06 Mai 2020
Ela serve-se da pandemia para impor seu imenso poder. Em obra prestes a sair no Brasil, escritor propõe sete razões para boicotá-la: de seu desprezo pelos livros e pelos trabalhadores à necessidade de preservarmos a resistência e o desejo…
O artigo é de Jorge Carrión, escritor, crítico cultural do jornal New York Times em espanhol e autor de "Livrarias" e "Contra Amazon", publicado por Outras Palavras, 04-05-2020. A tradução é de Reginaldo Pujol Filho.
Durante 55 anos, um edifício, dos poucos exemplos da arquitetura industrial moderna de Barcelona, foi a sede da editora Gustavo Gili. Em 2018, após uma restauração que custou muitos milhões de euros, ele se transformou na central de operações da Amazon na cidade.
Graças a toda essa tecnologia da eficiência e da imediatez que o prédio agora abriga, Barcelona já é uma das 45 cidades do mundo em que a empresa garante a entrega de seus produtos em uma hora.
A livraria Canuda, que fechou em 2013 depois de mais de 80 anos de existência, agora é uma loja da Mango [multinacional de moda espanhola] de proporções faraônicas. A centenária livraria Catalónia agora é um McDonald’s com decoração modernista e kitsch. A expropriação é literal, física, mas também é simbólica.
Se você pesquisar no Google “Amazon librería”, vão aparecer dezenas de links para páginas da Amazon onde se vendem estantes. Não vou me cansar de repetir: a Amazon não é uma livraria. É um hipermercado. Em seus depósitos, os livros estão guardados ao lado de torradeiras, brinquedos ou skates.
Em suas novas livrarias físicas, os livros estão em primeiro plano, porque exibem só os 5.000 mais vendidos e mais bem avaliados por seus clientes, número bem distante da quantidade e do risco característicos de verdadeiras livrarias. Para a Amazon, não há diferença entre a instituição cultural e o estabelecimento comercial e alimentício.
A história de Jeff Bezos, fundador da Amazon, é a de uma grande expropriação simbólica. Escolheu a venda de livros e não a de equipamentos eletrônicos porque encontrou um nicho de mercado: todos os títulos disponíveis no mercado não cabiam nas livrarias, e ele, sim, poderia oferecer todos.
Nos anos 90, eram poucos os competidores de grande porte (sobretudo Barnes & Nobles e Borders), e os distribuidores já tinham catálogos adaptados à era digital, com códigos ISBN incorporados. Por isso, Bezos fez um curso da Associação de Livreiros Americanos e se apropriou em tempo recorde do prestígio que os livros haviam acumulado ao longo de séculos.
Mesmo hoje, quando a Amazon produz séries de TV, oferece música online, acaba de incorporar ao seu portfólio peças de carros e motos e se candidata a ser operadora de telefonia móvel, todo mundo vincula essa marca ao objeto e ao símbolo que chamamos livro.
O Kindle, desde seu lançamento em 2007, tem imitado a forma das páginas e o tom da tinta. Por sorte, a textura vegetal e o cheiro de lignina não são, até o momento, reproduzíveis na tela. Para bem e para mal, ainda não somos capazes de recordar com a mesma precisão aquilo que lemos no papel e o que lemos no ebook. As mudanças arquitetônicas são rápidas; as mentais, por sorte, nem tanto.
Todos carregamos implantes.
Todos dependemos dessa prótese: nosso celular.
Todos somos ciborgues: bastante humanos, um pouco máquinas.
Mas não queremos ser robôs.
O trabalho que os empregados da Amazon devem realizar é robótico. Tem sido desde o princípio: em 1994, quando eram cinco pessoas trabalhando na garagem de Jeff Bezos em Seattle, já estavam obcecados com a rapidez. Tem sido ao longo de mais de 20 anos, repletos de histórias de estresse laboral, de assédio e de tratamento desumano dedicados a alcançar a maldita eficiência máxima que só é possível se você for uma máquina.
Atualmente os “amazonians” são auxiliados por robôs Kiva, capazes de levantar 340 kg e de se mover na velocidade de um 1,5 m por segundo. Sincronizados com os trabalhadores humanos através de um algoritmo, se ocupam em erguer e movimentar as estantes para facilitar a recolha dos produtos.
Uma vez reunidos os produtos que um cliente tenha comprado, outra máquina, chamada Slam, com sua enorme esteira, se encarrega de escaneá-los e embalá-los.
Kiva e Slam são resultado de anos de investigação. A Amazon tem promovido competições de robôs dentro da programação da Conferência Internacional de Robótica e Automação, de Seattle, com o objetivo de aprimorar seu processamento de pedidos.
Em uma das edições, o desafio para máquinas criadas pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology) ou pela Universidade Técnica de Berlim era recolher no menor tempo possível um patinho de borracha, um pacote de bolachas Oreo, um cachorrinho de pelúcia e um livro. Para a Amazon, não existe diferença substancial entre essas quatro coisas. São mercadorias de classe semelhante.
Mas não para nós.
A Amazon tem eliminado progressivamente o fator humano. Durante seus primeiros anos, contou com redatores que escreviam resenhas dos livros que estavam à venda; agora, nem sequer existe mediação ao longo do processo de editorar e subir um livro autoeditado para a rede. Robotizou a cadeia de distribuição e pretende que os consumidores ajam do mesmo modo.
Mas não.
Porque para nós um livro é um livro é um livro.
E a leitura dos livros —atenção e júbilo— é um ritual, o eco do eco do eco do que foi sagrado.
A grande vergonha de Barcelona, cidade de muitas e muito boas livrarias, foi a existência durante 24 anos da livraria Europa, gerida pelo neonazista Pedro Varela e um centro relevante de difusão da ideologia antissemita. Por sorte, ela fechou em setembro de 2016.
Na Amazon, estão à venda uma infinidade de edições de “Minha Luta” [de Adolf Hitler], muitas delas com prólogos e notas para lá de questionáveis. Aliás, em 2013, o Congresso Mundial Judaico alertou a empresa sobre as dezenas de livros negacionistas que estavam, sem restrições, em seu catálogo.
Quer dizer, a livraria Europa é fechada por, entre outros delitos, incitar o ódio; a Amazon não, mesmo que em muitos países onde ela atua seja crime negar o holocausto.
A Amazon argumenta que não acredita em censura. Por isso, apesar do clamor contrário, seguiu vendendo “The Pedophile’s Guide to Love and Pleasure: a Child-lover’s Code of Conduct” (guia de amor e prazer do pedófilo: um código de conduta para amantes de crianças), de Phillip R. Graves, até que finalmente teve que retirá-lo de catálogo.
Algo similar havia ocorrido com “Understanding Loved Boys and Boylovers” (entendendo meninos amados e amantes de meninos), de David L. Riegel.
Ela advogou pela possibilidade de que seus clientes tenham acesso a esses livros que pregam o amor sensual com crianças —assim como podem acessar livros que promovem ideias nazistas— porque supostamente não deseja censurar.
Entretanto, a verdade é que a Amazon censura ou privilegia livros de acordo com seus interesses. Há alguns anos, ao longo de seu litígio com o grupo editorial Hachette, uma série de autores e autoras, como Ursula K. Le Guin, denunciou que ficou mais difícil de encontrar os seus livros enquanto durou a disputa [a escritora publicou um manifesto pedindo que ninguém comprasse livros na Amazon].
Aparentemente, a única coisa que importa é a rapidez e a eficiência do serviço. Mas atrás de todas essas operações individuais está uma grande estrutura econômica e política.
Uma estrutura que pressiona as editoras para tirar o maior lucro de cada produto, assim como faz com fabricantes de skates ou de pizzas congeladas. Uma macroestrutura que decide a visibilidade, o acesso, a influência: que está moldando nosso futuro.
Na Amazon, não existem livreiros. A indicação humana foi eliminada por falta de eficiência. Por sabotar a rapidez, o único valor da empresa. A indicação está nas mãos de um algoritmo. O algoritmo é o ápice da fluidez. A máquina converte o cliente em prescritor. “Clientes que compraram este item também compraram…”
A autoedição deixa o processo nas mãos do produtor. A Amazon elimina os intermediários ou torna-os invisíveis (equivalentes a robôs). Parece uma máquina de registrar pedidos. Deseja ser tão fluida que pareça invisível.
Eliminando os custos de envio, regateando com seus grandes fornecedores para conseguir o menor preço possível para o cliente individual, a Amazon parece ser barata. Muito barata. Mas nós já sabemos que o barato sai caro. Muito caro. Porque a invisibilidade é uma camuflagem: tudo é tão rápido, tão transparente, tão fluido, que parece não haver intermediação. Porém, ela existe, sim. E você paga em dinheiro e em dados.
Demanda, objetos, preços, envio: os processos individuais se desfazem na lógica imaterial da fluidez. Para Bezos —e Google ou Facebook—, o pixel e o link podem ter um correlato material: o mundo das coisas pode funcionar do mesmo modo que o mundo dos bytes.
As três empresas compartilham a vontade imperialista de conquistar o planeta, fazendo a defesa do acesso ilimitado à informação, à comunicação e aos bens de consumo, ao mesmo tempo em que fazem seus funcionários assinar contratos de confidencialidade, urdem complexas estratégias para não pagar impostos nos países onde se radicam e constroem um estado paralelo, transversal, global, com suas próprias regras e leis, com sua própria burocracia e hierarquia, com seus próprios policiais.
E com seus próprios serviços de inteligência e laboratórios ultrassecretos. O Google X, centro de pesquisas e desenvolvimento de novos projetos da empresa, se encontra em lugar indeterminado, mais ou menos próximo dos quarteis generais da companhia.
Sua menina dos olhos é o desenvolvimento de uns globos estratosféricos que garantam, daqui a dez anos, o acesso à internet para metade da população que hoje está desconectada.
O projeto paralelo da Amazon é o Amazon Prime Air, sua rede de entregas com drones —que atualmente são híbridos de avião e helicóptero, com um peso de 25 kg. Em agosto de 2016, a regulamentação da Federal Aviation Administration dos EUA foi modificada, facilitando o voo de drones com motivos comerciais e fazendo com que seja muito simples obter o certificado de piloto de drones.
Viva o lobby. Que o céu se encha de robôs entregadores de biscoitos Oreo, bichinhos de pelúcia, skates, torradeiras, patinhos de borracha e… livros.
Diferentemente do Facebook e do Google, que precisam lidar com a possibilidade de que nossos nomes e dados sejam falsos, que fazem todo o possível para conseguir nossos números de telefone porque não os pediram quando abrimos nossas contas, a Amazon possui desde o princípio todos os nossos dados reais, físicos, legais. Inclusive o número do cartão de crédito.
Talvez não acesse com tanta facilidade nossos perfis sentimentais, emocionais ou intelectuais, como fazem o Google e o Facebook, mas, em contrapartida, sabe quase tudo o que lemos, que comemos, que damos de presente.
É fácil deduzir o perfil do teu coração e do teu cérebro a partir das tuas coisas. O império nasceu dos objetos que atestam mais prestígio cultural: os livros. A Amazon se apropriou do prestígio dos livros. Construiu o maior hipermercado do mundo com uma grande cortina de fumaça em forma de biblioteca.
Tudo começou com um dado.
Em 1994, Jeff Bezos leu que a world wide web crescia em um ritmo mensal de novos usuários de 2.300%. Largou seu trabalho em Wall Street, mudou-se para Seattle e decidiu começar a vender livros pela internet.
Desde então, os dados vêm se multiplicando, vão sendo agrupados organicamente na forma de um monstro com tentáculos ou de uma nuvem tormentosa ou de uma segunda pele: fomos convertidos em dados.
Dados que vamos deixando nas milhares de operações cotidianas que marcam nossas impressões digitais na internet. Dados que são emitidos pelos sensores dos nossos smartphones. Estamos constantemente escrevendo nossa autobiografia com nossos teclados, nossas ações, nossos passos.
No último Dia do Livro, a Amazon revelou quais foram as frases mais sublinhadas ao longo dos cinco anos da plataforma Kindle. Se você lê em seu dispositivo, eles sabem tudo sobre suas leituras. Em quais páginas você as abandona. Quais chega até o fim. Em que ritmo você lê. O que sublinha.
A grande vantagem do livro em papel não é sua portabilidade, sua duração, sua autonomia, nem sua relação íntima com nossos processos de memória e aprendizagem. É a sua desconexão permanente.
Quando você lê um livro em papel, a energia e os dados emitidos pelos seus olhos e pelos seus dedos são somente seus. O Grande Irmão não pode espiar. Ninguém pode tomar essa experiência, nem analisá-la: é apenas sua.
Por isso, a Amazon lançou a campanha mundial “Kindle Reading Fund” (fundo de leitura Kindle): em tese para incentivar a leitura nos países pobres; na prática para acostumar uma nova geração de consumidores a ler na tela, para poder estudá-los, para ter “datificados” os cinco continentes.
Chegou o nosso momento.
A Amazon se apropriou dos nossos livros; nos apropriemos da lógica da Amazon.
Primeiro, convencendo o resto dos leitores da necessidade do tempo dilatado. O desejo não pode ser imediatamente saciado, porque então deixa de ser desejo. Transforma-se em nada. O desejo deve durar.
É preciso ir à livraria; buscar o livro; encontrá-lo; folhear; decidir se o desejo tinha razão de ser; talvez abandonar esse livro e desejar o desejo de outro; até encontrá-lo; ou não; não tem; encomendar então; chegará em 24 horas; ou em 72; dar uma olhada nele; e então comprar finalmente; talvez o leia, talvez não; talvez deixe que o desejo se congele por dias, semanas, meses ou anos; ali estará, no seu preciso lugar, na sua precisa estante; e sempre lembrarei em que livraria e quando o comprei.
Porque a livraria te oferece a recordação da compra. Comprar na Amazon, ao contrário, iguala uma experiência à anterior e à seguinte. Nubla o contorno de cada leitura, torna-as nebulosas.
Uma vez que conquistemos nosso tempo e nosso desejo, talvez chegue o momento de dar mais um passo e tomar as estantes de vez.
Não tenhamos medo da mistura —que é o que nos faz humanos. Que nas livrarias haja café e vinho. Que as garrafas de vinho argentino estejam junto das obras completas de Borges, dos CDs do Gotan Project, El Eternauta, a filmografia de Lucrecia Martel, os livros da Eterna Cadencia, um vinil de Mercedes Sosa, “El Hambre” (a fome) de Martín Caparrós e três biografias de Carlos Gardel (ainda que não fosse argentino).
Ou, melhor ainda, esqueçamos as categorias nacionais como esquecemos os gêneros aristotélicos. Não existem mais as unidades de tempo nem de espaço. No século 21, as fronteiras não têm sentido.
Organizemos as prateleiras tematicamente, misturemos nelas os livros com os quadrinhos, os DVDs com os CDs, os jogos com os mapas. Apropriemo-nos da mescla dos galpões da Amazon, mas criando sentidos. Percursos de leitura e de viagem.
Porque, mesmo que sejamos dependentes das telas, não somos robôs. E necessitamos das livrarias de todo dia, para que sigam gerando as cartografias de todos esses confins que permitem que nos localizemos no mundo.
Não: não sou.
Não sou ingênuo. Assisto a séries da Amazon. Compro livros que não poderia conseguir de outra maneira na iberlibro.com (que pertence a abebooks.com, que em 2008 foi comprada pela Amazon). Busco constantemente informação no Google. E constantemente ofereço a ele meus dados, mais ou menos maquiados. E ao Facebook também.
Sei que são os três tenores da globalização.
Sei que a sua música é a música do mundo.
Mas acredito na resistência mínima e necessária. Na preservação de certos rituais. Na conversação, que é arte do tempo; no desejo, que é tempo transformado em arte. Em assobiar, enquanto vou passeando entre minha casa e uma livraria, melodias que só eu escuto, que não pertencem a mais ninguém.
Os livros que não estão fora de catálogo eu sempre compro em livrarias físicas, independentes e de confiança.
Fiz isso outro dia, por exemplo. Fui até a Nollegiu, a livraria do meu bairro, e comprei “Acerca de La Ciudad” (sobre a cidade), do arquiteto e pensador Ken Koolhas. E enquanto tomava um café, ali mesmo, li: “Às vezes, uma cidade antiga e singular como Barcelona, ao simplificar excessivamente sua identidade, se torna genérica”. “Transparente”, ele acrescenta. Intercambiável: como um logotipo.
Esse livro, a propósito, foi editado pela Gustavo Gili na mesma Barcelona, quando sua sede era outra, diferente da atual.
Nota:
Este texto é um dos artigos do livro: Contra Amazon, de Jorge Carrión.
Publicado pela Elefante, parceira de Outras Palavras.
300 páginas, R$ 49,90, no site da editora.
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