A beatificação de D. Romero. Uma vitória para o Papa Francisco

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23 Mai 2015

Foto: www.catholicherald.co.uk

A beatificação no dia de hoje, 23 de maio, de D. Oscar Romero, é uma demonstração da natureza radical da revolução que o Papa Francisco está realizando", afirma Paul Vallely, em comentário publicado no jornal The New York Times, 22-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Paul Vallely é professor de ética pública na University of Chester, na Inglaterra, e autor da biografia “Pope Francis: The Struggle for the Soul of Catholicism”, a ser publicado em breve. Ele também é autor de uma biografia muito comentada do Papa Francisco. Trata-se do livro Pope Francis: Untying the Knots. London: Bloomsbury, 2013.

Segundo ele, "a beatificação de Oscar Romero é, pois, motivo para um regozijo duplo. Ela honra um homem cujo amor pela justiça e o foco nos pobres eram uma manifestação direta de sua fé. Mas ela também revela que, com a chegada do Papa Francisco, algumas das forças das trevas que se esconderam no Vaticano nas décadas recentes foram, finalmente, derrotadas".

Eis o comentário.

O arcebispo assassinado Oscar Arnulfo Romero está na reta final de um caminho tortuoso para a santidade com a realização de sua beatificação neste sábado. Esta ocasião fez se realizarem celebrações da mais alta ordem em El Salvador, sua terra natal. Porém o evento envolve um regozijo muito mais amplo – pois revela uma vitória contra algumas influências malignas de dentro da Igreja e dá provas da natureza radical da revolução que o Papa Francisco está forjando em Roma.

Dom Romero foi atingido e morto no altar enquanto celebrava missa em San Salvador no ano de 1980. O seu assassino fazia parte de um dos esquadrões da morte que davam sustentação a uma aliança pecaminosa entre proprietários de terras, o exército e segmentos da Igreja Católica no momento em que o país se movia em direção a uma guerra civil. O crime do arcebispo havia sido ordenar que os soldados parassem de matar civis inocentes. A elite de extrema-direita viu-o como um apologista da revolução marxista – uma difamação que indivíduos da alta hierarquia vaticana alimentaram durante três décadas e que, agora, o Papa Francisco finalmente silenciou.

A principal preocupação de tais críticos era que esta sua canonização acabasse sendo um endosso eficaz para Teologia da Libertação; muitos temiam que ela iria permitir a infiltração do comunismo na América Latina. Tal pensamento era uma caricatura intencional do movimento que sustentava a ideia segundo a qual os Evangelhos carregam uma “opção preferencial pelos pobres” e insistia que a Igreja tinha o dever de trabalhar pela libertação social e econômica dos oprimidos bem como pelo seu bem-estar espiritual. Esta representação equivocada alcançou o seu ápice nas calúnias grosseiras perpetradas contra o arcebispo, tanto durante a sua vida quanto depois da sua morte.

Quando se tornou arcebispo de San Salvador, a oligarquia do país esperava que o Dom Romero fosse um prelado de confiança. A sua formação era a de um religioso conservador e a sua espiritualidade baseava-se naquela do Opus Dei, grupo de sacerdotes e leigos profundamente tradicionais. Porém ele ficou indignado com a violência crescente contra os pobres e contra os que os defendiam.

Dentro de algumas semanas depois da sua instalação como arcebispo, um de seus sacerdotes – um amigo próximo, o padre Rutilio Grande – foi assassinado por apoiar alguns camponeses que protestavam pela reforma agrária e por melhores salários. Vários sacerdotes foram mortos depois disso, embora em 1979 estes formavam somente uma pequena parcela das 3 mil pessoas, em princípio, assassinadas todos os meses no país. Quando um jornalista perguntou sobre o que fez na qualidade de arcebispo, Romero respondeu: “Eu recolhi os corpos”.

Na medida em que a violência piorava, Dom Romero se tornava mais crítico em seus sermões, os quais eram transmitidos em rede nacional. Neles, o religioso condenava a opressão e dizia às pessoas que Deus estava com elas.

Ainda que Dom Romero não fosse um teórico da libertação, Dom Vincenzo Paglia, o principal defensor da causa da canonização, chamou-o de “mártir da Igreja do Concílio Vaticano II” porque a sua decisão de “viver com os pobres e defendê-los da opressão” advinha diretamente dos documentos do Vaticano II.

Tampouco era ele um teórico marxista. Em um sermão de 1978, disse: “Uma Igreja marxista não seria só autodestrutiva, mas também sem sentido”, pois “o materialismo destrói o significado transcendente da Igreja”.

Este era, porém, um ambiente no qual qualquer um que levantasse a voz em nome da justiça acabava sendo rotulado como comunista.

As elites sociais, militares e eclesiásticas de El Salvador estavam profundamente infelizes com o arcebispo. As 14 famílias que controlavam a economia e que faziam grandes doações à Igreja enviavam um fluxo constante de queixas a Roma. Elas acusavam Dom Romero de se intrometer na política, ratificando o terrorismo e abandonando a missão espiritual da Igreja de salvar almas. Quatro bispos, preocupados que o arcebispo estava questionando os laços deles com a oligarquia, começaram a se manifestar, com virulência, contra ele.

Os diários copiosos de Dom Romero desmentem todas as afirmações feitas pelos seus críticos. O mesmo fez o dossiê que ele deu ao Papa Paulo VI em uma audiência privada, que terminou com o pontífice instando-o: “Coragem! Ânimo. Tu és o responsável”.

No entanto, Dom Romero percebeu uma mensagem muito diferente quando foi chamado a Roma pelo Cardeal Sebastiano Baggio, então prefeito da Congregação para os Bispos. Este cardeal falou que ele estava com um volume sem precedentes de queixas contra Dom Romero. O despacho de acusação estava cheio de alegações ferozes e distorções perniciosas, e Dom Romero ficou angustiado porque o cardeal tinha claramente acreditado nelas. De novo, ele foi até o papa, que novamente o instou: “procede com coragem”.

Mas o papa seguinte, João Paulo II, tinha pouco conhecimento sobre a América Central e confiou no conselho de autoridades curais hostis ao arcebispo. O Cardeal Baggio enviou um inspetor vaticano a El Salvador, que recomendou destituir Romero de suas funções. O arcebispo apelou a João Paulo II, que pediu que seus críticos moderassem em suas atitudes para com o prelado.

Após o assassinato, os seus inimigos deram início a três décadas de manobras que buscavam evitar que ele fosse declarado oficialmente santo. Uma série de táticas foram postas em prática para impedir que isso acontecesse, tudo liderado pela mesma pessoa que havia recebido a tarefa de defender a causa [de beatificação] de Dom Romero: o Cardeal Alfonso López Trujillo, religioso colombiano profundamente avesso à Teologia da Libertação. Anos se passaram enquanto as autoridades vaticanas examinavam os escritos de Dom Romero em busca de erros doutrinais. Quando nada encontraram aqui, os críticos mudaram de posição para argumentar que ele – Dom Romero – não havia sido morto por sua fé, mas por suas “declarações políticas”.

Os que apoiavam Dom Romero culpavam os papas conservadores, que seriam contrários à Teologia da Libertação, mas isso não é justo. Em 1997, João Paulo II condecorou Romero com o título de Servo de Deus e, em 2003, disse a um grupo de bispos salvadorenhos que o prelado centro-americano era um mártir.

Em 2007, Bento XVI chamou-o de “um homem de grande virtude cristã”. E acrescentou: “Que Romero como pessoa merece a beatificação, eu não tenho dúvida”. (Esta última frase foi estranhamente cortada da transcrição disponível no sítio do Vaticano.) Um mês antes de renunciar, Bento XVI deu ordens para que o processo de canonização de Dom Romero fosse desbloqueado.

Foi a chegada do Papa Francisco – que prontamente engendrou uma reaproximação entre o Vaticano e a Teologia da Libertação – o que finalmente fez as coisas andarem. A causa de Dom Romero, disse ele aos jornalistas, estava “bloqueada na Congregação para a Doutrina da Fé ‘por prudência’”. Mas acrescentou: “Para mim, Romero é um homem de Deus”.

Nesse sentido, o organismo competente dos teólogos declarou, universalmente, que Dom Romero não havia sido morto por motivos políticos, mas tinha de fato morrido por causa do odium fidei – ódio à fé. Francisco prontamente o declarou mártir, e o caminho para a santidade estava aberto.

Para o Papa Francisco, esta ação era algo evidente. Ele disse, em seu segundo dia de como papa, que queria uma “Igreja pobre para os pobres”. E escreveu, em seu documento Evangelii Gaudium: “Há que afirmar, sem rodeios, que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres”.

A beatificação de Oscar Romero é, pois, motivo para um regozijo duplo. Ela honra um homem cujo amor pela justiça e o foco nos pobres eram uma manifestação direta de sua fé. Mas ela também revela que, com a chegada do Papa Francisco, algumas das forças das trevas que se esconderam no Vaticano nas décadas recentes foram, finalmente, derrotadas.

Nota: A fonte da segunda imagem é: ncronline.org

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