21 Setembro 2021
Em uma conferência na Fordham University, em Nova York, em 1996, Avery Dulles, SJ abordou aquelas que ele via como as principais objeções à carta apostólica do Papa João Paulo II de 1994, intitulada Ordinatio sacerdotalis, sobre a inadmissibilidade das mulheres ao sacerdócio católico.
A conferência foi publicada na revista Origins (vol. 25, n. 45, datada de 02-05-1996), intitulada “Gênero e sacerdócio: examinando o magistério” e foi reimpressa na revista America em 2001.
Para marcar o 25º aniversário desse artigo, a revista America, 16-09-2021, pediu que Julia Brumbaugh, professora de Estudos Religiosos na Regis University, em Denver, Colorado, respondesse ao texto.
O artigo completo de Dulles está disponível em inglês aqui.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em sua defesa da Ordinatio sacerdotalis, que declarou que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”, Avery Dulles, SJ enumerou os argumentos para se aceitar a proibição da ordenação de mulheres como bíblica, tradicional e teologicamente correta, apesar de uma série de objeções teológicas sérias. Esses argumentos merecem ser revisitados, porque as questões em jogo falam de coisas que estão no cerne da questão: sacramentos, tradição e salvação.
Ao ler o artigo de Dulles 25 anos depois, lembro-me da reflexão do grande eclesiólogo dominicano cardeal Yves Congar: você pode condenar uma resposta falsa, mas não uma pergunta real. Para Dulles, a questão da ordenação de mulheres foi feita e respondida muitas vezes, e foi respondida definitivamente de modo negativo pelo magistério.
Mas as perguntas sobre a plena participação das mulheres na vida da Igreja foram realmente respondidas? A pergunta foi sequer ouvida em todas as suas dimensões?
A tensão teológica aqui está no ponto crucial em que a antiga prática de um clero exclusivamente masculino – que existia em contextos sociais e eclesiais nos quais a subordinação e a inferioridade das mulheres eram amplamente assumidas – existe agora em um contexto onde a Igreja claramente ensina que as mulheres não são inferiores ou naturalmente subordinadas aos homens.
Embora superficialmente a questão sobre a ordenação de mulheres tenha sido feita e respondida, ela raramente foi feita nesse novo contexto em que a plena dignidade humana das mulheres é afirmada e defendida sem reservas.
Em seu artigo, Dulles trata a história das mulheres na Igreja como aquela em que a visão histórica predominante de que as mulheres devem ser subordinadas aos homens não modelou problematicamente a prática das estruturas da Igreja ao longo dos séculos.
Embora ele rejeite o sexismo como um mal que deve ser combatido, de acordo com o magistério pastoral dos séculos XX e XXI, ele não aceita os argumentos de que o sexismo se enredou na prática da ordenação de forma a poder distorcê-lo. Estudiosos católicos que se questionam sobre as mulheres na Igreja frequentemente têm argumentado que o ensino da Igreja e o tratamento às mulheres mostra que o pecado do sexismo é muito mais profundo do que Dulles reconhece.
No próprio legado teológico de Dulles, há ampla evidência de que questões como essas, que interrogam os muitos contextos e motivações que moldam as nossas práticas e ensinamentos, não são apenas apropriadas, mas também adequadas à tarefa teológica. Por exemplo, em 1976, em uma palestra intitulada “O teólogo e o magistério”, Dulles disse:
“Ficou evidente que aqueles que estão em posições de poder eclesiástico são naturalmente predispostos a aceitar ideias favoráveis aos seus próprios interesses de classe. Papas e bispos, portanto, tendem a falar de uma forma que realce a autoridade de seu cargo. O leitor atento deve levar isso em consideração ao interpretar e avaliar os documentos oficiais.”
Nesse discurso, Dulles criticou uma compreensão da doutrina e da autoridade que reduzia o papel dos teólogos ao exporem o ensino recebido dos bispos. Em consonância com a prática teológica que moldou o Concílio Vaticano II, Dulles argumentou que os teólogos não são meramente os porta-vozes dos bispos e que têm uma esfera de competência própria, baseada em seu trabalho como estudiosos; de fato, ele explora a ideia de que eles formam um magistério que, junto com o magistério dos pastores, atua de “formas complementares e mutuamente corretivas” a serviço da Igreja.
Travar esse diálogo entre o magistério dos pastores da Igreja e o dos teólogos da Igreja é obra de toda a Igreja, que vive no poder do Espírito Santo. Esse Espírito não é recebido exclusivamente por meio das estruturas formais e institucionais da hierarquia, mas é dado a toda a Igreja e a cada um dos batizados.
Afirmar essa realidade requer uma imaginação que inclua o Espírito que trabalha com ousadia nas comunidades, emergindo e transformando os corações dos fiéis comuns e soprando sobre todo o mundo. Esse Espírito abre os nossos corações a um amor cada vez maior e mais amplo, revela os nossos fracassos (passados e presentes), possibilita o verdadeiro arrependimento e abre caminho para um futuro ainda a ser construído. O Espírito e a Palavra cocriam a Igreja.
Vivemos dentro do mistério do amor envolvente do Deus Trinitário e do desejo do nosso florescimento; e em cada época aprendemos e crescemos, mesmo quando tropeçamos, falhamos, esquecemos e aprendemos de novo. Alimentados pelas Escrituras e pelos sacramentos, pela oração e pelos dons do Espírito Santo, mas também pela abundância da realidade criada e pela compaixão e solidariedade com os nossos muitos próximos, os cristãos são chamados repetidamente a estarem abertos ao discernimento da chegada do reino de Deus, que está no meio de nós ontem, hoje e sempre.
Se a Igreja, que vive no poder do Espírito Santo e na memória de Jesus, aguarda a sua plenitude, nunca é suficiente argumentar apenas contra aquilo que foi feito no passado. O projeto pastoral e teológico pleno deve perguntar: o que Cristo no Espírito está fazendo agora? O que Deus está nos chamando a ser agora e no futuro?
Vivemos em um momento histórico em que, guiados pelo Espírito Santo, está nascendo o reconhecimento da plena igualdade das mulheres. Há muito trabalho a ser feito para desemaranhar o sexismo das nossas ideias e modos de sermos humanos juntos.
Para esse trabalho, precisamos da memória da amizade e da intimidade de Jesus com as mulheres, incluindo a sua confiança em Maria Madalena para ser a primeira a receber e a testemunhar a sua ressurreição. Precisamos ouvir profundamente uns aos outros para saber como o sexismo prejudicou e limitou a todos. E precisamos que nossas imaginações estejam abertas ao Espírito Santo para que possamos nos tornar, juntos, uma Igreja em que o sexismo – e a correspondente realidade da subordinação das mulheres – seja impensável.
Ao trazer à tona esse compromisso de imaginar uma Igreja curada de todo sexismo, volto-me à metáfora no cerne da resposta teológica oferecida por Dulles (e outros) para restringir a ordenação aos homens. Os defensores de um clero exclusivamente masculino insistem que as mulheres e os homens estão em pé de igualdade diante de Deus e que a discriminação injusta contra as mulheres deve ser combatida e superada.
As mulheres não são excluídas da ordenação por causa do sexismo, argumentam eles, mas por causa da própria natureza da Eucaristia. O padre, argumenta Dulles, não apenas transmite as palavras da Eucaristia como um mensageiro, mas está in persona Christi – um ícone do próprio Cristo, o esposo, voltado à sua esposa, a Igreja, no amor. Apenas um homem, escreve Dulles, pode ser apropriadamente esse ícone.
Essa explicação tropeça por duas razões. Ela toma uma bela metáfora bíblica e a restringe ao torná-la literal. Além disso, ela reinscreve a subordinação das mulheres e a superioridade dos homens, mesmo que a tradição mais ampla tenha ensinado com clareza crescente a plena igualdade de todos os seres humanos perante Deus.
Segundo a famosa frase de Santo Agostinho de Hipona, “se você entendeu, então o que você entendeu não é Deus” (“si comprehendis non est Deus”). A imagem que Dulles e outros usam para demonstrar que a restrição da ordenação aos homens é apropriada é a de Cristo, o esposo, voltado à Igreja, sua esposa, o que é uma metáfora. Jesus nunca foi um esposo. Ele não era o amante de ninguém. Esse não é um problema a ser superado, mas a condição da humanidade que fala de Deus. Alcançamos, mas não agarramos. Nenhuma imagem, ícone ou metáfora; nenhuma palavra humana, mesmo a mais antiga e venerada, contorna essa limitação.
A metáfora do esposo e da esposa como uma imagem do encontro divino-humano é antiga. O profeta Oseias a usa, e muitas interpretações do Cântico dos Cânticos situam Deus ou Cristo como o esposo e a Igreja ou a amada como a esposa. Encontramos a imagem em Efésios e em toda a tradição monástica europeia medieval.
O Papa João Paulo II favoreceu isso ao falar e ao escrever sobre as mulheres, o casamento e a Igreja. Essa metáfora ilumina poderosamente a intimidade, o amor apaixonado e o anseio que caracterizam o amor de Deus pelo povo de Deus, o amor de Cristo pela Igreja e a necessidade humana de Deus. Mas é e continua sendo uma metáfora.
A linguagem metafórica atua no movimento entre a semelhança e a diferença, com o propósito de ver algo de uma nova forma. A tradição cristã usa a metáfora dos amantes para explorar o anseio que a alma humana tem por Deus e o desejo de Deus por nós.
No entanto, como Susan Ross argumentou na revista America (“Deus pode ser um esposo?” [disponível em inglês aqui]) e em outros lugares, essa metáfora se baseia em uma imagem das relações entre homem e mulher em que a pessoa feminina está profundamente subordinada à masculina; o esposo dá, e a esposa recebe.
Em uma teologia da relação divino-humana, é correto imaginar a criatura como totalmente dependente do Criador em relação à sua vida. Por exemplo, em seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, São Bernardo de Claraval explorou essa imagem do amante e da amada. Ele entendeu que Cristo era o amante que chamava, e o ser humano era a amada que respondia.
A questão aqui é que a rica metáfora do esposo e da esposa ressoa porque abre as nossas imaginações de maneiras inovadoras. Deus não está longe de nós, mas irresistivelmente próximo. Deus nos busca, chamando os nossos nomes.
A profundidade do nosso anseio será mais do que respondida pelo nosso Criador. Isso não significa que Deus é um “homem” e que os seres humanos são todos “mulheres”, e isso não significa que as mulheres e os homens têm naturezas separadas (enquanto Deus e os seres humanos sim).
O argumento de que os homens podem ser um ícone de Cristo na Eucaristia e de que as mulheres não podem, por causa de suas naturezas diferentes, chega perigosamente perto da divisão entre homens e mulheres e da separação das mulheres em relação a Cristo, cuja natureza “masculina” não é compartilhada pelas mulheres.
Se tomarmos essa imagem literalmente – prescrevendo a realidade concretamente, em vez de iluminar, fragmentariamente, um mistério – poderemos imaginar que as mulheres e os homens estão em lados diferentes de alguma grande divisão. Em uma história mais ampla que ensina a subordinação das mulheres e em uma cultura em que o trabalho e a dignidade das mulheres são frequentemente subestimados ou negados, esse perigo é real. No entanto, tal separação que colocaria as mulheres fora do abraço salvador da encarnação é e sempre foi contrário à fé.
Com São Paulo e na fé, as mulheres podem e dizem: “Estou crucificado com Cristo, e já não sou eu que vivo: é Cristo que vive em mim. Esta minha vida humana, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gal 2,19-20). Os corpos das mulheres fazem parte do corpo de Cristo. A história e a tradição cristãs estão repletas de mulheres que são iluminadas pela luz de Cristo. A grande companhia dos santos e santas dá testemunho disso.
Cristo, por meio do Espírito Santo, está neste momento curando os nossos corações partidos e nos acompanhando enquanto lutamos para desfazer os legados do sexismo (entre os muitos outros males aos quais devemos resistir). Para que a teologia e a prática da ordenação e do ministério sejam credíveis, então a obra que Dulles se esforçou para fazer – compreender mais profundamente o mistério da presença de Cristo na Eucaristia – deve continuar.
Mas essa obra deve ilustrar a cada passo a plena humanidade de cada pessoa. Argumentos que fracassem em questionar as formas pelas quais a tradição cristã foi distorcida pelo pecado ou que se baseiam em imagens que reforçam a subordinação das mulheres são inadequados à obra evangélica à qual todos somos chamados.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não podemos separar a ordenação de mulheres da história de sexismo da Igreja” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU