06 Outubro 2012
No itinerário de conhecimento e de interpretação do Concílio, o Vatican Insider recolheu o testemunho do professor Massimo Faggioli, ex-membro da Fundação para as Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, que hoje leciona história do cristianismo na University of St. Thomas, em Minneapolis/St. Paul (EUA).
A reportagem é de Luca Rolandi, publicada no sítio Vatican Insider, 04-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Entre as suas publicações, encontram-se: Breve storia dei movimenti cattolici (Roma: Carocci, 2008; Madri: PPC, 2011); Vatican II: The Battle for Meaning (Nova York: Paulist, 2012); True Reform: Liturgy and Ecclesiology in "Sacrosanctum Concilium" (Collegeville: Liturgical Press, 2012).
Eis a entrevista.
A 50 anos da abertura, o que o Concílio deixou de herança para a Igreja de hoje? Celebrar ou viver o Vaticano II?
O Vaticano II deve ser celebrado como um modo de compreender como ele ajudou a Igreja a se encontrar melhor com o mundo moderno. O Concílio deixou como herança a melhor teologia do período posterior à era tridentina: não só quanto a conclusões referentes a questões específicas, mas especialmente com relação ao método teológico. O método teológico do Concílio – atenção à história, valor da experiência – é irrenunciável. No plano da fé vivida, os católicos de todo o mundo vivem o Vaticano II todos os dias, mesmo que às vezes de maneira inconsciente: escolher celebrar o Concílio a 50 anos da sua abertura implica a possibilidade de se tornar mais conscientes da própria teologia prática, assim como das questões que foram deixadas irresolvidas pelo Concílio e que esperam por uma resposta.
No debate historiográfico e teológico, divergem os defensores do termo "evento" daqueles que preferem "acontecimento". Distinção terminológica ou interpretações profundamente diferentes?
Eu acredito que a categoria de "evento" é a melhor para compreender o Concílio, porque "evento" dá conta não só da descontinuidade introduzida pelo Concílio com relação à Igreja do início do século XX, mas também das consequências epocais do Concílio na Igreja global. Na história da Igreja, os acontecimentos são muitos, mas os eventos carregados de consequências como o Vaticano II são poucos, e o Vaticano II certamente é um evento único nos últimos quatro séculos de história da Igreja.
As interpretações históricas, as hermenêuticas, ruptura, descontinuidade ou reforma, os tempos longos da recepção. Qual a sua avaliação?
O debate sobre o Concílio Vaticano II mudou graças à História do Concílio Vaticano II em cinco volumes, dirigida por Giuseppe Alberigo: agora, a Igreja e os historiadores sabem muito mais do que antes, e não é fácil para a instituição gerir essa nova consciência histórica. Vimos, nos últimos anos, um ressurgimento das tentativas (uma vez apanágio apenas dos lefebvrianos) de ver no Concílio um momento de ruptura total com o passado, e, portanto, de desqualificar não só o seu valor, mas também a sua legitimidade. O Vaticano II tem elementos de continuidade com a grande tradição da Igreja e elementos de descontinuidade – ambos: por isso, opor continuidade a descontinuidade não faz sentido, e o papa, de fato, no seu discurso de dezembro de 2005 falou da "hermenêutica da reforma".
Mas não há dúvida de que, se quisermos compreender o valor do Vaticano II, é preciso compreender as descontinuidades com o período anterior. Negar as descontinuidades ou acusar as descontinuidades de terem danificado a Igreja equivale a rejeitar o valor do Concílio e desconhecer o fato de que a recepção de todo Concílio da Igreja com um valor epocal como o Vaticano II (e como Trento) é medido em gerações, e não em anos. Dito isso, as aquisições fundamentais do Concílio já penetraram na teologia católica, e o passar dos anos confirma a sua validade. Voltar atrás é um sonho de alguns que poderia se transmutar em um pesadelo, especialmente para os católicos não europeus.
Um Concílio ecumênico: quais foram as grandes novidades que mudaram o modo de ser da Igreja, sobretudo para os nativos conciliares e para aqueles que só ouviram falar do Vaticano II? Quando as testemunhas desaparecerem, o que restará?
A prioridade da Escritura na vida da Igreja, a redescoberta da tradição patrística, a reforma litúrgica para a participação ativa dos fiéis, uma nova relação Igreja-mundo, uma nova visão das relações com os cristãos não católicos com os não-cristãos e a afirmação da liberdade religiosa: esses elementos fundamentais são irrenunciáveis e não se volta atrás. Isso já faz parte do catolicismo contemporâneo e se deve ao Concílio, embora os mais jovens corram o risco de dar como óbvias essas aquisições. As testemunhas estão desaparecendo, e o seu testemunho deve ser recolhido, preservado e bem utilizado. Mas algumas das melhores testemunhas da Igreja do Vaticano II não foram padres conciliares e não fizeram parte do Concílio, como por exemplo o cardeal Martini, Dom Romero, Dorothy Day.
Encontro universal da Igreja, perspectiva pastoral, reconciliação com o mundo e a modernidade, respeito pela tradição atualizada para os sinais dos tempos. Conceitos expressos várias vezes que muitos custam a compreender hoje.
A dificuldade para compreender esses conceitos deriva, de um lado, do medo que vem da atual crise do Ocidente e, por outro lado, deriva da negação de uma das perspectivas fundamentais do Concílio, ou seja, a supremacia do Evangelho sobre a "cultura". Vivemos em um período de redefinição dos pertencimentos individuais e coletivos: percebemos a "cultura" ocidental-europeia em perigo, e o instinto é de usar a religião como escudo, porque ainda resiste a ideia de que a cultura europeia é o pressuposto cultural do catolicismo, senão até do cristianismo. Mas o catolicismo é global (e desde antes do Vaticano II: o Concílio tirou as consequências teológicas disso), e identificar a Igreja com uma cultura é um ato de infidelidade ao Evangelho.
A vivência da Igreja e o Concílio: mais do que as disputas históricas e teológicas, valem as experiências das comunidades, o testemunho de leigos e religiosos, pessoas que aplicaram o Concílio em suas vidas.
A herança do Concílio Vaticano II permanece, mas hoje alguns tentam pô-la em discussão. Alguns deles de maneira ingênua ("O Vaticano II enfraqueceu a Igreja"), outros de maneira ideológica ("Para resistir à decadência do Ocidente, é preciso dar novamente à Europa a muleta moral de um catolicismo antimoderno"), outros ainda por vício elitista (como os Roberto Calasso, os Elémire Zolla, um certo catolicismo anglófono). Muitas forças que se opõem à visão do Concílio estão trabalhando para apagar a sua visão e os seus frutos. Por isso, as reformas do Concílio, sem falar do chamado à reforma contínua, não podem ser dadas como óbvias. Nesse sentido, o testemunho daquela parte da Igreja que não tem poder (leigos, religiosas) é particularmente importante para compreender o valor do Vaticano II.