"Os direitos fundamentais não são negociáveis. A atenção às camadas mais vulneráveis e seu protagonismo são condições para o desenvolvimento da sociedade e para um verdadeiro enriquecimento da humanidade como um todo."
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 09-10-2025.
Assinada em 4 de outubro e publicada em 9 de outubro, a exortação apostólica Dilexi te é a última palavra de Francisco e a primeira de Leão. Além do título que remete à encíclica Dilexit nos sobre o culto ao Sagrado Coração, a continuidade é significativa pelo tema e pelo conteúdo: “o amor pelos pobres”.
Retomar a opção pelos pobres de seu predecessor constitui um sinal preciso da vontade e da orientação do Papa. “Tendo recebido como herança este projeto, fico feliz em torná-lo meu — acrescentando algumas reflexões — e em propô-lo novamente no início do meu pontificado, compartilhando o desejo do amado predecessor de que todos os cristãos possam perceber o forte vínculo que existe entre o amor de Cristo e o chamado a nos fazermos próximos dos pobres” (n. 3).
O texto tem 42 páginas, 121 parágrafos e 5 capítulos com os seguintes títulos:
A decisão de retomar ou não um esboço de documento do predecessor variou ao longo da história. Pio XII deixou na gaveta a primeira versão de uma encíclica de Pio XI contra o racismo, o antissemitismo e o totalitarismo do nazismo alemão, intitulada provisoriamente Humani generis unitas. Elaborado por alguns jesuítas (John LaFarge, Gustav Grunlach, Gustave Desbuquois), o documento não se tornou magistério por causa da posição que o Papa Pacelli desenvolveu diante dos totalitarismos de seu tempo.
It is very moving that, of all the documents and subjects he could have chosen for his first papal teaching, Leo chose one that Francis began, on the centrality of the poor in the Gospel. That’s not just a choice, it’s a program. #DilexiTe
— Austen Ivereigh (@austeni) October 9, 2025
Por outro lado, o Papa Francisco assumiu o esboço da encíclica Lumen fidei, que teria sido a quarta do pontificado de Bento XVI após aquelas dedicadas à doutrina social, à caridade e à esperança. Uma continuidade que depois foi atravessada por significativos elementos de descontinuidade expressos claramente na Evangelii gaudium, seu documento programático.
O Papa Leão define o texto como “exortação apostólica” e, como bom jurista, distingue-o da forma mais autoritativa da encíclica, à qual confiará sua linha de governo. No entanto, a continuidade nos temas fundamentais, a partir da opção preferencial pelos pobres, parece indicar que a Dilexi te constituirá uma introdução coerente com as diretrizes seguintes.
Pope Leo XIV: "I often wonder, even though the teaching of Sacred Scripture is so clear about the poor, why many people continue to think that they can safely disregard the poor."
— James Martin, SJ (@JamesMartinSJ) October 9, 2025
"Dilexi te"https://t.co/sGCEndf2kn pic.twitter.com/LuX5epVGTA
A centralidade dos pobres no anúncio e na prática cristã retorna com força em muitos trechos da exortação. Com a encarnação de Jesus, pode-se “falar teologicamente de uma opção preferencial de Deus pelos pobres” (n. 16). Toda a Escritura testemunha isso. “É inegável que o primado de Deus no ensinamento de Jesus se acompanha de outro ponto firme: não se pode amar a Deus sem estender o próprio amor aos pobres” (n. 26). “É necessário afirmar sem rodeios que existe um vínculo inseparável entre nossa fé e os pobres” (n. 36).
Não se trata apenas de uma questão social: é um ponto nodal da natureza cristocêntrica da doutrina cristã (n. 84). De fato, “a opção preferencial pelos pobres por parte da Igreja está inscrita na fé cristológica que levou Deus a se fazer pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza” (n. 99). “A realidade é que os pobres, para os cristãos, não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo” (n. 110). “Não estamos no horizonte da filantropia, mas da revelação: o contato com quem não tem poder e grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor da história” (n. 5).
Cardinal Czerny: when people accuse Francis or Leo for being Marxist when they are teaching the Gospel, the problem is not the popes’; the problem is the person accusing them.
— Austen Ivereigh (@austeni) October 9, 2025
A pobreza tem muitas formas e especificações. Suas modalidades mudam ao longo da história, e a resposta estará sempre aquém das necessidades. Mas para a Igreja é uma questão de fidelidade ao Evangelho. “O fato de que o exercício da caridade seja desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, me faz pensar que é preciso reler sempre de novo o Evangelho, para não correr o risco de substituí-lo pela mentalidade mundana” (n. 15).
Encontra-se aqui também uma resposta clara às declarações do vice-presidente dos Estados Unidos, o católico JD Vance, que havia evocado a doutrina agostiniana do Ordo amoris para justificar como “visão cristã” a agressiva eliminação ou suspensão de quase todos os programas de ajuda externa dos EUA e as deportações de imigrantes ilegais pelo governo Trump. Já em janeiro de 2025, o então cardeal Prevost interveio com a autoridade de estudioso de Agostinho para refutar tal pretensão, à qual o Papa Francisco se opôs em sua carta aos bispos dos EUA (10 de fevereiro de 2025).
#DilexiTe isn’t just about the poor. It’s about God speaking through the poor to call us to change the way we live now. pic.twitter.com/r7hXvgEPuo
— Austen Ivereigh (@austeni) October 9, 2025
A atenção aos pobres é ainda condição de toda possível reforma da Igreja: “Estou convencido de que a opção prioritária pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja quanto na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir seu clamor” (n. 7).
O alerta ressoa fortemente contra aquelas sensibilidades religiosas que pretendem ignorar o serviço aos pobres: “Por vezes se nota, em alguns movimentos ou grupos cristãos, a carência ou até mesmo a ausência de compromisso com o bem comum da sociedade e, em particular, com a defesa e promoção dos mais fracos e desfavorecidos. A esse respeito, é preciso lembrar que a religião, especialmente a cristã, não pode ser limitada ao âmbito privado, como se os fiéis não devessem se preocupar também com problemas que dizem respeito à sociedade civil e aos acontecimentos que interessam aos cidadãos” (n. 112). Trata-se de verdadeira mundanidade disfarçada de prática religiosa.
Em comparação com a oposição aberta ao sistema neoliberal e tecnocrático presente no magistério de Francisco, a palavra de Leão se detém antes. No esforço de evitar rupturas e confrontos, recua um passo, acreditando que a eficácia do testemunho pode superar rigidezes ideológicas e preconceitos infundados.
Mas a denúncia está longe de ser apagada. O acúmulo de riqueza, o sucesso social e o isolamento defensivo de poucos privilegiados são contrários ao Evangelho (n. 11). “A riqueza aumentou, mas sem equidade, e assim surgem novas pobrezas” (n. 13). A pobreza não é uma escolha nem um destino. É uma questão estrutural. “É, portanto, necessário continuar denunciando a ditadura de uma economia que mata e reconhecer que, enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria se afastam cada vez mais do bem-estar dessa minoria feliz. Esse desequilíbrio decorre de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de zelar pelo bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe de forma unilateral e implacável suas leis e regras” (n. 92).
Não é aceitável que, diante das necessidades dos pobres, a resposta seja adiada para um futuro indefinido, sem tocar hoje nas “estruturas de pecado”. “Apresenta-se como escolha razoável organizar a economia exigindo sacrifícios do povo, para alcançar certos objetivos que interessam aos poderosos” (n. 93).
Os direitos fundamentais não são negociáveis. A atenção às camadas mais vulneráveis e seu protagonismo são condições para o desenvolvimento da sociedade e para um verdadeiro enriquecimento da humanidade como um todo.
Na exortação há uma atenção especial à vida consagrada e à recuperação de algumas dimensões tradicionais do serviço aos pobres. A reconstrução da história da assistência aos pobres pela Igreja começa com os textos bíblicos (Antigo e Novo Testamento) e com os Padres da Igreja (Inácio de Antioquia, Justino, Crisóstomo, Agostinho etc.) e se desenvolve através dos fundadores dos mosteiros e da vida religiosa: de Basílio a Bento, de Cassiano a Camillo de Lellis, das irmãs vicentinas às irmãs hospitalares, dos mercedários aos trinitários, de Francisco e Clara a Domingo, de Calasanzio a La Salle, de Dom Bosco a Rosmini, de Scalabrini a Cabrini.
É uma cascata de nomes, famílias religiosas e monásticas e novos serviços (pobres, doentes, escravos, ignorantes, migrantes, refugiados etc.) que compõem o tecido de uma Igreja da caridade que chega até hoje: Teresa de Calcutá, Menni, de Foucauld, Emmanuelle, a Caritas e os movimentos populares. Uma história comovente, talvez até excessivamente coesa, confiada mais às intuições carismáticas do que às estruturas eclesiásticas.
BREAKING: Pope Leo's Apostolic Exhortation highlights Church’s “care for the poor and with the poor” as a “a central part of her life”
— Michael Haynes 🇻🇦 (@MLJHaynes) October 9, 2025
Re migrants - “in every rejected migrant, it is Christ himself who knocks at the door of the community”
On @PerMariam https://t.co/Z6I3kQh7XV
Para os séculos mais recentes, há o fio condutor da doutrina social, com a retomada de suas principais encíclicas e da constituição conciliar Gaudium et spes. A referência ao célebre discurso de João XXIII um mês após a abertura do Concílio (“A Igreja se apresenta como é e como quer ser: a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres”) e à intervenção do cardeal Giacomo Lercaro na assembleia (“O mistério de Cristo na Igreja sempre foi e é, mas hoje é de modo particular, o mistério de Cristo nos pobres”) revela as profundas raízes da formação de Leão.
É muito reconhecível a dívida do pontífice com sua atuação na Igreja peruana e no contexto latino-americano. Isso aparece na lembrança das grandes assembleias continentais, em particular Medellín (1968), Puebla (1979) e Aparecida (2007): uma doutrina criativa “que foi bem integrada no magistério posterior da Igreja” (n. 16).
A citação do martírio de Oscar Romero e o destaque à pastoral das cidades acompanham a valorização dos movimentos populares, característica do Papa Francisco. Também a referência ao contato, ao encontro e à identificação com o gesto da esmola como fonte de alimentação da pietas na vida social remete a essa raiz. “Sem gestos pessoais, frequentes e sentidos, nossos sonhos mais preciosos ruirão. Por essa simples razão, como cristãos, não abrimos mão da esmola” (n. 119).