16 Fevereiro 2015
Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, comenta o parecer assinado por Ives Gandra da Silva Martins, sustentando juridicamente a possibilidade de impeachment da presidente da República.
Eis o artigo.
Embora a Petrobras não seja o Brasil, a onda de divulgação dos escândalos que envolvem a empresa está crescendo tanto que já se antecipa, para grande parte dos chamados formadores de opinião na mídia, e para a política de oposição a presidenta, estar ela envolvida nesse tsunami e poder ser alvo de um impeachment.
Em 26 de janeiro passado, um parecer assinado por Ives Gandra da Silva Martins, essa possibilidade é sustentada juridicamente. Um resumo do mesmo também já circula em vários sites.
Nas extensas razões do parecerista, robustecidas por citações doutrinárias de trabalhos seus anteriores, antecedentes jurisprudenciais direta ou indiretamente relacionados com impeachments, argumenta ele como hipótese de instauração desse processo contra a presidenta, se não agiu com dolo (propósito voluntário de agir como agiu, na origem ou no desenvolvimento dos fatos agora investigados criminalmente, pela polícia federal), agiu com culpa - ter-se omitido em responsabilizar quem foi responsável pelos fatos agora investigados, seja negligência, imperícia, ou imprudência.
Uma afirmação inicial do Dr. Ives chama bastante a atenção de qualquer leitor/a. Ele afirma estar agindo sem nenhum propósito político, nem ideológico. Sabendo-se que qualquer lei é expressão de poder político, sua interpretação nunca poder se separar de algum efeito desse poder, seja para acentuá-lo, seja para negá-lo, é difícil aceitar-se que o parecerista imagine tão ingênuas as pessoas que lerão seu parecer ao ponto de desconsiderarem o poderoso gatilho oferecido à oposição política da presidenta para desencadear o processo de impeachment no Congresso. Se é que as reações dos quartéis, igualmente - isso é o pior - por tudo o que se viu e ouviu de ressentimento e raiva contra os trabalhos e as conclusões das Comissões da Verdade, não estejam considerando no referido parecer outro valioso apoio à espreita de alguma nova intervenção sobre a democracia do país.
Para sustentar a possível improbidade administrativa da presidenta, Dr. Ives se dedica com muita ênfase, surpreendentemente, a ver uma analogia, em matéria de julgamento possível sobre improbidade, entre os seus atos de governo e os atos das direções de empresas. É como se fosse possível comparar a unção do voto popular, em duas eleições seguidas dada à presidenta, com a dos conselhos de administração das empresas, ou suas assembléias de acionistas. Quase assim como afirmar, no caso Petrobras, ter havido apenas corruptos e nenhum corruptor e a iniciativa das prisões de empresários não tivesse provado o contrário. Para quem se afirma sobrepairar num plano assepticamente isento de interesse político ou ideológico, não há confissão mais explícita de fidelidade político-ideológica ao capital e ao mercado do que essa, como se neles pudessem ser buscados exemplos de punição exemplar da falta de probidade.
O Estado funcionar como funcionam as empresas, como desejam muitos empresários, não é coisa estranha a muitas/os doutrinadoras/es do direito. O mercantilismo de ontem e a globalização de hoje fazem prova disso, não podendo se desprezar a hipótese de o parecer, ao confundir a Petrobrás com o país, ter alavancado um conhecido e antigo projeto econômico-político de alcançar-se a sua privatização. Por tudo o que se lê no seu arrazoado seria muito difícil imaginar que uma ação lesa-pátria como essa fosse considerada culposa por parte de algum/a presidente da República que a promovesse.
É do parecer mesmo o reconhecimento de que Dilma Rousseff, durante o governo Lula, foi presidenta do Conselho de Administração da Petrobras. A valer a sua argumentação, se o tal colegiado não viu improbidade em seus atos à frente da empresa naquela época, o Dr. Ives teria de aceitar, fiel ao recurso analógico da sua postura interpretativa da lei, que a possível improbidade da presidenta, não foi reconhecida pelo Conselho de Administração da empresa, à época.
Então, como é que agora, essa improbidade, rejeitada de novo e expressamente pelo voto do povo, por sinal atordoado e ilegalmente advertido por grande parte da mídia que corria o risco de eleger uma ladra criminosa, mostrou sua confiança em duas eleições sucessivas, precisa impor ao país ser novamente posta em causa? Não sendo a Petrobras o Brasil, como a “a ameaça comunista” não era em 1964, qual a razão de se armar juridicamente os brucutus para sairem de novo as ruas para impor outras leis, as da pura violência e força repressoras e opressoras do povo?
Queira ou não, portanto, ideológica e política a interpretação que ele faz da lei também é, por mais de uma pista que a sua argumentação deixa no caminho das conclusões do seu estudo. Até um detalhe aparentemente insignificante oferece mais uma prova. O da lembrança de um dos mandamentos por ele redigidos as/os suas/seus alunas/os. Recomendou se inspirassem no espírito de El Cid.
Que coisa bem desprositada para se aconselhar a juventude que estuda direito no Brasil. O parecerista demonstra quão importada e eurocêntrica é a sua visão da realidade, do mundo e do direito. Como se nós não dispuséssemos aqui do negro Zumbi, do índio Sepé Tiaraju, de Tiradentes, de Margarida Alves, do Padre Josimo, de Rubem Paiva, de Frei Tito e de tantos outros heróis populares para oferecer como exemplos históricos e até de martírio em defesa da vida, da liberdade, do direito, da verdade, da justiça, do amor e da paz, muito superiores ao de El Cid.
Não é de admirar, por tudo isso, encontrar-se no próprio juramento de fidelidade exclusiva à lei feito pelo parecerista, uma grave desobediência à própria Constituição Federal, que ele tanto lembra como base incriminatória da presidenta. Ao concluir como caracterizada a sua culpa, já antecipa a condenação de Dilma Rousseff mesmo que as provas, a respeito, estejam ainda sendo apuradas e ela nem tenha tido oportunidade de usar do seu direito de defesa, um dos fundamentos mais importantes do nosso ordenamento jurídico constitucional e processual (art. 5º, inciso LV).
Em vez de valorizar tanto o seu currículo e os seus muitos títulos acadêmicos deveria ter comparado tudo com a vida dela e avaliado, humildemente, quem até agora fez mais e melhor pelo Brasil, um país e um povo que, felizmente, não são uma empresa.