Transformações de hábitos indígenas trazem doenças metabólicas a povos originários. Entrevista especial com João Farias Guerreiro

Professor observa que problemas como diabetes e hipertensão não fazia parte da realidade dos índios antes de absorverem práticas e hábitos do “homem branco”

Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 07 Junho 2022

 

Não seria exagero ponderar que desde que o primeiro homem branco pisou em terra indígena os problemas para esses povos originários nunca cessaram. Mesmo se abstrairmos os confrontos e disputas políticas pela terra e direitos constitucionais, veremos que alguns dos piores presentes trazidos pelas populações europeias foram vírus, bactérias e outros vetores que promoveram uma dizimação de muitos indígenas. Mas, ainda hoje, não é só isso que tem impactado na saúde dos índios. A incorporação de hábitos alimentares “dos brancos”, assim como o sedentarismo e a substituição de trabalhos que exigem atividade física por uso de máquinas tem trazido também as chamadas doenças metabólicas, como diabetes e hipertensão. É o que revela estudo realizado pelo médico geneticista João Farias Guerreiro. Segundo ele, tais males “começaram a ser observadas nos povos indígenas brasileiros apenas no final da década de 1970”.

 

O problema é que nos últimos anos essa incidência tem aumentado. Por mais contraditório que possa ser, assim como os brasileiros mais pobres, os indígenas têm comido mal não só em termos de quantidade, oferta de comida, mas também em qualidade do alimento. “A primeira referência a diabetes em indígenas no Brasil foi feita em 1977 nos Karipúna e Palikúr no Oiapoque, Amapá. A primeira descrição da hipertensão arterial foi feita em 1983 entre os Terena, do Mato Grosso. Casos de obesidade começaram a ser relatados entre os povos indígenas nos anos 90 nos Suruí, em Rondônia, e nos Tembé, no Pará. A partir da década de 2000, a presença de tais doenças crônicas tem sido descrita em um número crescente de grupos indígenas em proporções variadas”, detalha o médico, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

Guerreiro avalia que “o modo como a promoção do contato e a interação com a sociedade não indígena foram feitos parece constituir a questão principal associada às mudanças socioculturais e econômicas resultantes do contato, pois, aparentemente, essa interação não foi devidamente planejada e organizada”. Ainda assim, o médico compreende como inevitável essa troca de hábitos e culturas entre índios e branco. “Como dizia o geneticista Francisco Mauro Salzano, ‘manter o completo isolamento das populações indígenas da Amazônia é uma tarefa quase impossível, mas temos a obrigação étnica e ética de protegê-las e buscar a melhor forma de promover o contato e a interação com não indígenas’.”

 

Por isso, acredita que a saída é, além de ampliar estudos e investigações científicas, investir em política pública e gestão eficiente de recursos nessas políticas. “Assim uma discussão com a comunidade indígena, os gestores municipais e estaduais de saúde, e os Distritos Sanitários Especiais Indígena, é necessária e urgente para a construção de uma rede de atenção que organize as ações de saúde”, indica. E, evidentemente, como também pontua Guerreiro, fazer tudo isso “na perspectiva da integralidade da atenção e ampliação da acessibilidade para a população indígena de acordo com suas especificidades culturais”.

 

João Farias Guerreiro (Foto: Natalia Cohen | Agência Fapesp)

 

João Farias Guerreiro é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Pará, possui mestrado em Genética pela Universidade Federal do Paraná e doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo. Ainda realizou pós-doutorado no Instituto de Medicina Molecular, Hospital John Radcliffe, Universidade de Oxford, Inglaterra, e na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Atualmente é professor titular do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Estudo da Universidade Federal do Pará – UFPA, no qual o senhor atuou, identificou a ocorrência de doenças metabólicas crônicas em grupos indígenas da região do Xingu e de Marabá, no Pará. Que doenças são essas e a que sua incidência pode ser atribuída?

 

João Farias Guerreiro – Das populações analisadas, Arara, Araweté, Parakanã e Xikrin do Bacajá ainda se encontram em estágio inicial de transição epidemiológica e nutricional e exibem prevalências ainda baixas de alterações metabólicas e antropométricas. Os povos Asurini do Xingu, Gavião Kiykatejê e Xikrin do Cateté, no entanto, exibem prevalências elevadas de dislipidemia e sobrepeso e obesidade, similares aos encontrados em brasileiros não indígenas, porém a presença de diabetes ainda é baixa.

 

 

IHU – Além da alimentação, que mudanças no estilo de vida dessas populações pode ter contribuído para a aparição desses casos?

 

João Farias Guerreiro – O surgimento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis – DCNTs entre os povos indígenas está intimamente relacionado a fatores como mudanças na subsistência, dieta e atividade física. Isso se dá em função das mudanças nas atividades laborais com a mecanização e mudanças no modo de locomoção com a utilização de lanchas e carros.

 

 

IHU – Em que medida podemos associar as mudanças de hábitos dessas populações à transformação na região, especialmente pela chegada de grandes obras de infraestrutura e o aumento do garimpo ilegal?

 

João Farias Guerreiro – Entendo que, uma vez feito o contato com um povo indígena, é inevitável que mudanças socioculturais e econômicas sejam introduzidas pela interação com a sociedade não indígena. Como dizia o geneticista Francisco Mauro Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul– UFRGS, que foi talvez o mais importante pesquisador de populações indígenas, “manter o completo isolamento das populações indígenas da Amazônia é uma tarefa quase impossível, mas temos a obrigação étnica e ética de protegê-las e buscar a melhor forma de promover o contato e a interação com não indígenas”.

 

 

E exatamente o modo como a promoção do contato e a interação com a sociedade não indígena foram feitos parece constituir a questão principal associada às mudanças socioculturais e econômicas resultantes do contato, pois, aparentemente, essa interação não foi devidamente planejada e organizada.

 

IHU – Na pesquisa, o senhor não descarta a predisposição genética dessas populações para o surgimento dessas doenças. Mas qual é o real peso da genética nesses casos? Qual era a incidência dessas doenças antes de grandes transformações na região e interferências nos modos de vida dos povos originários?

 

João Farias Guerreiro – Os dados disponíveis sobre saúde dos povos indígenas brasileiros mostravam no início dos anos 2000 que o perfil epidemiológico da maioria das populações se caracterizava pela coexistência de antigos problemas de saúde como desnutrição e doenças carenciais (anemia em crianças e mulheres em idade reprodutiva), condições precárias de saneamento, frequências elevadas de doenças infecciosas e parasitárias, associados a novos problemas de saúde, como doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), principalmente as relacionadas à obesidade (hipertensão, diabetes tipo 2 e dislipidemias), juntamente com as chamadas patologias sociais – violência e efeitos negativos do abuso de álcool e drogas, principalmente entre adultos.

 

 

As DCNT começaram a ser observadas nos povos indígenas brasileiros apenas no final da década de 1970. A primeira referência a diabetes em indígenas no Brasil foi feita em 1977 nos Karipúna e Palikúr no Oiapoque, Amapá. A primeira descrição da hipertensão arterial foi feita em 1983 entre os Terena, do Mato Grosso. Casos de obesidade começaram a ser relatados entre os povos indígenas nos anos 90 nos Suruí, em Rondônia, e nos Tembé, no Pará. A partir da década de 2000, a presença de tais doenças crônicas tem sido descrita em um número crescente de grupos indígenas em proporções variadas.

 

 

IHU – A grande incidência dessas doenças pode representar risco de dizimação dessas populações?

 

João Farias Guerreiro – Não, pois os dados disponíveis mostram que a transição epidemiológica se encontra em um estágio inicial na maioria dos povos indígenas. Mesmo naquelas etnias nas quais a transição epidemiológica já se instalou, ações de educação em saúde dirigidas principalmente a jovens e crianças poderão ser utilizadas para conter ou minimizar a progressão dessas doenças.

 

 

IHU – Que outras doenças tradicionalmente eram vistas como risco aos indígenas? Qual sua incidência atualmente?

 

João Farias Guerreiro – Apesar dos grandes avanços e conquistas na atenção à saúde indígena brasileira experimentados nos últimos anos, sobretudo com a implantação do Subsistema de Saúde Indígena em 1999 e com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai em 2010, o perfil de morbimortalidade entre os povos indígenas ainda é caracterizado por frequências elevadas de doenças infecciosas e parasitárias. Entre essas, destaque para tuberculose, malária, doenças diarreicas e parasitismo intestinal e infecções respiratórias agudas.

 

 

IHU – Que ações devem ser feitas junto a essas populações para reverter esse quadro de grande incidência de doenças relacionadas a distúrbios metabólicos e alimentares?

 

João Farias Guerreiro – Basicamente, um intenso e continuado trabalho de educação em saúde e educação ambiental.

 

 

IHU – O aumento da incidência dessas doenças pode ser associado também ao desmonte nos serviços de assistência e atenção aos povos indígenas?

 

João Farias Guerreiro – Não tenho conhecimento de que tenha havido desmonte nos serviços de assistência e atenção aos povos indígenas e, aparentemente, a disponibilidade de recursos financeiros não se constitui problema para atenção à saúde indígena. A meu ver, o problema maior está na gestão, em particular dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEIs, muito limitada pelo modo como se dá a indicação dos gestores, que sofre muita influência política, ocasionando alta rotatividade destes e a descontinuidade de ações e projetos.

 

IHU – Como o senhor analisa a experiência da pandemia de Covid-19 nessas populações?



João Farias Guerreiro – Uma das principais razões para epidemias devastadoras de infecções emergentes entre os povos indígenas do Brasil tem sido atribuída a uma baixa diversidade genética, que os tornaria mais vulneráveis biologicamente em comparação com populações “mais diversificadas”.

 

Com a emergência do novo coronavírus humano (SARS-CoV2) ao final de 2019 e sua disseminação rápida por todo o mundo, ficou a expectativa de um alto número de mortes e caos social causados por SARS-CoV-2 entre os indígenas, como em epidemias anteriores de varíola, sarampo ou gripe. No entanto, os dados disponíveis mostraram que os povos indígenas aldeados exibiram uma resposta não usual frente à pandemia pelo Sars-CoV-2, apresentando elevadas prevalências de anticorpos contra SARS-CoV-2 e baixa taxa de mortalidade por Covid-19. Assim, os povos indígenas constituem uma excelente oportunidade para investigar fatores genéticos e imunológicos associados à infeção pelo SARS-CoV-2.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

João Farias Guerreiro – Apesar dos avanços e conquistas do Subsistema de Saúde Indígena junto ao SUS, ainda há alguns nós nos modelos de atenção e gestão dos serviços quanto ao acesso e ao modo como o indígena é acolhido nos serviços de saúde, principalmente nos serviços de média e alta complexidade nas cidades. Assim, uma discussão com a comunidade indígena, os gestores municipais e estaduais de saúde, e o DSEI é necessária e urgente para a construção de uma rede de atenção que organize as ações de saúde na perspectiva da integralidade da atenção e ampliação da acessibilidade para a população indígena de acordo com suas especificidades culturais.

 

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