13 Mai 2021
"A pandemia, um dramático teste de estresse global, mostrou que precisamos estudar e compreender a midiasfera digital muito mais do que temos feito até agora. O dispositivo reconfigura as imagens e os olhares. Se é verdade que a ética nasce da estética, ou seja, do nosso conhecimento sensível do mundo graças à nossa natureza corporal, as neurociências hoje podem nos ajudar a compreender a realidade em que vivemos, estudando como construímos a experiência de um mundo cada vez mais híbrido", escreve Vittorio Gallese, professor de psicobiologia na Universidade de Parma, Itália, e professor de estética experimental na Universidade de Londres, Reino Unido, especialista em neurofisiologia, neurociência cognitiva, neurociência social e filosofia da mente, em artigo publicado por Avvenire, 12-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
As tecnologias produzem mudanças cada vez mais evidentes nas práticas sociais. Isso terá consequências em nossas emoções, sentimentos, opiniões e experiências que temos da vida?
Realiza-se nos dias 13, 14, 20 e 21 de maio com o tema 'Novas formas de estudar o cérebro' a 12ª Conferência Internacional de Neuroética, promovida pela Sociedade Italiana de Neuroética (Sine) e pela Ins, a Sociedade Internacional da mesma disciplina, que trata em nível interdisciplinar das consequências éticas, filosóficas, sociais e legais da pesquisa sobre o cérebro. Entre os palestrantes, destacamos Karl Deisseroth, inventor da optogenética, Derk Pereboom, protagonista do debate internacional sobre o livre arbítrio, e Vittorio Gallese, co-descobridor dos neurônios-espelho, que aqui antecipa os temas de sua palestra. Você pode acompanhar a conferência online gratuitamente através de inscrição em Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Programa e informações neste link.
O capítulo A Aurora do Homem, com o qual se abre o filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, mostra com o poder visual da arte de Stanley Kubrick o momento em que o hominídeo vê pela primeira vez o fêmur de um animal morto como um potencial utensílio. Em seu longo caminho evolutivo, a cultura humana está intimamente ligada ao desenvolvimento tecnológico, que é o resultado da tecnologia cognitiva humana. Como Gilbert Simondon mostrou, a tecnologia faz parte da natureza humana e vai além do mero propósito utilitário, pois é uma rede de relações. No curso da evolução cultural humana, do utensílio se origina o símbolo.
Para o homo sapiens, o mundo não é apenas a arena da luta pela sobrevivência, mas também um espaço de representação. De fato, não nos limitamos a habitar o mundo físico que de forma cada vez mais incerta e problemática definimos como “realidade”, mas entramos e saímos continuamente também de uma multiplicidade de mundos paralelos. São os mundos imaginários e imaginados da ficção narrativa, criados com a constante produção de imagens e histórias. Graças a essas narrativas feitas de imagens, sons e palavras, desenvolvemos hábitos, práticas sociais, rituais, construímos comunidades e instituições, alimentando regras, hierarquias e crenças coletivamente compartilhadas. Isso tem contribuído de maneira essencial para transformar o Eu e o Tu em Nós, tornando os indivíduos membros ativos de uma comunidade que se identifica com práticas, símbolos e valores éticos compartilhados.
E hoje? Existe algo de especial sobre a nova tecnologia digital? Talvez sim. O advento dos artefatos digitais e o uso das mídias sociais revolucionaram nosso estilo de vida. O novo milênio deu origem a um novo ambiente, o ambiente midiático digital. Segundo Francesco Casetti, o ambiente midiático digital promove ou facilita a mediação entre os indivíduos e a realidade, graças aos artefatos tecnológicos nele inseridos. A intersubjetividade depende de práticas e relações sociais que as mídias digitais multiplicam, transferindo-as para um mundo-réplica em duas dimensões, terrivelmente similar ao mundo da ficção cinematográfica. As mídias digitais contemporâneas tendem a substituir o mundo corpóreo, tornando-se a principal forma de relação com ele.
O smartphone para bilhões de seres humanos é agora uma verdadeira tecno-prótese corporal, uma tela-pele, instrumento de uma nova visão performática, marcada pelo movimento dos dedos na tela. A tela-pele é um funil digital que engloba serviços, notícias, comentários, relações sociais, entretenimento e, ultimamente, devido à pandemia, até instrução e educação. A criação de sentido mediada pelo novo ambiente digital, fortemente habitado pelas emoções, muitas vezes negativas, que amplifica e nos retransmite, influencia a forma como percebemos o mundo e as crenças e opiniões que norteiam nossas escolhas.
O self digital que usamos como avatar de nós mesmos, cuja história narramos ao vivo, é o produto de uma construção elaborada, da qual a selfie é um ingrediente importante. O self se torna mais estético. A repetição ritualizada das práticas sociais digitais faz de uma obsessão pessoal uma religião cada vez menos privada e de conteúdo ansiogênico. Em tempos de Covid-19, isso é ampliado pela transferência para o paralelo mundo digital de grande parte de nossa vida social, devido às prescrições que limitam nossa proximidade física com os outros. O ambiente midiático digital, a chamada midiasfera, está modificando a natureza da experiência, pois a hibridização de seus aspectos digitais e corporais cria contaminações cruzadas que requerem uma constante negociação e remediação.
A pandemia, um dramático teste de estresse global, mostrou que precisamos estudar e compreender a midiasfera digital muito mais do que temos feito até agora. O dispositivo reconfigura as imagens e os olhares. Se é verdade que a ética nasce da estética, ou seja, do nosso conhecimento sensível do mundo graças à nossa natureza corporal, as neurociências hoje podem nos ajudar a compreender a realidade em que vivemos, estudando como construímos a experiência de um mundo cada vez mais híbrido. Já sabemos de algo: a capacidade de reconhecer os outros como nossos semelhantes e compreender seus comportamentos está ligada à relação de reciprocidade que nos liga uns aos outros, mesmo no nível dos mecanismos neurais subjacentes.
Esses mecanismos entram em jogo também quando nos imergimos na ficção narrativa, como quando olhamos um quadro, vamos ao cinema, ao teatro ou lemos um romance. O que ainda sabemos pouco e mal é como o cérebro-corpo responde a uma sociabilidade digital ou até mesmo virtual. Quão porosa é a fronteira entre esses mundos? As neurociências hoje devem investigar as mudanças que as tecnologias digitais produzem nas práticas sociais e como essas mudadas práticas, por sua vez, modificam as atitudes, os sentimentos, as opiniões e as emoções. Em suma, como mudam as nossas experiências de vida.
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Entre o homem e o digital: o diálogo em debate pela neurociência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU