17 Outubro 2025
Em Espíritus del presente: Los últimos años de la filosofía y el comienzo de una Nueva Ilustración 1948-1984 (Taurus), o filósofo alemão Wolfram Eilenberger (Freiburg, 1972), fundador da Philosophie Magazin e membro do St. Gallen Collegium da Universität St. Gallen, serve-se de quatro pensadores essenciais do século XX para incentivar os leitores a pensar por si mesmos e combater essa sensação generalizada de impotência: Adorno, Sontag, Feyerabend e Foucault. Mas, alerta: pensar de maneira autônoma, ser soberano sobre as próprias ideias e conceitos, não é uma tarefa fácil, requer um exercício e não garante a felicidade. Traz, sim, a liberdade. A questão não é pequena.
A entrevista é de Esther Peñas, publicada por Ethic, 16-10-2025. A tradução é da Cepat.
Eis a entrevista.
Não sei se falar de um novo Iluminismo, em uma época em que o niilismo, os totalitarismos e a ideia do comum estão em xeque é utópico demais. A própria filosofia está sob escrutínio, desaparecendo gradualmente dos nossos currículos educacionais...
Cada país tem a sua cultura e a sua própria relação com a filosofia. Na França, está muito assentada nos planos de estudos. Na Alemanha, temos problemas com a Igreja católica, que não está satisfeita com o que se ensina e como se ensina. Contudo, não me preocupo tanto com a disciplina em si, porque existem muitas formas de se familiarizar com a arte da filosofia.
Dentro da cultura espanhola, por exemplo, a principal via para fazer filosofia tem sido a literatura, assim como na Rússia. Por isso, considero que não deveríamos focar na matéria da filosofia no ensino ordinário, mas na arte de pensar por si mesmo, que por sua vez permite ter um pensamento crítico, e existem muitas formas de alcançar esse pensamento autônomo.
O que aconteceu para que a liberdade tenha se tornado, hoje em dia, aquilo que La Boétie já apontou: a servidão voluntária?
Algo estranho aconteceu com a palavra liberdade, é verdade. Temos de observar a mudança que ocorreu na ciência política. Durante os anos 1960 e 1970, a “liberdade” era um conceito adotado e defendido pelos oprimidos da esquerda; agora, tornou-se um termo da direita. Por quê? Como?
Partindo do fato de que não sou um entusiasta desses grandes conceitos, porque não são muito explicativos e, portanto, muito convenientes para o capitalismo, direi que um dos melhores serviços que podemos prestar à nossa cultura, hoje em dia, é resgatar o conceito de “liberdade” e utilizá-lo corretamente, sem deixar que a direita se aproprie dele. Quando uma cultura perde o sentido real do que significa ser livre está em mau estado. Isto implica uma repreensão à esquerda, por abandono de suas responsabilidades, porque nisto a esquerda tem uma enorme responsabilidade.
A partir daí, no livro, busco falar da liberdade de uma forma emancipatória. É um conceito que se voltou contra si mesmo. As pessoas que gritam “liberdade” estão traindo o conceito. O cerne da liberdade, tanto na sociedade moderna quanto na atividade da filosofia, é pensar por si mesmo, o que é algo muito difícil.
Mas o Iluminismo apostou nisso...
Sim, mas um dos principais problemas do Iluminismo é que dava como certo que todo mundo é capaz de pensar por si mesmo, assim, sem esforço, por ciência infusa. E não, pensar por si mesmo é como uma ginástica. Se você quer dar um mortal, precisa praticar muito. Pensar por si mesmo é muito duro; requer treinamento e prática. Um dos conceitos ligados à liberdade é esse, exige algo das pessoas que vão pensar por si mesmas, um esforço doloroso.
Que ninguém se engane, exige uma vontade enorme. É o que eu explico em meu livro: ser como Sontag ou Foucault, falar por nós mesmos, com nossos próprios conceitos, exige um enorme envolvimento e trabalho. Uma das versões banalizadas da democracia é que ela se baseia na opinião, mas nem toda opinião é qualificada. Somente uma opinião qualificada produz cidadãos qualificados.
Você fala sobre o conceito de autonomia (mündigkeit, formulada em Kant e proveniente da palavra “mundo”), que é uma espécie de liberdade ampliada. Se exercer a liberdade exige coragem, qual disposição de ânimo é necessária para ser autônomo?
Neste livro, a partir de quatro personagens exemplares, tento mostrar que a autonomia que eles conquistaram é possível. Ninguém é autônomo por princípio, a autonomia é autodeterminação, e é preciso ter um “auto”, um “eu”, ser uma pessoa e empreender esse processo dinâmico e infinito e interminável que é a autodeterminação, que pressupõe a crítica aos discursos predominantes. Se alguém pensa com seus próprios conceitos e palavras, deve se opor ao que lhe ensinaram.
A ideia central deste livro é um propósito de Kant, “a saída do ser humano de sua imaturidade autoimposta”. Cada pessoa deve encontrar suas próprias palavras, forjar e inovar sua própria linguagem. Esses quatro exemplos que utilizo são, além de pessoas que pensam de maneira crítica, poetas. Em outras palavras, a arte da filosofia está ligada à criação de novos conceitos que deem credibilidade ao fato da autodeterminação. Na filosofia acadêmica, não temos mais palavras, não há questionamento conceitual.
Por que as propostas de progresso, de paz entre as nações, do imperativo categórico, fracassaram? Qual é a causa?
A estupidez humana. Este livro começa em 1948 e vai até 1984, aquele espaço orwelliano em que ocorre o choque do totalitarismo em nossas civilizações. Em 1945, o discurso do progresso não só não podia se prolongar, como precisava ser reajustado, e Adorno é o mais convincente de todos quando se trata de assumir a responsabilidade e a necessidade de mudança. Ele não aplicou o imperativo categórico, ou poderíamos dizer que aplicou o imperativo anticategórico, ou seja, não se tratava tanto de encontrar o que universalmente deveríamos fazer, mas o que não deveríamos fazer.
Ele emprega uma dialética negativa. Daí sua frase “não há poesia depois de Auschwitz”. Deseja dizer que Auschwitz não poderia voltar a acontecer. Fala que nunca mais uma guerra deve sair de solo alemão, e que uma identidade alemã não pode estar vinculada aos conceitos de raça e povo.
Agora, na Alemanha, estamos passando por dificuldades para lidar com o tema de Gaza porque não aprendemos realmente nada com 1945. É um problema difícil do ponto de vista alemão, porque é necessário se rearmar, tornar-se uma potência militar, em um momento em que 40% dos alemães, segundo as últimas estatísticas, estão agora encontrando sua identidade como povo.
Esse enfoque de Adorno nos ajudou muito, mas está chegando ao seu fim. É necessário haver uma mudança. Tenha em consideração que quando se fala de outras épocas, quando são analisadas, é porque essas épocas já estão, de alguma forma, encerradas. Só é possível escrever sobre elas quando terminam. É como a coruja de Minerva, que só voa ao cair da noite. A situação atual da filosofia acadêmica está especialmente concentrada nisto.
Já que estamos falando de Adorno, como é possível que o Iluminismo, em vez de libertar o indivíduo, dominou-o, conforme nos ensina?
Adorno explica isto muito bem. Para resumir: o Iluminismo tem erros enormes de partida. Por exemplo, que pensar por si mesmo não é uma conquista, mas algo dado; outro erro enorme é acreditar que dominando a natureza, seríamos livres; e o terceiro grande erro é dar como certo que as ciências naturais libertam o ser humano e aumentam sua autonomia. Tudo isto é mentira. E quando nos detemos na questão das teorias emancipatórias ligadas à digitalização e a IA, vemos que resultaram em distopias. Tornaram-nos servos.
Quanto à servidão, que você mencionava antes, tornou-se uma ferramenta de autodestruição quase imbatível graças à tecnologia. Seguir assumindo esses erros do Iluminismo só leva ao desastre. Por isso, fico indignado com pensadores como Pinker, que é um filósofo terrível que populariza o Iluminismo de forma caricaturesca. Seu discurso é ridículo. A maior parte do discurso norte-americano é, mas nós o assumimos como se tivessem descoberto a Metafísica de Aristóteles.
Parece-me que Pinker não leu absolutamente nada de Adorno, o que é grave para alguém que se diz filósofo. Os quatro pensadores que analiso, fundamentais para entender o século XX, são inimigos do Iluminismo, mas encarnam o fato de pensar por eles próprios. Em termos de História, precisamos de um novo Iluminismo. Qualquer pessoa que realmente ame o espírito do que o Iluminismo poderia ter sido, não poderia ser tão dogmático quanto Pinker, já que ele almeja que seu discurso seja o discurso.
Até que ponto a arte (especialmente a música) continua sendo território de resistência à dominação, conforme apontado por Adorno?
Isso é muito importante para ele e deveria ser para todos, pois nos permite entender os limites do conhecimento conceitual, porque o discurso está tão distorcido pelo poder que precisamos ir além do discurso, transcendê-lo. É isto que Adorno nos lembra e que coloca em prática.
Sontag, que foi uma grande leitora de Adorno, retoma isto e fala que como não temos palavras para certas coisas, então, devemos nos deixar tocar por aquilo que as transcende, de fora do discurso. Saber e sentir que há algo a mais para o qual não temos as palavras. Nesse sentido, a música não é um território conceitualizado, por isso nos permite ir além, e isto se relaciona com a situação atual e os problemas que acreditamos dominar.
Nesse aspecto, a intervenção progressista ou de esquerda, que impôs um sentido ativista do político à arte, foi nefasta. Tanto Adorno quanto Sontag nos lembram que é uma perversão a ideia da arte como imposição de um compromisso político, porque esta não é a sua função. Se você quer ser um ativista, vá em frente, filie-se a um partido, a uma ONG... A ideia dos círculos de esquerda de que toda obra precisava trazer uma mensagem destruiu a ideia de arte como tal.
Quais são os benefícios de pensar contra si mesmo, conforme Sontag propunha?
Reparar a estupidez, a própria cegueira. Todos os dias acordamos com a nossa estupidez, nos apegamos a conceitos vazios como se fossem nos salvar, e pensar por si mesmo, contra si mesmo, talvez não traga felicidade, mas oferece clareza e uma experiência muito bonita. Não necessariamente lhe dá esperança, mas você vê por que está desesperado. Não traz uma resposta instrumental, mas uma beleza ao alcance de poucos.
A cultura de massas era, para Sontag, um obstáculo ao exercício da liberdade. É possível ser livre em um mundo mediado por informações falsas, produtos da inteligência artificial?
Ninguém pode dizer o que acontecerá na próxima década. Quem saberá? A inteligência da máquina (conceito mais adequado do que o de IA) nos levou a uma encruzilhada única. É verdade que o que aconteceu com a digitalização, nos últimos quarenta anos, nos dá elementos suficientes para sermos pessimistas... O que tenho quase certeza é que retornaremos a uma cultura oral, porque tudo o que tem a ver com a escrita, com o texto, perderá relevância, será anulado por essas máquinas.
Sendo assim, a educação mudará radicalmente, e isso pode supor uma mudança favorável. Pensemos em Sócrates, que não deixou nada escrito, mas que transmitiu sua sabedoria de viva voz. Sim, acredito que a cultura universitária será oral, talvez como um mosteiro. Isto pode ser algo bom. O futuro nunca é a salvação ou a destruição total; é sempre traçado em território ambivalente.
Esse “tudo vale” que o físico Feyerabend propõe no campo científico não lembra perigosamente a proposição de Maquiavel, de que os fins justificam os meios?
Não! É uma proposta interessante, mas... não. Do ponto de vista maquiavélico, estamos falamos de tentar dominar outras pessoas por meio do poder. No caso de Feyerabend, trata-se de ter um insight das tentativas dos outros de dominá-lo. Então, a direção de ambos os postulados é totalmente oposta e “tudo vale” não é um imperativo, não é uma receita.
Feyerabend lança essa frase contra a ambição dos filósofos de impor um método único de fazer ciência. É uma reação contra o que existe dentro da filosofia: a ambição de alguns filósofos que tentam dizer aos cientistas como fazer seu trabalho. Não existe uma receita única; “tudo vale”, qualquer caminho é possível, mas isto não significa “faça o que quiser”. Cada campo tem seu próprio critério; não existe uma receita única, nem apenas uma ciência. O “tudo vale” de Feyerabend significa: “observe bem, de todos os prismas possíveis”.
Existe uma maneira de equilibrar os avanços científicos e tecnológicos com a ética que preserva a dignidade humana?
Isso seria uma grande esperança, mas o conceito de “humano” é escorregadio, por isso Borges preferia falar de “homens”, em vez de “o homem”. É algo muito estranho pensar no humano, inclusive em pensar sobre “a humanidade”. O humano é ambivalente; há questões delicadas a serem consideradas. É claro, há formas de vida humana que estão sob pressão em termos de pluralidade, porque a pluralidade diminui, e em outro nível de discurso vemos que o reino animal está muito mais próximo ao nosso do que acreditávamos.
Detenho-me em Foucault: é possível exercer o poder sem que ele se torne perverso?
A resposta de Foucault é que é impossível não empregar o poder. Este é o ponto de partida. Uma vez que você percebe isto, pode ser mais sensível ao que faz, mas não existe uma teoria autêntica do poder em Foucault. Poderíamos aplicar nossos pensamentos próprios e, do ponto de vista da esquerda, enfrentar o poder. Mas você é poder reativo; o poder está por todas as partes. Alguém se coloca contra o poder, mas ele próprio é poder.
É possível neutralizar o poder?
Seria neutralizar o mundo em que vivemos. Esta nossa conversa é poder. Vivemos em um mundo de poder, não só humano. Sendo assim, neutralizá-lo exigiria um poder absoluto.
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