Por: Patricia Fachin | 02 Dezembro 2016
O descarte de colchões, espumas e materiais eletrônicos, e até carros, é uma das causas da contaminação de sedimentos retirados da Lagoa do Saibro, em Ribeirão Preto, que é uma das áreas de recarga do Aquífero Guarani. Segundo o professor de toxicologia e química da USP, Daniel Dorta, os retardantes de chama bromados, substância encontrada na análise de sedimentos da Lagoa do Saibro, são utilizados na produção de bens de consumo e são responsáveis pela contaminação dos sedimentos. “O grande problema da presença de retardantes de chama bromados no meio ambiente é a sua possibilidade de causar diversas ações no nosso organismo: na literatura há casos que descrevem que esse tipo de substância leva a uma disfunção do sistema endócrino, ou seja, age alterando a função de hormônios no organismo”, esclarece.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Dorta explica que “em função do calor ou de algum tipo de exposição ambiental, essa substância pode se soltar do produto e vir a contaminar o ambiente onde está sendo depositada”. Segundo ele, a água da Lagoa ainda não foi analisada, entretanto, adverte, “com certeza, os peixes dessa lagoa estão contaminados, porque eles se alimentam de micro-organismos e de materiais que ficam nessa região dos sedimentos. O problema é que é bastante comum os moradores da região pescarem na lagoa e se alimentarem desses peixes contaminados; consequentemente, ao consumirem os peixes, as pessoas vão se contaminar”.
De acordo com o pesquisador, a “concentração de retardantes de chama bromados nos sedimentos da lagoa ainda não está muito alta”, mas o resultado da análise surpreendeu, porque o nível da substância encontrada “é parecido com o que já foi descrito na literatura em relação às lagoas de regiões muito mais industrializadas da China e dos Estados Unidos. De todo modo, como a lagoa está localizada nas proximidades de uma Área de Preservação Ambiental – APP, que é uma região prioritariamente residencial, não esperávamos encontrar ali essa substância, ou ao menos, não nessa concentração. Diante disso, nada impede que, no futuro, essa substância que encontramos no sedimento venha a aparecer nas águas do Aquífero ou mesmo na água superficial da lagoa”, afirma.
Daniel Dorta | Foto: Arquivo Pessoal
Daniel Dorta é professor de Toxicologia e Química Clínica no Departamento de Química da Universidade de São Paulo - USP. É doutor em Toxicologia pela USP, mestre em Ciências Farmacêuticas pela mesma universidade e graduado em Farmácia pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os resultados da pesquisa que o senhor coordenou, que analisa sedimentos da Lagoa do Saibro, em Ribeirão Preto, que é uma área de recarga do Aquífero Guarani?
Daniel Dorta – No laboratório onde trabalho, nós já pesquisávamos a classe de substâncias conhecidas como retardantes de chama bromados, os chamados Éteres de difenila polibromados, para entender o seu mecanismo de ação tóxica. Então, surgiu a ideia de examinarmos se essa substância poderia estar presente na região da Lagoa do Saibro, que é uma área bastante assoreada e conhecida por ser, justamente, uma das áreas de recarga do Aquífero. Os retardantes de chama bromados são utilizados em diversos bens de consumo, como espumas, colchões e materiais eletrônicos. O problema é que eles são altamente persistentes no ambiente e no organismo das pessoas, ou seja, uma vez presente no organismo, a substância demora muito para ser eliminada. Em função do calor ou de algum tipo de exposição ambiental, essa substância pode se soltar do produto e vir a contaminar o ambiente onde está sendo depositada.
Na análise que realizamos, encontramos essa substância em sedimentos da lagoa, mas não analisamos se ela também está presente na água. Assim, não podemos afirmar se a água está ou não contaminada. Entretanto, o que podemos adiantar é que, com certeza, os peixes dessa lagoa estão contaminados, porque eles se alimentam de micro-organismos e de materiais que ficam nessa região dos sedimentos. O problema é que é bastante comum os moradores da região pescarem na lagoa e se alimentarem desses peixes contaminados; consequentemente, ao consumirem os peixes, as pessoas vão se contaminar.
Podemos dizer que a concentração de retardantes de chama bromados nos sedimentos da lagoa ainda não está muito alta; as concentrações são parecidas com o que já foi descrito na literatura em relação às lagoas de regiões muito mais industrializadas da China e dos Estados Unidos. De todo modo, como a lagoa está localizada nas proximidades de uma Área de Preservação Ambiental – APP, que é uma região prioritariamente residencial, não esperávamos encontrar ali essa substância, ou ao menos, não nessa concentração. Diante disso, nada impede que, no futuro, essa substância que encontramos no sedimento venha a aparecer nas águas do Aquífero ou mesmo na água superficial da lagoa.
IHU On-Line – A que se atribui a presença desse tipo de substância na lagoa?
Daniel Dorta – Muito provavelmente essa substância se acumula nos sedimentos por conta do descarte inadequado de materiais na região da lagoa. Em períodos de seca, muitas pessoas usam o local como praia, mas descartam muitos materiais no entorno da lagoa. Existe um grupo que faz a limpeza do local uma vez por mês, e há duas semanas o grupo retirou, de dentro da lagoa, 20 sacos - de 20 litros - de lixo: já retiraram carros, estofamentos, equipamentos eletrônicos, móveis, ou seja, uma série de materiais com essa substância em sua composição.
IHU On-Line – Essa substância causa algum impacto à saúde?
Daniel Dorta – O grande problema da presença de retardantes de chama bromados no meio ambiente é a sua possibilidade de causar diversas ações em nosso organismo: na literatura há casos que descrevem que esse tipo de substância leva a uma disfunção do sistema endócrino, ou seja, age alterando a função de hormônios no organismo. Essa substância, em especial, age sobre receptores de hormônios reprodutivos e sobre receptores de hormônios tireoidianos, porque a estrutura química dela é muito semelhante à dos hormônios tri-iodotironina (T3) e tiroxina (T4) da tireoide, mas também age sobre receptores estrogênicos, isto é, os hormônios relacionados ao sistema reprodutivo.
Também na literatura há relatos acerca de trabalhadores homens que, em seus trabalhos, ficavam expostos a essa substância e que, com o passar do tempo, tiveram uma redução muito grande do número de espermatozoides.
IHU On-Line - Como o poder público reagiu à divulgação da pesquisa e como as pessoas reagem aos descartes na lagoa feitos pelos próprios moradores?
Daniel Dorta – Há algum tempo vem ocorrendo uma movimentação pública para que haja mais preservação na região da lagoa. Existe, inclusive, um grupo chamado Mutirão da Lagoa, que está plantando árvores no entorno, fazendo a limpeza mensal na região e promovendo diversas atividades para tentar proteger e conscientizar a população das proximidades. Após a divulgação da pesquisa que realizamos, que foi bastante disseminada pela mídia impressa e televisiva, acabamos sendo contatados pela promotoria do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente – GAEMA, que nos pediu um trabalho completo para que pudessem avaliar a situação da lagoa e, se for o caso, solicitar novas análises para confirmar os dados apresentados pela pesquisa.
IHU On-Line - Qual será o próximo passo da pesquisa?
Daniel Dorta – O nosso laboratório já pesquisa essa substância há oito anos, tentando entender os seus mecanismos de ação tóxica. Já vimos que, em concentrações baixas, retardantes de chama bromados podem gerar uma desregulação endócrina e, em concentrações um pouco mais altas, podem induzir outros problemas, como morte celular, principalmente de células do fígado. De todo modo, na literatura ainda não existe relato de que essas concentrações foram encontradas em organismos humanos. Porém, esse tipo de substância é persistente – uma prova dessa persistência é que retardantes de chama bromados já foram encontrados em concentrações altas em ursos polares, na região ártica, que está totalmente distante de uma região que possa estar liberando ou produzindo esse tipo de substância. Isso nos indica que essa substância pode ir se acumulando com o passar dos anos, e não sabemos como essa concentração afetará a população daqui a 15, 20 ou 30 anos.
Além de darmos continuidade a esse estudo, o próximo passo será estudar a presença de retardantes de chama bromados no leite materno. Vamos comparar um grupo de mães que vive próximo da região com outro grupo situado no lado oposto da cidade. A verificação da exposição da substância pelo leite materno se justifica porque essa é uma técnica de obtenção de uma amostra biológica não invasiva. Como o leite tem a característica de ter bastante gordura, vamos ver se é possível encontrar a substância no leite.
IHU On-Line - Qual é a importância da Lagoa do Saibro para o Aquífero Guarani? E de que modo a contaminação da lagoa afeta o Aquífero?
Daniel Dorta – Na região da lagoa deveria existir uma camada rochosa de basalto para proteger o Aquífero, mas, como ela não existe mais, entre a superfície da lagoa e o aquífero há somente uma camada de terra. Antigamente, onde hoje existe a lagoa, havia uma área de exploração em que se retirava material para produzir tijolos, mas como essa área fica bem próxima da superfície, ali se formou a lagoa.
A partir da formação da lagoa, foi realizado um estudo na região, o qual constatou que ali é uma região de recarga do Aquífero. Uma vez que substâncias tóxicas em geral caem na lagoa, elas podem ser lixiviadas, sendo absorvidas pela camada do solo, que servirá como um filtro, mas um filtro fino, pelo qual essas substâncias tóxicas passarão. Então, essas substâncias tóxicas podem, com o tempo, vir a aparecer no Aquífero. Na região de Ribeirão já foram encontradas algumas concentrações de praguicidas nas águas do Aquífero e, desse modo, nada impede que essas substâncias possam estar chegando lá também. Não temos essa comprovação porque ainda não procuramos, mas como não existe uma camada rochosa protegendo o Aquífero, há a possibilidade de haver uma infiltração e de, em um momento ou outro, essa substância atingir o Aquífero.
IHU On-Line - Segundo a Convenção de Estocolmo, vários países, incluindo o Brasil, assinaram um tratado que visava o controle ou a restrição da produção e consumo dos compostos presentes na lista de poluentes orgânicos persistentes - POPs. Por que no Brasil não é feito o controle desse tipo de poluente?
Daniel Dorta – Porque a legislação brasileira ainda não exige isso. A legislação de proteção às águas determina que é necessário avaliar a presença de várias substâncias na água, por exemplo, mas não existe legislação em relação aos poluentes orgânicos e, portanto, as empresas utilizam esses poluentes em vários dos bens que produzem. Sabemos que mesmo que parássemos de utilizar essa substância no país, ela continuaria chegando no ambiente por muitos anos, já que praticamente todos os materiais de consumo utilizam retardantes de chama bromados. Como já disse antes, esses materiais incluem espumas, materiais têxteis e eletrônicos, portanto, essa substância estará presente no ambiente por mais 30, 40 ou 50 anos.
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Lagoa de recarga do Aquífero Guarani está contaminada por substâncias que geram disfunção do sistema endócrino. Entrevista especial com Daniel Dorta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU