Markus Gabriel: “A pós-modernidade é hoje ilusão de uma ilusão”

Fonte: Pixabay

18 Novembro 2021

 

Divulgador, provocador, renovador e aficionado, Markus Gabriel (Remagen, 1980) não é apenas o professor mais jovem da história das faculdades de filosofia alemãs, com tudo o que isso significa em um país como o alemão, mas também a sua linguagem clara e repleta de exemplos práticos e seu apelo constante à atuação filosófica para além da teoria e as aulas o tornaram um dos pensadores mais relevantes de nosso tempo.

 

A reportagem é de Andrés Seoane, publicada por El Cultural, 09-11-2021. A tradução é do Cepat.

 

Em visita à Espanha, como assessor do novo Centro Internacional de Neurociência e Ética (CINET), criado pela Fundação Tatiana Pérez de Guzmán el Bueno, o filósofo deu uma palestra na Fundação Juan March, junto com José Luis Villacañas e Ernesto Castro, com as chaves de seu pensamento, adscrito à corrente filosófica batizada como Novo Realismo, que questiona as interpretações totalizantes do mundo procedentes do materialismo, naturalismo e funcionalismo.

 

 

“A humanidade toda está vivendo uma situação extremamente filosófica, pois estamos em crise em vários níveis. A pandemia, a crise climática, a crise geopolítica no Ocidente, a crise do humanismo frente à inteligência artificial, a crise do saber, a da esfera pública...”, enumera Gabriel, que fala nove idiomas, com um espanhol esplendidamente claro, com expressões coloquiais e um sonoro sotaque. “E por isso a filosofia é mais necessária do que nunca.”

 

Saber o que é o homem

 

Conforme entende o pensador, “a filosofia é uma intervenção que em alemão se chama o Zeitgeist, o ‘espírito da época’, que podemos definir como um conjunto de falácias aceitas em dado momento da história. A função da filosofia é esclarecer e esmiuçar os pressupostos e os preconceitos da sociedade. E esta época precisa de muita filosofia, como ocorreu, por exemplo, no século XVIII, porque não sabemos mais quem somos, nem quem queremos ser”, sustenta.

 

 

Responder a essas questões é, em sua avaliação, o fim último do pensamento. “A questão mais importante da filosofia, como já dizia Kant, é saber o que é o homem. Neste momento da história, o que precisamos são de instituições, fundações, governos... cuja meta seja responder, hoje, à questão sobre o que sabemos sobre o homem, para poder deduzir pressupostos para uma filosofia do futuro.”

 

Nos últimos anos, boa parte do trabalho de Gabriel se concentrou nesse empenho, como defensor do Novo Realismo. Livros como Por que o mundo não existeNão sou meu cérebro e O sentido do pensar empunharam uma feroz defesa da realidade contra todos os seus inimigos, dos arautos do esgotado pós-modernismo aos extremismos políticos tingidos de utópicas irrealidades, passando, é claro, por essa realidade virtual que pretende suplantar o mundo.

 

As duas faces do pós-moderno

 

Precisamente, mostra-se muito crítico à ideia de pós-modernidade, “um modelo de pensamento paradoxal, pois seu ponto forte é ao mesmo tempo seu ponto fraco”, opina. O que Gabriel elogia na corrente ainda hoje dominante na sociedade – embora superada no mundo acadêmico – “é o pluralismo. Vivemos em democracias liberais, em sociedades pluralistas onde existem várias maneiras de viver bem e cada um pode escolher a sua. O importante, embora seja algo universal, concretiza-se em cada vida, de forma independente”, e isso é o cume da aspiração ocidental de liberdade e independência individuais.

 

 

No entanto, o filósofo alerta que, indo na contramão deste mundo líquido e globalizado que habitamos, “o grande problema da pós-modernidade é justamente a negação da universalidade. Para um pensador pós-moderno tudo é histórico, contingente, dinâmico, frágil e inteligível. A realidade, do ponto de vista do pós-moderno, é algo que nunca conheceremos como é”, explica.

 

 

“E isso é um grande ponto frágil, porque nos leva a cair no problemático relativismo: a ideia de que não existe sequer o importante. E a negação do importante nos liberta por um tempo, mas após tantos anos de pós-modernidade, constatamos que é uma ilusão. A pós-modernidade é hoje ilusão de uma ilusão”, resume.

 

Rumo a um novo iluminismo

 

O certeiro de sua análise crítica não para simplesmente aí, mas Gabriel oferece propostas de mudança. Concretamente, o que passou a se chamar Novo Iluminismo, uma forma de pensamento e ação voltada ao “viver bem”, presente em seu último livro traduzido em nosso país [Espanha]: Ética para tiempos oscuros: Valores universales para el siglo XXI. “Este Novo Iluminismo tem três dimensões. Primeiro, o humanismo, sempre ancorado no Renascimento e que pressupõe certa autoconcepção do ser humano como tal”, explica.

 

“Depois vem o realismo, que também afeta a ética. Devemos reconhecer a existência de fatos morais, que para mim são uma resposta verdadeira à questão do importante. Um fato moral nos diz o que temos ou não que fazer, simplesmente em virtude da própria humanidade que compartilhamos com todos os seres humanos do planeta”, defende Gabriel, para quem a terceira parte deste tripé é “o universalismo. Ou seja, os fatos morais são sempre comuns a todas as épocas e todos os lugares. Não são relativos”.

 

E lança um exemplo: “a escravidão já era um mal radical quando Aristóteles a negava. Aristóteles defendia a escravidão como necessidade para o filósofo, pois dizia que para que nós possamos trabalhar, alguém precisa preparar a comida... Lamentavelmente, Aristóteles se equivocou, já que há outras formas mais justas de organizar a sociedade”, aponta Gabriel.

 

“O que muda hoje são as condições do saber. Os fatos morais estão sempre entrelaçados com outros: econômicos, culturais, epistêmicos... As culturas do passado não conheciam muitas coisas, mas hoje estamos em plena sociedade do saber, e como os fatos morais são os mesmos, o Novo Iluminismo requer uma cooperação com outras dimensões da sociedade: a ciência, a política, a economia...”, reivindica.

 

Ocupar o centro do debate

 

Isso soa como as típicas palavras de pensadores que ficam estupendamente esclarecidas ou que são ditas de um púlpito, mas morrem aí? Nada mais distante da prática de Gabriel. Todo esse aparato teórico serve como fundamento à parte prática de sua atividade. “Entre outras coisas, colaboro com várias empresas de Inteligência Artificial, como a Deloitte e outras multinacionais. Aquelas que realmente têm o poder”, afirma.

 

“Por exemplo, conseguimos financiamento do estado alemão da Renânia do Norte-Westfália para um projeto direcionado a estudar e aplicar a ética no campo da Inteligência Artificial. As grandes empresas, como a Telekom, nos fornecem dados anônimos para estudar os preconceitos na recompilação de dados e muitos outros elementos”, detalha o pensador.

 

 

Além disso, o intelectual dirige outro projeto em The New Institute de Filosofia de Hamburgo – instituição recém-inaugurada com financiamento altíssimo – “no qual o Facebook coopera e que debaterá conosco sobre o que e como se publica em sua rede”.

 

Gabriel afirma que esse interesse em entrar nos contextos empresariais e políticos “nasce de enxergar como é possível conversar com os que já têm o poder, pois recuso a postura de oposição. Não acredito na filosofia como oposição ao mundo. No Novo Iluminismo, os filósofos devem estar no centro do debate, não comentando o que acontece de fora”, defende.

 

Sim, o pensador reconhece que em determinados lugares, como na Alemanha – onde programas filosóficos ocupam horário nobre na televisão –, é mais simples. “As instituições são realmente fundamentais do ponto de vista da ontologia social, da disciplina filosófica que estuda os fatos sociais. Quais são as condições para que algo seja social? Penso que o social é uma combinação de dissensos em relação a um objeto. Há coisas difíceis, como gerir uma pandemia, e a função das instituições é debater o tema a partir de vários pontos de vista, sem que a sociedade se destrua”, opina.

 

Essa visão do social e essa “cultura do dissenso” soam bastante utópicas na Espanha, onde mais uma vez a Lei de Educação encurrala e despreza a Filosofia e resto das Humanidades. Uma realidade sobre a qual Gabriel não se exime de opinar: “O que me contaram que acontece na Espanha com a Filosofia no mundo educacional é simplesmente um crime contra a humanidade. E estou falando sério”, ressalta, sorrindo.

 

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