A história por trás do atrito de Francisco com a EWTN

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

01 Outubro 2021

 

O Papa Francisco foi manchete na última semana quando criticou aqueles que atacaram seu papado na mídia, chamando os ataques de “o trabalho do diabo”. Os comentários foram amplamente interpretados para ser uma referência a EWTN, a maior rede de televisão católica no mundo, a qual dá plataforma para alguns dos maiores críticos do Papa Francisco.

Isso talvez surpreenda muitas pessoas. Como foi dito no podcast Jesuitical, da America, na semana passada, para muitos dos jovens adultos a EWTN “é onde a vó assiste à missa e reza o rosário”.

Então, como uma emissora católica de televisão, conhecida por seus programas de oração, se envolve em ataques contra o Papa que ele sente compelido a publicamente denunciar como “o trabalho do diabo”?

Para entender isso, vamos olhar para as origens da rede.

A reportagem é de Colleen Dulle, publicada por America, 30-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

A “imagem dominante da Igreja na televisão americana”

 

A Eternal World Television Network (EWTN) foi fundada pela Madre Angelica, uma irmã da Ordem das Clarissas, que também fundou um mosteiro no Alabama com o objetivo de “recrutar irmãs negras para a vida contemplativa”. De acordo com o biógrafo de Madre Angelica, o âncora da EWTN, Raymond Arroyo, as irmãs mantiveram suas missões pastorais para a comunidade negra secretamente para não atrair a ira do Ku Klux Klan, que atacava afro-americanos e católicos. A missão é mencionada por Arroyo na biografia quando ele escreve sobre um incidente ocorrido dois anos depois da fundação do mosteiro, quando o KKK mata quatro jovens negras na Igreja Batista da 16th Street, em Birmingham, Alabama: “para Madre Angelica, essa era uma memória angustiante da primeira inspiração para seu mosteiro, que falhou em dar frutos. Então, o objetivo de estabelecer uma fundação contemplativa para negras foi se perdendo no caminho”, escreveu Arroyo. O carisma original da comunidade não é mencionado novamente na biografia.

Neste ponto, Madre Angelica já estava começando a desenvolver uma sequência de conversas gravadas sobre espiritualidade. Essas cresceriam em livros espirituais e participações sobre cristianismo nos canais de televisão até 1980, quando a Madre Angelica então fundou a EWTN. A nova rede começou sendo transmitida de um estúdio de garagem, em Irondale, Alabama, em 1981. A programação de quatro horas por dia incluía o talk-show da Madre AngelicaMother Angelica Live” e a transmissão de uma Missa Dominical, e também reproduzia conteúdo católicos, como o programa “Life is Worth Living” do padre Fulton Sheen, seculares, como “The Bill Cosby Show”, e protestantes – sempre sob aprovação de Madre Angelica. A reza do rosário iniciou em 1987, e a transmissão diária de missas em 1991.

 

Enquanto a rede de Madre Angelica se expandia, os bispos dos EUA decidiram tentar desenvolver uma rede concorrente. De 1982 a 1994, a Conferência Nacional de Bispos Católicos (uma precursora da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA) investiu 30 milhões de dólares na Catholic Telecommunications Network of America, de acordo com um artigo do New York Times, de 1997. A tentativa dos bispos de passar para a transmissão de televisão falhou porque “não foi capaz de se adaptar rapidamente ao seu ambiente”.

Parte desse ambiente em mudança foi uma mudança decisiva na direção da EWTN, desencadeada por uma exibição das Estações da Cruz na Jornada Mundial da Juventude de Denver, em 1993, quando uma jovem foi escolhida para retratar Jesus. No dia seguinte, Madre Angelica foi ao rádio para denunciar a exibição como “uma abominação para o Pai Eterno” e continuou com uma crítica de trinta minutos à “igreja liberal na América” e às reformas que se seguiram ao Concílio Vaticano II.

“Todo o seu propósito é destruir”, disse Madre Angelica no programa “Mother Angelica Live”. “É hora de alguém dizer algo sobre todas essas pequenas rachaduras que vocês têm colocado na Igreja nos últimos 30 anos”.

 

 

No mês seguinte, Madre Angelica e as irmãs em seu convento abandonaram seus hábitos modificados pós-Vaticano II em favor do estilo pré-Vaticano II. O conflito da Madre Angelica com os bispos também aumentou: tendo derrotado o esforço de transmissão dos bispos, a Madre Angelica tornou-se mais aberta contra os bispos em geral, que ela via como sendo muito liberais. A certa altura, ela pediu “obediência zero” ao cardeal Roger Mahony de Los Angeles depois que ele publicou uma carta pastoral sobre a liturgia, a qual Madre Angelica interpretou como insuficientemente enfática sobre a presença real de Cristo na Eucaristia.

As missas diárias transmitidas pela EWTN também deram uma guinada em direção ao mais tradicional, eliminando gradualmente a música contemporânea e incorporando mais latim. O conteúdo da rede, que inicialmente incluía a cobertura de iniciativas de justiça social e programação de inspiração ecumênica, acabou sendo dominado por programas sobre a doutrina católica.

Como o padre jesuíta James Martin escreveu em uma coluna sobre televisão na revista America em 1995, enquanto a EWTN era uma bênção para aqueles presos em casa que queriam orar junto com missas e rosários televisionados, também se tornou um lugar confiável onde a raiva contra “Igreja liberal” era transmitida regularmente. E embora, como o padre Martin apontou, “todos estão com raiva de alguma coisa na Igreja”, a raiva da Madre Angelica foi particularmente prejudicial porque sua imagem da Igreja – que o padre Martin descreveu como “amarga, intransigente, defensiva” – tornou-se a “imagem dominante da Igreja na televisão americana”. E assim continuou.

 

A EWTN hoje

 

Madre Angelica cedeu o controle da EWTN a um conselho de leigos em 2000, em meio a uma visitação apostólica do arcebispo de San Juan, dom Roberto González Nieves, que foi encarregado pelo Vaticano de investigar as propriedades da estação e seus laços com o mosteiro da Madre Angelica, bem como a autoridade de Madre Angelica sobre ambos. Seu relatório final nunca foi divulgado. No ano seguinte, após sofrer um derrame, a Madre Angelica também parou de transmitir seu programa, “Madre Angelica Live”. Ela passou o resto de sua vida no mosteiro de clausura que fundou e morreu em 2016.

Hoje, o domínio da EWTN nas ondas de rádio é evidente não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo – mesmo entre os bispos dos EUA que uma vez entraram em confronto com a estação. A EWTN é a maior rede de mídia religiosa do mundo, alcançando 250 milhões de pessoas em 140 países. Tem uma equipe de 30 pessoas cobrindo apenas o Vaticano, superando de longe outros meios de comunicação em língua inglesa, e possui outras publicações católicas, incluindo o jornal National Catholic Register e a Catholic News Agency, que compete nos Estados Unidos com o Catholic News Service, de propriedade dos bispos.

O National Catholic Register também é a publicação mais lida pelos bispos dos EUA, de acordo com uma pesquisa recente.

O legado de Madre Angelica na EWTN foi assegurado por um grupo de conservadores ricos, conforme a editora-chefe do National Catholic Reporter, Heidi Schlumpf, documentou em uma série investigativa de 2019 sobre a EWTN, mas continua mais visível pela atuação do herdeiro protegido e biógrafo da Madre Angelica, o âncora Raymond Arroyo, que apresenta o programa semanal “The World Over”. Ele também aparece regularmente no programa de Laura Ingraham na Fox News, ocasionalmente como apresentador.

Os comentários de notícias de Arroyo, assim como os de Madre Angelica, são críticos de quaisquer elementos “liberais” da Igreja e muitas vezes são apresentados como o ponto de vista de um “verdadeiro católico”, proferido com muito do mesmo sarcasmo pelo qual Madre Angelica foi elogiada por seus fãs. Num pontificado focado na implementação das decisões do Vaticano II e que muitas vezes priorizou o pastoral e o evangélico sobre o doutrinário, a antipatia de Arroyo, sem surpresa, se concentrou sobre o Papa Francisco.

Arroyo recorre a convidados para o seu programa que são proeminentes críticos do Papa Francisco, incluindo o cardeal Raymond Burke, que assinou a lista de “dubia” sobre a abertura concedida pelo Papa Francisco a divorciados e recasados católicos para receberem a comunhão em alguns casos, e o cardeal Gerhard Müller, o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que não teve seu mandato renovado por Francisco em 2017. Dois anos depois, o cardeal Müller publicou um “manifesto de fé” na Catholic News Agency, portal da EWTN, e outros meios que tem sido críticos do Papa, argumentando contra o ensino de Francisco sobre a comunhão para divorciados e recasados.

Em 2018, o ex-núncio apostólico para os Estados Unidos, o arcebispo Carlo Maria Viganò, publicou um (amplamente descreditado) documento bombástico na Catholic News Agency e outras mídias críticas do Papa Francisco, alegando que o Papa negligenciou abusos pelo ex-cardeal Theodore McCarrick e chamando o Papa a renunciar. Logo depois, o cardeal Müller apareceu no programa de Arroyo pedindo para o Papa “se reconciliar” com Viganò.

Outros convidados do programa de Arroyo incluem Joseph Shaw, o presidente da Sociedade de Missa Latina do Reino Unido, que assinou uma “correção formal” ao papa a respeito de seus ensinamentos sobre a Comunhão para divorciados e recasados, e Alexander Tschugguel, que roubou as estátuas de mulheres grávidas levadas pelos indígenas durante o Sínodo Pan-Amazônico e as jogou no rio Tibre, alegando falsamente que eram ídolos andinos.

Christopher Lamb, o correspondente do Vaticano para The Tablet, escreveu em The Outsider, seu livro narrando a resistência anti-Francisco: “Nesta batalha, seções da mídia católica se estabeleceram como uma autoridade paralela que julga, como um imperador romano dando a polegar para cima ou polegar para baixo, se Francisco está de acordo com sua compreensão da ‘verdade’ católica”.

Lamb também entrevistou Michael P. Warsaw, presidente e CEO da EWTN, para The Outsider. “Eu acredito que é injusto sugerir que ‘The World Over’ apresenta apenas convidados que são negativos sobre o Papa Francisco”, disse Warsaw a Lamb. “A natureza desse programa é examinar criticamente os eventos dentro e fora da Igreja em um formato semelhante aos veículos de notícias seculares, com vários convidados que oferecem suas próprias opiniões e perspectivas pessoais sobre os problemas do dia”.

Além disso, ele disse Lamb, “The World Over” não é necessariamente representativo de tudo o que a EWTN faz, chamando-o de “simplesmente um programa semanal no meio de uma rede inteira que consiste em muitos tipos diferentes de conteúdo”.

Warsaw também rejeitou as sugestões de que sua rede se opõe ao Papa como “simplesmente ridículo”, dizendo a Lamb que “estamos unidos ao Papa para acompanhar e levar as pessoas a compreenderem a beleza, a verdade e a bondade encontradas na Igreja”.

Arroyo também recebe regularmente a presença de um grupo que se autodenomina “The Papal Posse”, um grupo de comentaristas papais – composto por Gerald Murray, padre em Nova York, ex-capelão da Marinha dos Estados Unidos e advogado canônico, e Robert Royal, um escritor católico que fundou a think tank Faith and Reason Institute e o blog “The Catholic Thing” – que mescla as críticas uns dos outros e entrevista convidados anti-Francisco, como Steve Bannon, que argumentou no ar que sua própria política populista representa melhor o Ensino Social Católico do que o Papa Francisco faz.

Há alguma diferença entre isso e o ceticismo saudável que os jornalistas devem ter em relação aos que ocupam posições de autoridade? Na opinião de Lamb, a questão se resume à integridade jornalística. “Se uma organização de notícias publica o dossiê do arcebispo Viganò na íntegra, como fizeram o Lifesite News e o National Catholic Register, ela tem a responsabilidade de informar os leitores por que o estão fazendo e se foram capazes de verificar alguma das alegações”, ele escreveu.

O Papa Francisco disse em seus comentários recentes que sua principal preocupação não é que ele esteja sendo atacado pessoalmente, mas que as pessoas que se colocam como autoridades paralelas a ele ou ao Vaticano estejam dividindo a Igreja como um todo: “Eu pessoalmente mereço ataques e insultos porque sou pecador, mas a Igreja não os merece”. Nesse sentido, é notável que muitos dos ataques a Francisco tenham vindo de indivíduos e organizações, incluindo Arroyo e seus compatriotas da EWTN, que apoiavam entusiasticamente os papados de Bento XVI e de João Paulo II – e que foram, na verdade, muito cuidadosos em evitar criticar papas anteriores.

Esta realidade sugere que o sarcasmo público e o animus contra Francisco estão a serviço de uma agenda maior em vigor na EWTN, ainda alinhada com a desconfiança de Madre Angelica sobre o Vaticano II e aqueles na Igreja de quem ela disse que “todo o propósito é destruir”.

 

Leia mais

 

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

A história por trás do atrito de Francisco com a EWTN - Instituto Humanitas Unisinos - IHU