Trento, o Concílio mais imaginado do que conhecido

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28 Fevereiro 2011

"Hoje há uma mentira que percorre o catolicismo romano e se refere à tradição. Ela implica, por sua vez, em duas mentiras sobre dois grandes Concílios, o Tridentino e o Vaticano II."

A opinião é Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano e professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 27-02-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Há um laço indissolúvel que, na vida das comunidades cristãs, liga renovação e tradição, disciplina e reforma, obediência e profecia: não o equilíbrio estático de uma fé que, como um faquir, senta impassível sobre os joelhos do tempo, mas a vitalidade de um equilíbrio dinâmico, perfeitamente relevável ao trabalho histórico e ao mesmo tempo acessível ao intuito espiritual mais simples.

Esse equilíbrio vivo não sofre, mas, ao contrário, se alimenta das crises e, portanto, não tem medo das acelerações, assim como não se deixa impressionar pelas fases de discernimento. A única coisa da qual sofre é a mentira. E hoje há uma mentira que percorre o catolicismo romano e se refere à tradição. Ela implica, por sua vez, em duas mentiras sobre dois grandes Concílios, o Tridentino e o Vaticano II.

Os lugares em que essa mentira se consome são múltiplos. O missal de Paulo VI é um deles: é contraposto de modo artificioso ao missal de São Pio V, como se aquele do século XVI – um missal de emergência, imposto à variedade e à riqueza dos ritos latinos para marcar de modo uniforme e palpável a diferença com os protestantes – fosse a tradição; e, ao contrário, faz-se passar o missal de Paulo VI, que recupera ao rito romano a grande tradição do primeiro milênio, como um missal modernizado e, portanto, a ser relativizado todas as vezes que isso for possível.

O Vaticano II é um outro lugar em que são praticadas confusões e malícias: picotando uma fórmula papal (continuidade e reforma contra descontinuidade e ruptura), até fazer dela a clava de um maniqueísmo vermelho continuidade/descontinuidade que é insultante atribuir à fineza intelectual de Ratzinger.

E depois está o Concílio de Trento: um Concílio imaginado, mais do que conhecido, como ocorre também com o Vaticano II (com a única variável de que, enquanto já é normal citar o máximo historiador Hubert Jedin do evento do século XVI, sobre o grande Concílio do século XX se omite a citação do trabalho de Giuseppe Alberigo...).

Sobre o Concílio de Trento, hoje aparece o livro Il paradigma tridentino. Un’epoca della storia della Chiesa, de Paolo Prodi (Ed. Morcelliana, 229 p.). O trabalho é de um grande mestre que relê o Concílio não na sua sequência factual, mas nas grandes estruturas intelectuais e políticas que formam um paradigma em cujo exaurimento se insere a "mudança epocal" do Vaticano II: a profissão de fé, a prática do poder, o exercício da jurisdição, a disciplina do clero e do povo, o caminho da santidade e da missão.

Esses pontos são lidos com uma minúcia teológica e política sempre declarada. E que se refere a algumas teses fortes e de grande significado: duas me parecem ser dominantes. A primeira é que a reviravolta do século XI, a "gregoriana", e dois séculos depois a descoberta de Aristóteles jogam as bases daquela autonomia do mundo que se torna a modernidade. Aqui, Prodi encontra a explicação da "paradoxal coincidência entre os defensores de uma modernidade fruto do triunfo da razão sobre a tradição judaico-cristã e os inimigos da modernidade que fazem referência à mesma tradição", embora, acrescentaria, com fins impuros.

A segunda tese se refere à forma de "Estado soberano", elaborada pela Igreja romana para a sua própria "libertas", que se torna a matriz da soberania estatal como tal e que, no fim, sobrevive, justamente hoje – apesar de que se possa dizer que o paradigma tridentino está exaurido ou talvez justamente porque ele se exauriu! – na "gestão do poder": para Prodi, portanto, "o recurso sempre mais frequente ao Estado para transformar o pecado em crime produz uma contradição que se retorce justamente contra a capacidade da Igreja de gerar normas vinculantes à consciência dos seus próprios membros" e faz dela a "agência ética" sob os riscos da qual o Papa é colocado em guarda. Uma reflexão, portanto, que se destaca da lamúria a duas vozes – a Igreja diz que não, mas quer a teocracia, a sociedade diz que não, mas quer apagar a Igreja da vida pública – do nosso debate político e historiográfico e faz pensar: o único grande antídoto contra a mentira hoje disponível.

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