A dança entre utopias e práticas. Breve análise de “O franciscanismo econômico”. Artigo de Armando de Melo Lisboa

Foto: Alez Batonisashvili | Unsplash

19 Março 2022

 

“A ausência das experiências de commons hodiernas compromete, em verdade, a razão de ser do movimento da Economia de Francisco, que é promover e articular práticas e lutas, instituições e investigações que possam alimentar a esperança e edificar uma sociedade maior e melhor. Guiar-se apenas pelas estrelas, sem manter os pés no chão, é a receita de frustrações... Por maior que seja a simpatia global pelo Santo de Assis, ou o carisma do Papa Francisco, eles não farão milagres na economia. O apelo a um 'franciscanismo econômico', sem as devidas conexões com a realidade socioeconômica contemporânea, não parece ter a robustez necessária para erguer um outro futuro”, escreve Armando de Melo Lisboa, doutor em Sociologia Econômica pela Universidade Técnica de Lisboa (2004). Atualmente é professor Associado I da Universidade Federal de Santa Catarina, tem experiência na área de Economia, atuando principalmente nos seguintes temas: América Latina, economia solidária, desenvolvimento, economia popular, economia ecológica e sociologia econômica.

 

 Eis o artigo.

 

...aos jovens economistas, empresários e empresárias de todo o mundo, convidando-os a uma iniciativa de estudo e prática de [...] uma economia que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não depreda”.
(Papa Francisco, maio de 2019, convite para o encontro Economia de Francisco)

 

"Qualquer pessoa com um espírito humanista apoia um projeto social que garanta o máximo de liberdade, de democracia e de igualdade para todos. O socialismo prometia isso, mas não soube pôr em prática. Como dizia um diretor de cinema cubano, ‘o roteiro é bom, o problema é colocá-lo em cena’".
(Leonardo Padura, dezembro de 2021)

 

Na economia digital cada vez mais autonomizada, "a alma é posta a trabalhar" (corpo e máquina, "são seu suporte") [1] na busca por maximizar "fins" meramente utilitaristas e predatórios, enfraquecendo e, no limite, dissolvendo a central noção de um comum constitutivo de todos. Diante de tal vórtice distópico, descortinar que podemos compartilhar o mundo de outro modo, como o fez o Papa Francisco com sua convocatória por "realmar a economia", é mais que precioso.

 

É vital reorientar o mundo econômico de modo a retirá-lo de sua pauta produtivista e avessa aos dramas humanos, reconfigurando-o submerso nas relações sociais e nos imperativos morais. Foi isto que buscou Bergoglio ao convidar jovens economistas e empresários de todos os países a se encontrarem em Assis. Tal convocação gerou o movimento "Economia de Francisco” (EcF). Conhecê-lo, portanto, é relevante, e é isto o que Sofiati e Souza [*] propiciam, mormente no âmbito da sua expressão nacional "Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara” (ABEFC).

 

Como é sabido, a iniciativa pontifícia previa realizar o congresso sobre a Economia de Francisco em março de 2020 em Assis, visando inicialmente estabelecer um “pacto” entre jovens economistas e empreendedores para mudar a economia. Todavia, a pandemia levou ao adiamento deste para novembro de 2020, agora em âmbito virtual. A carta de compromisso foi então estabelecida[2]. Mas, como o pré-evento acabou se prorrogando por mais nove meses, isto alimentou ainda mais o imprevisto efeito de transformar um evento num movimento, o qual não se encerrou no momento de reunião originalmente previsto. Isto é muito nítido na forma de agir da ABEFC: esta realizou em novembro de 2021 seu “II Encontro Nacional da Economia de Francisco e Clara”, exatamente um ano após o evento de Assis. Em geral, em inúmeros países perduram iniciativas irmanadas em torno do slogan “Economia de Francisco”, as quais não param de se multiplicar, além de já estar agendada a realização de um segundo encontro global em setembro de 2022, novamente em Assis.

 

De qualquer modo, aquela convocatória não é um raio em céu azul, estando intrinsecamente associada à encíclica papal anterior, significativamente denominada “Laudato si'” (2015), onde se transpira a busca por uma “boa economia”. Ou seja: a melhor compreensão da provocação de Bergoglio exige uma reflexão direta sobre seus documentos, pronunciamentos e ações. Contudo, isto é uma lacuna no artigo de Sofiati e Souza, pois nele a única "análise" é a recorrente ressalva do Papa argentino nunca utilizar nos seus escritos o termo "capitalismo"...

 

 

A insuficiência dos apelos morais...

 

A pergunta se sociedades complexas jamais poderão vir a ser dominadas por uma soberania popular a tal ponto dependente de procedimentos, ou se a rede de mundos intersubjetivamente divididos e comunicativamente estruturados está definitivamente rompida, de maneira que a economia sistemicamente independente, e com ela uma administração estatal autoprogramada, não possam mais ser alcançadas no horizonte desses mundos, nem mesmo através dos caminhos de uma direção indireta – eis aí uma pergunta que não pode ser respondida a contento de maneira teórica, e que, portanto, precisa ser transformada numa questão prático-política”.
(Habermas)

 

Ainda que não caibam mais perspectivas de cristandade, sem dúvida a religiosidade é um solo fértil para o desiderato que almeja o Papa, uma força motriz que pode lastrear outras formas de viver. Isto é ainda mais válido diante da liderança global do Papa argentino, tornando credível a formação da urgente concertação histórica aglutinadora de uma ampla diversidade de forças.

 

Todavia, apelos ideológicos e éticos não são suficientes para alavancar essa outra economia, pois ela se efetiva em âmbitos nos quais os constrangimentos da materialidade da realidade se impõem de forma incontornável... Não se pode pressupor, erroneamente, que a complexa economia moderna não seja dotada de relativa autonomia e de uma força irresistível.

 

Ao mesmo tempo, como a lógica puramente econômica é corrosiva do contexto vital, impõe-se regulá-la e delimitá-la. Sua fenomenal força é passível de ser domada, ainda mais por ser produto humano. Ainda assim, se, no âmbito da vida moderna, juízos de valor são imperativos, é irreal, e perigoso, querer reduzir e conduzir a esfera econômica à pura moralidade. Os planos econômicos e éticos se entrelaçam e tensionam, mas não se confundem. Ambos extremos – seja o que absolutiza uma economia positiva, isenta de elementos normativos e desinteressada dos infortúnios humanos; seja o que absolutiza uma economia moral, identificando a sociedade com sua estruturação simbólica, como puro reflexo da vivência subjetiva – são deletérios, pois castradores das reais possibilidades de moldar a economia conforme os potenciais ontocriativos da humanidade. Se rompermos com a polarização e os estreitamentos postos por aqueles visores cientificistas e idealistas, perceberemos que a realização humana engloba tanto o agir instrumental quanto a ação comunicativa (cf. Habermas). A conjugação de ambos, como numa dança, descortina um amplo leque de racionalidades expressivas e substantivas, permitindo assim encontrar inúmeras possibilidades de usar mais sábia e criativamente os recursos e potenciais à nossa disposição.

 

Em geral, na literatura que propõe alternativas ao capitalismo reluz um fio comum de excelentes posicionamentos críticos ao mesmo, fortes ideológica e teologicamente, “mas capengas na concepção de soluções viáveis, que funcionem”[3] (cf. também Padura, epígrafe).

 

Ora, o anúncio dum novo mundo possível, se não seguido de práticas e experiências com demonstração de erros e acertos ao longo do tempo, acaba erguendo monumentos ocos e meteóricos, narrativas que, ao se esvaírem, logo por outras serão substituídas, atraindo e frustrando sucessivas gerações... Aqui reside o ponto mais débil do movimento EcF, pelo menos de acordo com o que transluz o artigo de Flavio e André. Ou seja, nele inexistem relatos de práticas econômicas alternativas, mal ou bem sucedidas.

 

Em verdade, o artigo indica as "Casas de Francisco e Clara" como uma iniciativa decorrente da convocatória pontifícia. Todavia, a concretude deste desdobramento da EcF não foi demonstrada, pois carece de informações mínimas que evidenciem sua veracidade e efetividade. Esta construção de “castelos no ar” infelizmente costuma ocorrer nos que defendem sair do capitalismo, o que denota apenas a extrema fragilidade deste campo, semelhante a uma "bolha discursiva" sem ancoragem na experiência histórica.

 

A ausência das experiências de commons hodiernas compromete, em verdade, a razão de ser do movimento EcF, que é promover e articular práticas e lutas, instituições e investigações que possam alimentar a esperança e edificar uma sociedade maior e melhor. Guiar-se apenas pelas estrelas, sem manter os pés no chão, é a receita de frustrações...

 

Por maior que seja a simpatia global pelo Santo de Assis, ou o carisma do Papa Francisco, eles não farão milagres na economia. O apelo a um "franciscanismo econômico", sem as devidas conexões com a realidade socioeconômica contemporânea – onde um fluxo tsunâmico de inovações, especialmente nas "tecnologias do espírito" (como algoritmos e Big Data), reconfigura antropologicamente a vida humana – não parece ter a robustez necessária para erguer um outro futuro. No contexto da Era Digital, a "sinalização para uma economia 'humanista', na trilha do velho reformismo pregado pelas 'belas almas' religiosas", adverte Muniz Sodré, "sobrevive apenas do passado de seu próprio modelo, de um simulacro que não tem mais hoje nem amanhã" (2021, p. 199).

 

Nem por isto, todavia, há alternativa à Utopia[4]. Sendo inescapável a vida em comum, a imprescindível liberdade se constitui – e se destrói – na relação com o outro, é uma construção política coletiva. Ora, como o processo de expansão da liberdade é sinônimo do “desenvolvimento”[5], sempre poderemos aperfeiçoar as condições e a qualidade de vida (“bem viver”) da humanidade.

 

Para tal, “a fraternidade humana é desastrosa como um programa político, mas indispensável como um signo que nos sirva de guia” (Kolakowski [6]). Ou seja: a insuficiência do ideal utópico, intrinsecamente genérico, para configurar o dia a dia da vida não o faz descartável. O que se requer é a retroalimentação entre sonhos e práticas, pois tanto “sem os utopistas de outros tempos os homens ainda viveriam em cavernas” (Anatole France), quanto os próprios sonhos se reconfiguram com o aprendizado permanente da sua encarnação empírica.

 

Os alicerces que mais carecemos para os retalhos não-capitalistas formarem uma ampla e pujante colcha que sustente a maioria da humanidade numa vida melhor – permitindo expandir nossos mundos, e não os encolher – não são os conceituais-ideológicos e seus genéricos e celestiais proclamas éticos (o que não equivale a desprezá-los). Estes, temos em abundância e dentro do cardápio que for mais conveniente, além de também andarem mais lentamente que as experiências vividas... Falta-nos é o intercâmbio e o estudo comparativo de práticas que tenham sido filtradas pelo crivo da realidade. Carecemos de aprender com evidências de vidas transformadas e plenificadas de forma não capitalista ao longo de gerações[7]...

 

 

A militância anticapitalista da ABEFC

 

A Economia de Francisco não quer ser ideológica. A ideologia significa que a ideia é mais importante que a realidade e não que as ideias são mudadas em função da realidade. A Economia de Francisco é 'anti-ideológica'”.
(Luigino Bruni)

 

Entre o que o Papa Francisco buscou em sua iniciativa do encontro com jovens líderes e empreendedores e sua recepção brasileira, as diferenças são profundas, a começar por incorporar “Clara” na denominação brasílica, o que azedou o relacionamento com o grupo organizador do evento no Vaticano. Além desta forte dimensão de gênero, Flavio e André deixam claro que a outra grande diferença por parte da ABEFC é sua explícita perspectiva anticapitalista.

 

Conforme aqueles autores destacam, esta militância levou a ABEFC a um embate com Luigino Bruni pelo seu posicionamento favorável ao capitalismo. Ora, este foi designado pelo Vaticano como “Diretor Científico” do evento EcF. Bruni, além de ser um conhecido professor de economia italiano, também atua na Economia de Comunhão (EdC), movimento de origem brasileira que se caracteriza por ser formado com empresas que “colocam o lucro em comunhão”[8] (Bruni, 2005: 25).

 

As posturas de Bruni, bem como a própria EdC, parecem ser a melhor tradução da nova ordem econômica que o Papa Francisco está buscando. Luigi, através do conceito de “economia civil” e da defesa de uma “economia social de mercado”, vem insistindo em humanizar o capitalismo. O Papa, por sua vez, tem abraçado outras iniciativas, como o “Conselho para o Capitalismo Inclusivo”, uma aliança de grandes líderes empresariais globais com o Vaticano em resposta ao desafio papal de reger as práticas comerciais e financeiras com princípios morais. Quando do lançamento deste Conselho, a ABEFC fez um “posicionamento contundente” condenando o mesmo, registram Souza e Sofiati.

 

Apesar da importância central do protagonismo da EdC no âmbito da EdF – ela foi incluída na organização do evento pelo Papa no seu chamado[9] – tal movimento, todavia, tanto não participa da liderança da ABEFC quanto sequer se apresenta no seu âmbito. O artigo de André e Flavio nada menciona sobre a ausência da EdC no processo brasileiro da EdF, ainda que ela tenha em nosso país uma relevante presença (abrangendo cerca de 200 empresas, inclusive dois polos empresariais), até por ter aqui seu berço.

 

Talvez por considerar que a EdC não segue os princípios da Economia de Francisco e Clara (conforme a definem os brasileiros) – uma vez que a ABEFC reivindica uma economia pautada por "formas colaborativas de produção, consumo e crédito", haveria então um desencontro mais profundo entre a ABEFC e a Economia de Francisco almejada pelo Papa?

 

Em grande parte, a ABEFC reproduziu, na sua cúpula, as formações que conduzem a economia solidária (ecosol) brasileira – “não por acaso, a ecosol constitui um grande e expressivo segmento desse franciscanismo econômico”, esclarecem Souza e Sofiati. Aliás, esta nova motivação e rótulo – “economia de Francisco” – tem servido como elemento revigorador da cambaleante ecosol. É sabido que a EdC, por não questionar a economia de mercado e não se pautar por princípios socialistas, nunca esteve incluída nas redes da economia solidária, mesmo tendo práticas verdadeiramente solidárias.

 

Nas dificuldades com a EdC por parte do movimento da ecosol pesa um marxismo vulgar que, prisioneiro do mito da revolução, possui alergia à inovação tecnológica e gerencial, ao empreendedorismo e às práticas mercantis... Como impera o mantra de que a agenda da biocivilização pertence exclusivamente aos pobres e oprimidos, se desqualifica toda e qualquer ação deveras solidária advinda dos capitalistas, mesmo quando fruto de mudanças espirituais ou geracionais que promovem modelos de negócios pautados por novas orientações substantivas não predatórias, como é o caso da EdC. Tudo indica que esta rasante e obsoleta perspectiva ideológica rebrilha agora no contexto da EdF brasileira...

 

 

Referências bibliográficas.

 

Bruni, Luigino (2005). “Comunhão e as novas palavras em economia”. São Paulo: Cidade Nova.

Jameson, Fredric (2021). “Arqueologias do futuro. O desejo chamado utopia e outras ficções científicas”. Belo Horizonte: Autêntica.

Judt, Tony (2016). “Quando os fatos mudam”. Rio de Janeiro: Objetiva.

Sen, Amartya (2000). “Desenvolvimento como liberdade”. São Paulo: Cia. das Letras.

Sodré, Muniz (2021). “A sociedade incivil”. Petrópolis: Vozes.

Negri, Antonio (2001). “Exílio – seguido de valor e afeto”. São Paulo: Iluminuras.

 

Notas

* Com esperança dialógica, este artigo faz uma análise crítica de “O franciscanismo econômico: considerações sociológicas sobre a Economia de Francisco e Clara", de Flávio Munhoz Sofiati e André Ricardo de Souza, disponível neste link.

[1] Negri, 2001, p. 11.

[2] Disponível neste link.

[3] Intervenção de José Alberto Gonçalves Pereira (Beto) em grupo de Whatsapp.

[4] Cf. Jameson, 2021, p. 14.

[5] Cf. A. Sen, 2000.

[6] Apud Judt, 2016, p. 413.

[7] Jon Sobrino, um dos principais teólogos da libertação, aponta para a necessidade de uma “teologia de testemunhos, ao invés de uma teologia de textos”.

[8] O lucro é destinando na proporção de um terço para o desenvolvimento da empresa, outro terço partilhado para a difusão de uma “cultura da comunhão”, e a terceira parte com os pobres, prioritariamente os mais próximos da empresa.

[9] Além da EdC, compõem a direção internacional da EdF a Diocese de Assis, o Instituto Seráfico (vinculado à Ordem Franciscana, em Assis), e o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral (organismo da Cúria Romana).

 

Leia mais