A potência política da vulnerabilidade

Fonte: PxFuel

24 Novembro 2021

 

“A força transformadora da vulnerabilidade está estreitamente relacionada à capacidade de repensar, em um sentido profundo, o que significa viver, entendendo 'viver' não como a soma de vontades individuais, mas como o emaranhado comum que antecede e constitui cada vida”, escreve Silvia L. Gil, ativista feminista, filósofa e professora do Departamento de Filosofia e do Doutorado em Estudos Críticos de Gênero da Universidade Ibero-Americana da Cidade do México, em artigo publicado por El Salto, 21-11-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

Nos últimos tempos, especialmente em decorrência da pandemia, o discurso sobre a vulnerabilidade ocupou boa parte das colunas nos jornais. A possibilidade de sofrer danos, adoecer ou até mesmo morrer foi uma descoberta para muitas pessoas que, por motivos relacionados diretamente a gênero, raça e classe social, haviam até o momento escapado de maneira surpreendente da sensação de instabilidade e ameaça vivida cotidianamente por milhares de pessoas em todo o planeta.

 

A possibilidade de evitar a vulnerabilidade ao longo da vida é diretamente proporcional à quantidade de privilégios acumulados. Lemos artigos sobre essa descoberta que evaporaram tão rápido quanto o sentimento que foi efêmero.

 

Mas a vulnerabilidade também aflora nos discursos políticos institucionais, misturada com o feminismo, o ecologismo e a necessidade de uma política diferente. Assim como acontece com o conceito de “cuidado”, a “vulnerabilidade” parecia ser o novo bordão para expressar um lugar mais humano e amoroso, em um contexto de desumanidade e violência. Expressar essa emoção em determinados âmbitos seria em si mesmo um gesto de ruptura ou deslocamento em relação às formas dominantes das relações sociais contemporâneas, baseadas principalmente no êxito, na ausência de empatia e na competitividade.

 

Dado esse crescente interesse pela questão da vulnerabilidade, vale a pena fazermos algumas perguntas a esse respeito: Em que sentido, de fato, pode ser rupturista reconhecer a vulnerabilidade? Pode ser uma alavanca para uma crítica radical de nossas sociedades? Esses discursos estão apontando para tal crítica ou, ao contrário, reproduzem as exigências de consumo de determinados temas ou emoções, aplaudidos especialmente quando enunciados por homens?

 

Assim como no caso dos famosos “cuidados”, existe o perigo não só da interpretação equivocada desse conceito, mas da eliminação completa de sua potência política. Mas, onde ela residiria?

 

A pandemia intensificou e ampliou a vulnerabilidade de um modo sem precedentes na história, no sentido de que cada vez são menos os lugares percebidos como seguros, espaços em que possamos relaxar sabendo que nossa existência será acolhida de maneira íntegra. As contradições internas ao neoliberalismo ficaram visíveis onde antes dificilmente apareciam e, ao mesmo tempo, brotaram em tantos lugares e âmbitos que a própria realidade parece ter sido capturada na metáfora do confinamento: não há saída até onde a visão alcança, a realidade parece estar em cacos.

 

Assistimos a uma desestabilização geral dos suportes e ancoragens clássicas. E essa experiência, mesmo no momento em que a vacinação em massa promete o retorno à “normalidade” (sempre à frente, nunca olhando para trás, em consonância com o mantra do indivíduo bem-sucedido, sem tempo para lamentos e outros tipos de obstáculos nessa corrida hedonista sem fundo: peçamos mais uma rodada!), abriu questões que ameaçam nossa momentânea tranquilidade: E se essa desestabilização nos convida a mudar algo de nós mesmos? E se em vez do inimigo a vencer, fosse a chave para mobilizar um novo sentido do humano? E se então não fosse evitada, mas atravessada para extrair da agitação coletiva todas as suas consequências?

 

Um primeiro impulso diante da intensificação da experiência de vulnerabilidade é minimizá-la, por meio de uma série de medidas de proteção, como as proporcionadas por leis e apoios sociais governamentais. Embora esse aspecto seja indispensável e devemos continuar lutando pela ampliação das medidas de proteção, ao falar de vulnerabilidade podemos (e devemos?) ir além: E se por mais que as sociedades se empenhem, houver um aspecto da vulnerabilidade que não é possível ser eliminado? O que mudaria em termos filosóficos e políticos compreender a vulnerabilidade como um elemento definidor da vida?

 

Trata-se de minimizar os danos provocados pelo poder que induz a quantidades extremas de vulnerabilidade, mas, de modo mais profundo, repensar o que significa viver a partir de uma ontologia dos corpos: de seu cuidado e, simultaneamente, de sua potência, ou seja, da ampliação de suas possibilidades inauditas de ser. Aqui, vulnerabilidade, cuidado e liberdade se entrelaçam para reconfigurar o viver em comum de um modo radicalmente distinto.

 

Na cena do medo percebido diante da possibilidade de ser afetados, nesse momento de abertura e incerteza, parece que é possível transformar as coordenadas em que o sujeito ficou fixado na história do Ocidente, em sua eficaz ilusão de autogênese, individualismo e transcendência descorporificada.

 

Judith Butler retoma o problema da vulnerabilidade a partir de uma ótica que ilumina de maneira especialmente rica a profundidade do que está em jogo aqui. Para a filósofa, o sujeito se encontra essencialmente fora de si mesmo. Em um de seus primeiros trabalhos, Sujetos de deseo: Reflexiones hegelianas en la Francia contemporánea, realiza uma interessante leitura de Hegel, na qual aprofunda essa ideia.

 

Butler resgata a problemática do desejo que estimula a consciência a se converter em outra para si, com a finalidade de se conhecer, em uma espécie de torção sobre e para além de si mesma. A consciência só pode dar conta de si – entender quem é, construir uma identidade – através das mediações externas oferecidas pelos artefatos necessários para que ela compreenda sua própria estrutura. É sempre por meio de algo diferente de nós mesmos que conferimos forma àquilo que somos.

 

Nesse sentido, o surgimento do Eu implica sempre "sair de si". O êxtase (do grego ek-stasis, experiência física da alteridade) transforma as interpretações modernas da autogênese destacada: a consciência não surge de interioridade alguma, mas da relação com uma alteridade que a constitui e excede. Isso significa que o sujeito não basta a si mesmo para ser: não é autônomo, nem autossuficiente.

 

Só após a imersão no externo, por meio de uma série de mediações, a consciência retorna para si, mas nunca poderá fazer isso de modo concludente (inquietante notícia: o sonho de uma identidade estável e definitiva nunca se cumpre, nem mesmo para aqueles que acreditaram ter alcançado com sucesso os padrões da normalidade). A incerteza e a intempérie o acompanharão sempre. Butler identifica uma profunda desestabilização que impede, em termos ontológicos, fundar o sujeito em uma identidade estável, pré-concebida. Sua vulnerabilidade se revela constitutiva.

 

O surgimento do sujeito não se dá de qualquer modo, mas implica uma série de condições de reconhecimento e sustentabilidade: se teremos ou não comida ou teto, se nossa existência, absolutamente singular, será aceita ao nascer, se a língua que dispomos será adequada para nos nomear, se o nosso ambiente nos acolherá sem violência, se teremos o necessário, quando precisarmos de cuidados, etc. Tais condições são indispensáveis para encontrar uma vida vivível.

 

Portanto, uma questão política fundamental não é se somos ou não capazes de nos comover com a vulnerabilidade, mas como organizar tais condições para todas as vidas, a partir da igualdade radical como princípio irrenunciável. É importante entender a articulação simbólica e material dessas condições: o não reconhecimento de determinadas vidas produz exclusões sistêmicas das condições materiais, como acontece de maneira dramática com as pessoas trans. Diante da distinção tão popularizada nos últimos tempos entre distribuição e reconhecimento, economia e identidade, aqui, aparece sua inseparabilidade, inclusive em termos analíticos.

 

Por outro lado, assumir a vulnerabilidade em todas as suas consequências significa também suspender a indicação de determinados grupos sociais como vulneráveis para, em vez disso, acentuar a sua distribuição diferenciada. Ser vulnerável não é uma propriedade de determinados coletivos de pessoas, mas uma condição da existência moldada socialmente de forma desigual. Na pandemia, isto se revelou – e continua se revelando – de modo profundamente doloroso: todas as pessoas podem perder a vida pela doença, mas a desigualdade na ameaça e o modo como acontece é abismal.

 

O êxito das fantasias de autogeração e autossuficiência de indivíduos e nações está intimamente ligado a essa distribuição diferenciada da vulnerabilidade e que é perfeitamente extrapolável à obscena desigualdade na distribuição das vacinas em nível mundial. Conforme sustenta Butler, se determinados grupos sociais e nações condensam o poder para si, é graças à sobredeterminação induzida da vulnerabilidade de outros.

 

Como não pensar naquela subjetividade que sem responsabilidade alguma de cuidado, gozando de saúde e status social, exibe sem limites sua capacidade de consumo e gozo, em um cenário dantesco de desigualdade e morte? Que ideia de vida condensa essa figuração contemporânea? E como pensar nisso sem cair na moral punitiva, mas tampouco na indiferença dos sentidos e efeitos que acarreta?

 

Diante dessa distribuição desigual da vulnerabilidade, não se trataria de aspirar a invulnerabilidade de um número maior de pessoas, reproduzindo ao infinito o sonho de domínio moderno. Trata-se de desmontá-la desde a sua origem. Neste aspecto, a ontologia dos corpos se revela radicalmente política, evidenciando as lutas contra o poder que recriam outras formas de nos relacionar, outras formas de sensibilidade.

 

Trata-se de uma política do vínculo e de suas possibilidades, da interdependência e de seus modos organizativos, da fragilidade e da potência. Uma política não dos indivíduos, mas do "entre". E sendo política do "entre", ou das condições e novas criações do viver em comum, não é possível esquecer a pergunta pelo "quem" da vulnerabilidade: Em nossas sociedades, quem cuida da vida vulnerável? E em que condições isso acontece? Por que alguns sujeitos são chamados de modo aparentemente essencial a se inclinar diante do corpo vulnerável, utilizando a imagem da filósofa Adriana Cavarero?

 

Antecipando-nos a essa avaliação, não há nenhuma capacidade essencial no feminino que abone de maneira mais adequada a vida. O que existe é um contexto de falta de responsabilidade coletiva para/com a vulnerabilidade. É imprescindível resgatar a potência intrínseca do ato de se inclinar, mas sem reificar o feminino – como, às vezes, a filosofia e a psicanálise fazem – naturalizando a desigualdade que, de modo silencioso, torna obrigatório esse gesto sacrificial para as mulheres.

 

Não é por amor, é por um sistema injusto de exploração do trabalho feminizado e as normas de gênero que o sustentam. Uma chave fundamental é não reduzir o questionamento sobre o "quem" da vulnerabilidade a uma predisposição ética-individual e recuperar o "quem" da vulnerabilidade como um assunto político-coletivo.

 

Isso significa que a força transformadora da vulnerabilidade está estreitamente relacionada à capacidade de repensar, em um sentido profundo, o que significa viver, entendendo “viver” não como a soma de vontades individuais, mas como o emaranhado comum que antecede e constitui cada vida.

 

Não se trata de elaborar um novo programa moral normativo da caridade e a vítima, mas de impulsionar de forma criativa uma das grandes perguntas de nosso tempo: como queremos viver coletivamente, de tal modo que se garanta o cuidado de todos os corpos em sua radical diversidade?

 

Responder a esta pergunta talvez só seja possível na medida em que, por fim, consigamos deslocar a herança da modernidade capitalista heteropatriarcal que permeia como aquele fantasma que ainda poderia nos levar a um estado de invulnerabilidade. Fantasia fundamental na formação histórica do masculino. A vulnerabilidade traz consigo uma força diferente que anuncia o fim de sua hegemonia e um novo sentido para a humanidade do humano?

 

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