma série de razões, pode ter interesses outros que talvez não tenham as melhores medidas. Mas, agora, se houver uma política de Estado, não importa se for PT, PSL, PSDB. Nós não podemos, como povo, depender disso. Precisamos ter um sistema que funcione independentemente disso. É óbvio que, em última análise, sempre vai haver uma dependência, mas uma política bem definida minimiza essa dependência. Eu acho que precisamos disso.

 

 

Aprendizados técnicos

Também acho que aprendemos a trabalhar em equipe melhor do que trabalhávamos antes e aprendemos também uma série de coisas bem técnicas. Por exemplo, em nosso laboratório nós fizemos um milhão e 300 mil PCR para Covid, fizemos um milhão e meio de sorologias e é lógico que isso serve para uma série de outras doenças. Quando você fica muito habilitado para uma coisa, pode estender a outras. Podemos pensar: olha, vamos fazer isso também para rubéola, para hepatite e essa outra coisa para tuberculose.

Com isso, ganhamos uma independência muito grande. É horrível que 400 mil brasileiros tenham morrido, isso é uma catástrofe. Mas vai ser uma catástrofe ainda maior se não soubermos tornar efetivos esses aprendizados e, por exemplo, melhorar o SUS. Em última análise, todos nós precisamos do SUS. Você pode pagar três mil, cinco mil reais por um plano de saúde, mas na hora que a coisa fica ruim as pessoas vão para o SUS. Por isso precisamos ter um SUS muito forte no Brasil inteiro e hospitais minimamente equipados.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Celso Granato – Neste momento, uma outra coisa que aprendemos é sobre a ligação da imprensa de forma geral, dos divulgadores sociais de uma forma geral, com a classe médica. Porque podemos saber muito sobre medicina, mas a comunicação com o povo nós não sabemos fazer muito bem, não temos nem os recursos, nem as palavras certas. O que aprendi muito com vocês, jornalistas de um modo geral, é que é muito importante conversarmos, porque vocês conseguem transformar isso num impacto social maior do que os médicos sabem fazer.

Mas temos que trabalhar de mãos dadas, pois sinto que muitas coisas que dependem de certo sacrifício, como distanciamento social, deixar de ir na balada, não poder ter relacionamento sexual do jeito que gostaria, não são mensagens fáceis de passar. Por isso, precisamos conversar entre nós para que isso se torne uma coisa socialmente compreensível e as pessoas possam incorporar. Você vê que, nos países onde essa mensagem é mais bem passada, isso funciona, embora também tenha relação com uma série de coisas, como educação básica de qualidade. Nós só precisamos ter a forma certa de pegar a informação correta para passar a quem tem a habilidade de transformar essa informação em algo mais compreensível para ser divulgado. Tive uma experiência muito boa falando com vocês jornalistas.

 

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