Saúde e segurança do trabalhador são prejudicadas pela subnotificação

  • Sexta, 26 de Outubro de 2018

Ao longo de 2018 o ObservaSinos trabalhou na criação e publicação do Especial do Trabalho Vale do Sinos. A série histórica do ObservaSinos aborda grandes temas sobre o mundo trabalho entre os anos de 2003 e 2016, período de grande movimentação e transição econômica, política e social no Brasil. Os dados analisados são dos 14 municípios do Conselho Regional de Desenvolvimento - Corede do Vale do Rio dos Sinos, região de atuação do Observatório.

Em uma parceria com a Beta Redação, do curso de Jornalismo da Unisinos, o Especial do Trabalho expandiu sua região de análise para Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Os dados coletados e as matérias produzidas foram uma realização dos alunos da editoria de Economia, que utilizaram os tópicos do Especial do ObservaSinos como fio condutor.

A Beta Redação é um projeto de integração de diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em seis editorias. O objetivo da Beta Redação é proporcionar aos jornalistas em fase final de formação uma vivência intensa da realidade profissional, fomentando a experimentação e o exercício crítico do Jornalismo, em contato direto com o público.

Eis o texto

Porto Alegre registrou 13,7 acidentes de trabalho a cada 1 mil trabalhadores em 2016

A reportagem é de Aline Santos, Amanda Büneker, Eduarda Moraes, Verônica Torres Luize, Victória Freire, publicada plea Beta Redação, 19-09-2018

O Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho-RS divulgaram, no início deste ano, uma pesquisa inédita sobre a saúde do trabalhador gaúcho em 2016. O estudo abrangeu as categorias de trabalhadores autônomos e também informais. Um dos dados de maior relevância é o número de mortes em decorrência de acidente de trabalho, 506, o qual é contrariado pelas estatísticas oficiais do INSS de 2016, que apontaram apenas 139 mortes, cerca de um terço do resultado obtido pelo estudo. A contradição dos números deixa claro que a subnotificação de acidentes de trabalho é um grande problema para o monitoramento e produção de dados na área.

Existe uma grande dificuldade dos órgãos públicos fiscalizadores em produzir dados realistas sobre a saúde e segurança do trabalhador, pois além da população que se encontra em situação de trabalho informal, ainda tem a não Comunicação do Acidente de Trabalho (CAT) pelo empregador.

Na capital gaúcha, Porto Alegre, os dados oficiais do Ministério da Previdência Social apontam o registro de 11.266 acidentes de trabalho em 2016. O número está em queda desde 2014, quando teve seu último pico, com 11.751 registros.

Infográfico: Registro de acidentes de trabalho por ano em Porto Alegre

Os índices de registros de acidentes de trabalho foram apresentando crescimento constante até 2007, com 12.185 registros em Porto Alegre. O ano de 2010 foi de maior registro, com 12.213 casos.

Infográfico: Número de trabalhador por ano em Porto Alegre

Nos anos seguintes houve uma queda, reduzindo para 10.693 registros no ano de 2012, e depois os números voltaram a subir. Se compararmos os números de acidentes com o número de trabalhadores, a partir de 2014, nota-se que a queda do índice de acidentes de trabalho acompanha uma baixa no número de trabalhadores. Ou seja, o percentual de acidentes não diminuiu. O gráfico mostra um grande elevação do número de trabalhadores, em Porto Alegre, de 2009 a 2014. Em 2016 o índice regressa para o mesmo número de 2010. O ano que apresentou menor índice de trabalhadores foi 2007, com 665 mil pessoas ocupadas.

Infográfico: Número de registros de acidentes de trabalho a cada mil trabalhadores de Porto Alegre

Os dados do número de registros de acidentes de trabalho a cada mil trabalhadores apontam que a proporção de acidentes foi maior em 2007 com 18,77 acidentes por mil trabalhadores. E a menor proporção foi registrada em 2012, com 12,20 por mil trabalhadores.

No entanto, não há como medir a real dimensão dos acidentes de trabalho, pois no Brasil o cenário de subnotificação dessas situações, por parte das empresas, é um tema recorrente de pesquisas e demonstra um problema no sistema de saúde e segurança do trabalhador. Conforme apontado pelo Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador (CEREST) de Porto Alegre, reduzir essa prática é o principal desafio deste setor atualmente.

Diversos estudos estimam altas porcentagens de negligência nas notificações, muitos embasados no cruzamento de dados divulgados pelas entidades públicas. Segundo uma pesquisa publicada no livro Saúde e segurança do trabalho no Brasil, cerca de 4,9 milhões de trabalhadores acima de 18 anos sofreram acidentes de trabalho no Brasil em 2013. O número é 7 vezes maior que o registrado pelo INSS. A divergência dos dados demonstra que muitos dos acidentes em decorrência do trabalho são ocultados pelas empresas, mesmo com a obrigatoriedade do registro por parte do empregador no sistema de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), controlado pelo INSS.

Os pesquisadores apontam como principais motivadores da subnotificação o padrão de gestão predatória, que visa o lucro acima de tudo, inclusive, do trabalhador; a hierarquia de acidentes e lesões, onde as de menor visibilidade, como as doenças ocupacionais, tendem a ser ocultadas; e a migração do setor da indústria para o de serviços, que em geral apresenta os acidentes considerados como ocultáveis.

Lesões e atividades recorrentes

Infográfico: 10 lesões mais frequentes em acidentes de trabalho no município de Porto Alegre

Em Porto Alegre, os registros de contusão e esmagamento são os que mais aparecem. Com 12.374 ocorrências no período de 2012 a 2017, esse é um dado geral sem determinação de setor trabalhista. Em contrapartida, os dados de luxação têm poucos casos no mesmo período, com 10.47 registros.

Infográfico: 10 atividades com maior incidência de acidentes de trabalho em Porto Alegre

Entre as atividades com mais registros de acidentes de trabalho, os dados disponíveis mostram que a área hospitalar é a que possui maior incidência em Porto Alegre, mais de 20 mil acidentes registrados em 5 anos. No entanto, de acordo o Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador, que registra os atendimentos de acidentes de trabalho, o setor com mais ocorrências de acidentes é a construção civil.

Atendimento hospitalar

Conforme Rober Martins, coordenador de engenharia da segurança e membro do Sindicato dos Hospitais e Clínicas de Porto Alegre, a área da saúde está mais propensa ao registro de acidentes do que a construção civil. Sua constatação parte do princípio de que há muita gente envolvida no ramo. Ele explica que, a cada cinco pacientes, exige-se a presença de um profissional. Apenas na Santa Casa, são 7.500 trabalhadores contratados.

“Para entender essa questão dos acidentes de trabalho, precisamos antes falar do pano de fundo do atendimento hospitalar, que é a prestação de serviços para pessoas”, afirma. A quantidade de riscos ocupacionais aos quais esses colaboradores ficam expostos é alta. Dentre as lesões comuns estão as ósseo-musculares. Sobrecarga e repetição de esforços físicos, como aqueles exigidos ao movimentar os pacientes, acabam rendendo cervicalgias e hérnias para quem os executa.

De acordo com o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Rogério Uzun Fleischmann, um dos fatores que podem ser responsáveis pelo alto índice de notificações de acidente de trabalho nas atividades hospitalares é o Protocolo de Exposição a Materiais Biológicos do Ministério da Saúde, que torna mais rigoroso o registro de acidente, principalmente quando há lesão perfurocortante.

“O número de notificações é alto, mas a gente não pode concluir que a área hospitalar é a que mais acidenta. O que acontece é que eles notificam mais. Inclusive, nos próprios hospitais a taxa de notificação para outros acidentes e adoecimentos é menor. Se pegarmos, por exemplo, a área de adoecimento por problemas de lombalgia ou pelos esforços que eles fazem para levantar pacientes, a notificação é muito menor do que com esses acidentes de lesões perfurocortante”, explica o procurador.

Ao sofrer um acidente de trabalho, o profissional deve comunicar para a sua liderança imediata. Realiza-se o registro e o acidentado parte para atendimento. Quando o ocorrido envolve material biológico, busca-se, primeiramente, identificar a sua procedência. O paciente no qual o instrumento foi utilizado passa, então, por um teste, no intuito de identificar doenças como hepatite e HIV. Em casos positivos, o profissional exposto ao risco toma um coquetel profilático fornecido pelo Ministério da Saúde. Nas vezes em que a origem do material não é descoberta, o profissional recebe os medicamentos da mesma forma por precaução. Tudo isso deve ocorrer em uma janela de, no máximo, quatro horas.

E não só os médicos, enfermeiros e fisioterapeutas estão vulneráveis dentro do ambiente hospitalar. Acontecem, por exemplo, situações em que o descarte indevido de materiais acaba lesionando auxiliares de serviços gerais.

Outro problema típico das atividades hospitalares é a sobrecarga emocional. Conviver diariamente com a enfermidade e o sofrimento alheio incorre no adoecimento psíquico. O estresse e a depressão surgem enquanto distúrbios mentais frequentes.

É preciso, de acordo com Rober Martins, conhecer a epidemiologia da área na qual cada empregado atuará para mitigar os riscos inerentes. Todo o funcionário deve passar por um treinamento funcional após sua admissão, a fim de ser informado sobre as melhores práticas da atividade que desempenhará.

O risco biológico implicado aos trabalhadores da saúde, em função do contato com pacientes e materiais não esterilizados, dá direito ao adicional de insalubridade. O percentual da compensação salarial é determinado pela Normativa Reguladora nº15 do MPT, podendo variar entre 10% e 40% do salário mínimo, conforme o grau de hostilidade do ambiente organizacional. Já aqueles profissionais que atuam sob perigo iminente de morte, a exemplo da medicina nuclear, recebem um adicional de periculosidade calculado em 30%.



(Foto: Verônica Torres Luize/Beta Redação)

Construção civil

Juliana Volpato, técnica em segurança do trabalho da empresa Volpato — uma empresa brasileira especializada em segurança no trabalho, que está há mais de duas décadas no mercado — , conta que há grande subnotificação dos acidentes de trabalho na área da construção civil. Normalmente, as empresas não notificam boa parte dos acidentes que ocorrem diariamente, sejam eles graves ou não. A lei nº 8.213/91 determina, no artigo 22, que todos os acidentes devem ser comunicados. Se houve acidente de trabalho, ou seja, acidente que trouxe lesão corporal ou perturbação funcional, deve ser emitida a CAT.

A técnica ainda ressalta que muitos pequenos acidentes dificultam o trabalho dos empregados e não são relatados por conta do nível de ferimento, como casos de unha arrancada, esmagamento, tombos, tropeços e escorregões. São acidentes leves, que não resultam em morte, mas reduzem a capacidade de realizar plena do trabalho.

Com 20 anos de experiência, atendendo mais de 800 empresas, Juliana estima que ocorre ao menos um acidente a cada obra por dia, mas a maioria não é notificado. Segundo a profissional, na maioria dos acidentes o funcionário é apenas examinado e liberado, ou em caso de ferimento pequeno, como arranhões, cortes ou machucados menores em geral, são colocados curativos e escondidos pelos equipamentos de proteção individual. “Quando um funcionário corta a mão superficialmente, é colocado um curativo e a luva de proteção para que ele volte a trabalhar”, explica Juliana.

“As empresas têm por hábito não notificar os acidentes menores e que não terminam em morte por conta dos riscos e investimentos em obras. Um acidente grave pode embargar uma obra e pará-la por anos”, comenta.

Por isso que, segundo Juliana, a esperança para a área de segurança do trabalho está sendo a obrigatoriedade do preenchimento do Sistema de Escrituração Fiscal Digital das Obrigações Fiscais Previdenciárias e Trabalhistas (e-social) pelas empresas. O Sistema foi instituído pelo decreto nº 8.373/2014 do governo federal e será obrigatório para todas as empresas e serviços públicos a partir de 2019.

O banco de dados deve ter todas as informações da empresa e do funcionário, com laudos, exames e relatórios de ferimentos. A maioria das notificações é apenas de acidentes que resultam em afastamento ou morte. No sistema devem ser referidos afastamentos, atestados, exames de visão e audição, além de relatar os treinamentos e os riscos a que cada funcionário está exposto, ruídos, químicos, baixas ou altas temperaturas.

Consequências jurídicas



Ministério Público do Trabalho atua em caso de denúncias por fata de notificação do acidente de trabalho. (Foto: Divulgação/FEESSERS)/p>

Segundo o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Rogério Uzun Fleischmann, a empresa que não notifica o acidente de trabalho comete ato ilegal, podendo ser penalizada. “Trata-se de ilegalidade que atrai autuação pelo Ministério do Trabalho e autuação do MPT, com possibilidade de condenação em dano moral coletivo. Bem como o médico responsável, ademais, tratando-se de doença de notificação compulsória, fica sujeito à condenação criminal, na forma do art. 269 do Código Penal”, explica o procurador.

Fleischmann ainda destaca que o trabalhador, quando a empresa não notifica o acidente, não busca a notificação em si, mas a estabilidade decorrente do acidente e indenização por dano moral ou material. “No caso de trabalhador informal, se considerarmos o autônomo que não recolhe contribuição previdenciária, não tem amparo. Se considerarmos informal o trabalhador que trabalha sob vínculo de emprego sem registro de Carteira de Trabalho, esse pode buscar o reconhecimento do vínculo na Justiça do Trabalho e, reconhecido o vínculo, alcançar seus efeitos”, esclarece.

No Rio Grande do Sul existe um projeto desenvolvido pelo MPT chamado Verdade na Saúde, no qual há uma conscientização nas unidades de saúde públicasprivadas dos municípios para que elas cumpram a obrigação de notificar acidentes e doenças relativas ao trabalho. “Expedem-se recomendações aos Municípios e às unidades de saúde, realizam-se audiências coletivas e fiscaliza-se o cumprimento das recomendações. Em caso de descumprimento, instaura-se inquérito civil em face do resistente. Outro projeto diagnostica óbitos a partir de múltiplas fontes, demonstrando que as CATs emitidas representam percentual baixíssimo no total de óbitos ocorridos”, completa.

A discrepância presente entre os números apresentados pelo INSS e o que é observado e estimado por especialistas, atrapalha a produção de informações essenciais para a formulação de políticas públicas. A falta de indicadores precisos sobre o tema dificulta a visão das necessidades da sociedade e a fiscalização dos serviços de segurança e saúde do trabalhador é prejudicada.