“A reivindicação identitária nega a mistura”. Entrevista com Élisabeth Roudinesco

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22 Março 2023

A historiadora e psicanalista francesa Élisabeth Roudinesco obteve reconhecimento internacional especialmente a partir de seus textos teóricos e das biografias que dedicou a Sigmund Freud e Jacques Lacan. Referência imprescindível para o campo psi e formada pelos grandes mestres da filosofia francesa da segunda metade do século XX, Roudinesco foi aluna de Gilles Deleuze e Michel Foucault, impactada pela metodologia de Georges Canguilhem e coautora com Jacques Derrida. A sua obra intelectual, fiel à sua linhagem, evidenciou sua vocação para a intervenção pública, por exemplo, a favor do casamento homossexual ou para polemizar os tratamentos dispensados às crianças transgênero.

Em seu novo livro O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (Zahar Editores, 2022), a ensaísta aborda o problema do crescimento das políticas identitárias sob uma perspectiva crítica, sutil e histórica, considerando essas derivas perigosas tanto pela esquerda como pela direita por suas consequências políticas voluntárias e involuntárias. A autora conversou com Ñ, de Paris, sobre esse polêmico fenômeno, que colocou a identidade como a chave das lutas contemporâneas.

A entrevista é de Luis Diego Fernández, publicada por Clarín, 17-03-2023. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

No início de "O eu soberano", você afirma que a identidade pura ou perfeita não existe. De onde acha que vem essa obsessão atual pela busca de identidades sexuais, raciais ou nacionais?

Creio que vem com o enfraquecimento do compromisso político coletivo, o progresso da sociedade individualista e a busca em si mesmo. Tudo isso acontece após a queda do Muro de Berlim em 1989. O desastre em que terminou esse ideal de emancipação e a transformação do mundo após o comunismo fez com que a ideia de revolução voltasse a se concentrar em si mesmo.

É nesse sentido que começou o maior interesse pela subjetividade e pelas minorias, e não tanto pela sociedade como um todo. Por outro lado, também encontramos movimentos ligados à descolonização e a uma ideia de que, embora alguns países tenham conseguido esse processo, as antigas nações colonizadas continuaram sendo culturalmente colonizadas.

É verdade que tudo isto começou com boas intenções. Mas esse ideal de emancipação foi levado ao limite a tal ponto que se começou a incluir nas minorias aqueles que não eram realmente minorias (autistas, pessoas de baixa estatura, surdos e um longo etc.), como um anexo à ideia de minoria a partir das anomalias biológicas ou físicas em certo sentido.

A emancipação dos homossexuais já aconteceu em muitos países ocidentais. Eles têm direito ao casamento, à adoção, à barriga de aluguel, portanto, isso tem sido feito progressivamente na esfera jurídica, apesar de ainda existirem setores da sociedade que são homofóbicos ou racistas. É sempre melhor ter conquistado os direitos legais para combater esses problemas sociais e para erradicar o racismo, o antissemitismo e a homofobia da sociedade civil. Se pegarmos o caso dos Estados Unidos, por exemplo, a realidade para os negros é muito melhor a partir de leis que proíbem a segregação, mas isso não quer dizer que não haja mais racismo.

Penso que na sociedade civil domina um medo da miscigenação. Hoje, há mais medo do mestiço do que do gueto. Essa é a tese da extrema-direita da “grande substituição”. Acredito que o que vai dominar é a miscigenação, ou seja, a integração e a assimilação. Não há substituição, há mistura. A reivindicação identitária nega a mistura e a miscigenação.

Por que acredita que os militantes queer nos Estados Unidos, que inicialmente tinham um discurso criativo e valorizavam a liberdade do desejo e da transgressão, tornaram-se defensores de uma modalidade de puritanismo que tenta proibir e cancelar determinados discursos?

Penso que a minoria foi exacerbada em uma sociedade dominada pelo narcisismo. O “si mesmo” tornou-se o objetivo da vida. E isso não faz sentido. Se tudo vira minoria, o país é uma justaposição de minorias. Por exemplo, em relação ao fenômeno trans, acredito que a questão da identidade se deve ao fato de que o avanço da cirurgia estética é tal que se pode responder aos problemas psíquicos através da cirurgia e do corpo. Tempos atrás, as pessoas transexuais eram classificadas como travestis, não havia recursos para intervir nos órgãos. Pode-se dizer que as identidades sexuais foram desmedicalizadas e despsiquiatrizadas à medida que a medicina e a cirurgia avançaram.

Acredito que se está colocando o direito no sofrimento e na ofensa. Ou seja, “me sinto ofendido, logo, tenho direito a tal coisa”. Mas não, não é assim. Em todo caso, “eu tenho a liberdade”. No caso do aborto, que é positivo, é um direito. É uma liberdade que pode ser exercida. Um dado biológico (ser pequeno, ter olhos azuis, ou qualquer outro) não é algo identitário. Portanto, estamos em um processo que nega a anatomia ou o biológico em favor do que é construído, ou seja, nega-se a diferença sexual ou o biológico em favor do gênero. É um absurdo.

Além disso, as pessoas com sofrimento psíquico se comportam como censores enquanto apagam a história como se o Estado devesse que reprimir o que elas odeiam. Derrubar a estátua de um ditador faz sentido, mas decidir revisar todo o passado de qualquer maneira significa que não há limites. A demanda por reconhecimento é tão ilimitada que para qualquer momento haverá uma reação inversa. E isso é preocupante: favorecerá as ditaduras e a extrema-direita, que defendem a ideia da decadência do Ocidente.

Desta forma, a humanidade não evoluiu. Tem evoluído lentamente, a partir de novos direitos adquiridos, por exemplo, o progresso da cirurgia tem sido essencial para todos. Acredito que a resposta dada a partir do corpo a um problema psíquico não é a solução; pode ser uma das soluções, mas não pode ser a solução geral. Por outro lado, há uma dimensão fundamental no direito que é o consentimento. Deve ser estabelecida uma idade mínima. Em outras palavras, o consentimento abaixo da norma legalmente estabelecida (nas relações sexuais, são os quinze anos na França) não pode ser considerado algo aceitável.

Da mesma forma, acredito que nas pessoas trans deve ser estabelecida uma idade legal a partir da qual elas consentem em iniciar um tratamento. Não é o caso dos filhos, onde os pais é que decidem por eles. Mesmo que um menino se declare homossexual, ele pode ter relações sexuais legalmente consentidas depois dos quinze anos, não antes. O mesmo deve ser verdade para crianças trans para iniciar sua transição.

No fundo, acredito que as boas intenções que os movimentos identitários possam ter em sua busca inicial acabam no contrário: censura, releitura do passado, boicote à liberdade de expressão. Temos uma lei, ela proíbe o racismo, o antissemitismo, a discriminação. Portanto, alguém pode se expressar com calma e livremente contra algo ou uma pessoa, e não há necessidade de censurar alguém com quem não concordamos.

Você sabia que, por causa do meu livro, as associações de homossexuais quiseram abrir um processo contra mim? É completamente louco. Defendi publicamente o casamento gay. Trataram-me como homofóbica porque discuti a questão da transidentidade em crianças.

Penso ser ilustrativo o exemplo que dá no seu livro em que Michel Foucault indicava que a pergunta “de onde você fala?”, que lhe fizeram na Universidade de Vincennes, parecia-lhe policial. O paradoxo é que justamente Foucault, que sempre foi um filósofo que desconfiou da identidade, seja hoje considerado uma referência central para os movimentos identitários.

Foucault nunca foi identitário. Por que isso derivou dessa maneira? Eles partem de Foucault e Derrida, que nunca foram pensadores identitários. E todos os intelectuais reacionários, de extrema-direita, agora acusam esses filósofos dos anos 70, os mais traduzidos do mundo, os melhores da minha geração, de serem woke.

A deriva identitária de esquerda reivindica não apenas Foucault, Derrida ou Fanon, quando estes não o eram, mas a extrema-direita, aproveita para dizer que tudo na França é, no fundo, sempre culpa de Sartre. Mas não é verdade. Só porque aquela geração tenha empurrado para a efervescência ou para o radicalismo não significa que o movimento identitário radical esteja certo. No meu livro coloco isto: Derrida, Foucault, Deleuze e muitos desses pensadores foram meus professores, eu os li e eles nunca disseram nada favorável à identidade.

Você acha que a palavra “desconstrução” de Jacques Derrida foi mal interpretada pelas políticas identitárias?

A palavra “desconstrução” é sempre considerada pela extrema-esquerda como algo que se deve fazer, enquanto na extrema-direita é equiparada a destruição. Quando na verdade não é nem uma coisa nem outra. A desconstrução não é o “si mesmo”. Significa que algo se desfaz no passado para se tornar algo novo no presente.

No epílogo do livro, você afirma que o republicanismo laico é o melhor meio para neutralizar as derivas identitárias de esquerda e de direita. Como seria esse modelo que garantisse a liberdade e a convivência das diferenças?

Sou partidária, como Lévi-Strauss, da diferença cultural e rejeito transformar o laicismo em uma nova religião. Portanto, considero que a diversidade é a chave para o progresso. No entanto, um nível de laicidade é necessário para que essas diferenças religiosas, culturais ou sexuais possam se expressar. Nem toda democracia republicana é laica. Nos Estados Unidos, os presidentes juram sobre a Bíblia. Na França, ao contrário, a república e a laicidade nasceram junto com a Revolução Francesa.

Eu compartilho desse modelo de laicidade republicana, que não é simples porque implica manter uma postura ao mesmo tempo de respeito às diferenças culturais e de universalismo concreto, não abstrato. É difícil porque exige sustentar as duas coisas: a força do republicanismo francês implica aceitar os particularismos religiosos ou de qualquer tipo de cidadãos, desde que não se pretenda transformá-los em princípios de dominação dos outros. Esse tipo de secularismo republicano é o que eu apoio.

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