Dez anos após morte da ovelha Dolly, previsões de clonagem de seres humanos não se realizaram

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18 Fevereiro 2013

Quando a ovelha Dolly morreu, há dez anos, o campo da clonagem que ela mesma havia inaugurado seguia um curso tão delicado e tranquilo quanto uma manhã de primavera, a ponto de que a maior polêmica do momento versou sobre a esperança de vida das ovelhas na Europa e a conveniência ou não de mantê-las em estábulo nos climas úmidos do fiorde de Forth. O famoso ovino escocês mal podia suspeitar que, no próprio momento em que exalava seu último suspiro, um veterinário coreano chamado Hwang Woo-suk maquinava um dos planos mais audazes e maquiavélicos da história da ciência; que só um ano depois seria anunciada a primeira clonagem humana; em outro ano, os primeiros cultivos de células-tronco geneticamente idênticas a qualquer paciente; e em mais um que tudo isso era uma fraude monumental. Ah, meu Deus, se a ovelha Dolly levantasse a cabeça.

A reportagem é de Javier Sampedro, publicada no jornal El País e reproduzida pelo portal Uol, 17-02-2013.

O falecido ovino, por outro lado, esteve prestes a ganhar o último Prêmio Nobel de Medicina. Em vez de premiar o criador de Dolly, o embriologista Ian Wilmut, do Instituto Roslin de Edimburgo, a Academia sueca preferiu premiar sua causa e efeito, por assim dizer: John Gurdon, que nos anos 1970 clonou o precedente de Dolly - uma rã sem nome que não ganhou as manchetes da época - e Shinya Yamanaka, que conseguiu nos últimos anos um tipo de células-tronco (células iPS) geneticamente idênticas a qualquer paciente e que constituem a grande promessa atual da medicina regenerativa. Wilmut, em meio a esses dois sucessos, ficou sem prêmio Nobel, embora hoje se chame "sir" Ian Wilmut, o que é quase mais importante em alguns círculos britânicos.

Depois de viajar no tempo e destruir o mundo, a clonagem representa seguramente um dos maiores clichês sobre o mito do cientista louco que vem à cabeça de qualquer pessoa, e clonar ovelhas já parece uma brincadeira. Essas duas - o alarme ético e a piada fácil - foram de fato as reações mais comuns provocadas pelo nascimento de Dolly, em fevereiro de 1997. É muito compreensível, e o próprio Wilmut contribuiu não pouco para isso com seu estilo distante, abstrato e um pouco brincalhão.

Como material de partida, por exemplo, o pesquisador escocês não utilizou uma ovelha viva - que teria passado à história como a mãe genética de Dolly ou como o original do qual se tirou a fotocópia -, e sim um pedaço insubstancial de glândula mamária guardado em um congelador de seu laboratório.

Esse planejamento experimental descuidado ajudou a provocar, dentro e fora da comunidade científica, atitudes céticas que demoraram anos para desaparecer totalmente. O próprio nome da ovelha é uma piada um tanto grosseira sobre a origem mamária de seu genoma e as medidas da cantora americana de música country Dolly Parton.

Mas, longe dos refletores e a resguardo das piadas verdes, os biólogos do desenvolvimento receberam a experiência de Wilmut sinceramente deslumbrados: até esse momento haviam permanecido confusos sobre uma questão central de sua disciplina.

O corpo é feito de trilhões de células - neurônios no cérebro, glóbulos brancos no sangue, hepatócitos no fígado -, e todas elas provêm de uma única, o zigoto que resulta da fusão de um óvulo e um espermatozóide. O problema central da biologia do desenvolvimento é entender como esse único genoma original se especializa no genoma de um neurônio, de um glóbulo branco ou de um hepatócito, que fazem coisas tão diferentes.

Os cientistas tentavam há décadas clonar mamíferos de todo tipo e haviam fracassado tantas vezes que, nos anos 1990, se convenceram de que suas falhas queriam dizer algo: que o desenvolvimento se baseava em mudanças irreversíveis no genoma das células; que nas células do adulto não havia nenhum genoma original intacto, mas sim genomas de neurônio, de glóbulo branco ou de hepatócito; que o desenvolvimento era uma rua de mão única; e que esse seria o resultado de seu experimento.

Por isso Dolly foi tão importante cientificamente. Todo o seu genoma provinha de uma célula adulta especializada em produzir leite; mas era óbvio que esse genoma estava intacto o suficiente para recapitular o desenvolvimento inteiro, já que Dolly tinha neurônios, coração, fígado e tanta lã quanto qualquer outra de sua raça, que certamente era um híbrido de finlandesa e dorset. A mera existência de Dolly refutou a teoria prevalecente sobre o desenvolvimento humano, e portanto reconduziu toda a experimentação do campo.

Durante a vida de Dolly, Wilmut se pronunciou vigorosamente a favor das aplicações clínicas da clonagem, como fizeram muitos outros cientistas em todo o mundo, e usou seu prestígio para convencer o governo britânico a promover as regulamentações necessárias. Mas o estilo indolente ou desalinhado que havia mostrado quando nasceu a ovelha pareceu ressurgir quando o animal morreu em 2003, aos seis anos.

Há mitos científicos populares quase impossíveis de erradicar. As vacinas matam crianças, os transgênicos dão alergia, a gripe A foi uma invenção da Organização Mundial da Saúde em conluio com a indústria farmacêutica. Outro deles é que a ovelha Dolly sofreu uma morte prematura, pagando assim na própria carne pela arrogância e endeusamento de seus criadores, não é verdade? Não. A realidade é que Dolly morreu de um adenocarcinoma pulmonar ovino (OPA), um câncer de pulmão de origem viral muito comum em toda a Europa e que ataca as ovelhas jovens, muito antes de completarem os 11 anos que, na teoria, em condições ideais, alcançam os membros de sua espécie.

Pois Dolly morreu em 14 de fevereiro de 2003. Apesar de o mito da morte prematura ter-se propagado imediatamente, e apesar de isso projetar graves suspeitas sobre a segurança da clonagem e sua aplicação clínica, Wilmut não fez a menor questão de desmenti-lo durante as sete semanas seguintes. Em 3 de abril este jornal teve que lhe extrair a fórceps que "a morte de Dolly não teve nada a ver com sua clonagem". Quando lhe perguntei por que não havia dito nada até então, respondeu: "quisemos anunciá-lo no dia da morte e o veterinário nos dissuadiu. Queria ver antes a autópsia".

Esse é Wilmut. O veterinário o dissuadiu.

O experimento pioneiro de Wilmut foi só o primeiro de uma lista que já se torna longa. Por enquanto os cientistas conseguiram clonar cerca de 20 espécies animais, entre elas mamíferos como o gato e o rato, a ratazana e o veado, o porco e o coelho, a égua de corrida e o touro de lida. Alguns desses experimentos têm claros objetivos científicos, outros igualmente claros fins econômicos, e alguns se devem mais a uma espécie de mania clonadora, à necessidade de fazer algo pelo mero fato de que é possível fazer.

Apenas um ano depois da morte de Dolly, já acreditávamos dispor dos primeiros clones humanos, e não era verdade. Não havia tal coisa, e continua sem havê-la; inclusive é possível que não faça falta, a menos até que Dolly levante a cabeça.

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