30 Janeiro 2015
Merton contestava a alienação em uma esfera religiosa e sagrada, diferente da profana, e os condicionamentos ideológicos da cultura ocidental da qual a religião se torna projeção e justificação. A oração, o silêncio, os sacramentos educam o olhar dos cristãos no discernimento sobre a história e as suas urgências.
A opinião é do teólogo leigo italiano Christian Albini, coordenador do Centro de Espiritualidade da diocese de Crema, na Itália, e sócio-fundador da Associação Viandanti, em cujo sítio o artigo foi publicado, 29-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ele nos ensinou a reconhecer os ciclopes, os bárbaros, e hoje ainda precisamos da sua palavra que escava em profundidade, do seu olhar visionário.
No dia 31 de janeiro de 1915, em Prades (França), nasceu Thomas Merton, que chegou à fé católica e à vocação monástica depois de uma juventude cosmopolita, rica em experiências, mas também conturbada.
Um explorador do coração humano
Ele foi uma das maiores personalidades espirituais do século XX e vive a passagem de uma fé estranha ao mundo moderno a um cristianismo que habita dentro da história em comunhão com a humanidade e com as suas turbulências, a partir da contemplação e da experiência eremítica. Merton era o solitário e o marginal que olhava para dentro do coração do homem e da sociedade planetária.
Escritor e poeta, com a sua vasta obra – que, de fato, é uma monumental autobiografia espiritual –, inspirou milhões de pessoas, fazendo-se pioneiro e viandante ao longo das estradas de reinos desconhecidos: a paz, o ecumenismo, o encontro entre as religiões, mas, principalmente, a busca de uma espiritualidade plenamente humana, para além da rigidez de formas e devoções religiosas em que o costume corre o risco de prevalecer sobre a autenticidade da relação com Deus e com os outros.
Por ocasião desse centenário, vale a pena determo-nos sobre um dos aspectos mais relevantes e, ao mesmo tempo, mais controversos da rica elaboração mertoniana, a que diz respeito à paz e à não violência. Os recentes fatos de Paris e a emergência do fundamentalismo tornam-na particularmente atual.
Não tanto em vista do estéril exercício que consiste em se perguntar: "O que Thomas Merton diria hoje?", mas na perspectiva de destacar os pontos focais das convicções por amadurecidas, que cabe a nós pôr em correlação com as vicissitudes do nosso tempo.
Objeto de ostracismo
Ocupando-se dessas temáticas, Merton conheceu ostracismos por parte daqueles coirmãos segundo os quais um monge não deveria se ocupar de política e por parte daqueles católicos que identificam a própria fé com o pertencimento ao sistema político-econômico ocidental. "Uma coisa é confiar em Deus porque se depende dele, outra coisa é presumir que ele abençoa as nossas bombas porque os russos são ateus e porque não é possível que ele aprove o comunismo" (Diário de uma testemunha culpada, p. 275).
Merton contestava a alienação em uma esfera religiosa e sagrada, diferente da profana, e os condicionamentos ideológicos da cultura ocidental da qual a religião se torna projeção e justificação. A oração, o silêncio, os sacramentos educam o olhar dos cristãos – em relação aos quais o monge se coloca como "sentinela" e vanguarda – no discernimento sobre a história e as suas urgências. É um "exercício de cristianismo", que requer tempos longos e não a pressa das respostas de quem abraça um ponto de vista e um interesse particulares, em vez de estar aberto ao humano.
Uma referência importante é o artigo Gandhi e os ciclopes, publicado em 1964 como introdução a uma coleção de aforismos do Mahatma, um dos mestres de Merton. As características distintivas da não violência gandhiana sintetizadas nesse texto refletem a disposição interior do monge escritor. Falando de Gandhi, Merton contava as próprias convicções profundas.
Na caridade, o encontro Oriente e Ocidente
Os ciclopes são os homens do Ocidente que têm ciência sem sabedoria, sem alma, dominando a matéria e os outros seres humanos sem compreendê-los. E, portanto, sem amá-los.
Desse desequilíbrio nascem a opressão, a injustiça, a morte. No encontro com o cristianismo, Gandhi aprendeu a prioridade da sabedoria e do amor, das quais derivou a não violência como realização prática do satyagraha, o permanecer apegado à verdade. "Gandhi, assim, não abraçou a religião cristã, mas não a recusou; tomou do pensamento cristão tudo o que lhe parecia que lhe dissesse respeito como hindu".
Há valores essenciais – éticos, religiosos, ascéticos, espirituais e filosóficas – que são universais e compartilhados entre Oriente e Ocidente e que, do ponto de vista cristão, encontram o seu cumprimento na caridade. "Uma caridade que exclua esses valores não pode aspirar ao título do amor cristão."
Foi em nome dessa caridade, da qual se encontram vestígios em todas as grandes tradições espirituais da humanidade, que Merton buscou o encontro com os seus expoentes. Foi em nome dessa mesma caridade que ele comprometia a sua palavra pelos direitos civis, pela paz no Vietnã, pelo desarmamento nuclear também contra a cultura e os humores predominantes. Pôr em discussão o arsenal nuclear, na época, significava contestar a política de supremacia mundial dos EUA e a lógica da guerra fria e da economia capitalista.
A espiritualidade é política
Para ele, porém, a prioridade cabia a um princípio espiritual como Gandhi já havia intuído, a unidade interior que recompõe as divisões, da qual deriva a verdadeira liberdade e o compromisso político. "Ao contrário do que se acreditou no Ocidente nos últimos séculos, a vida espiritual e interior não é uma questão exclusivamente privada. (...) A vida espiritual de um indivíduo é simplesmente a manifestação no indivíduo da vida de todos."
A espiritualidade é política, porque tende à verdade e ao bem do humano, transcendendo o particularismo do benefício e das ideologias. Eis, então, que, para Gandhi (e Merton com ele), a esfera pública não é secular, mas sagrada, e o primeiro modo de realizar a verdade do homem e a unidade humana na sua raiz espiritual é eliminar a violência que a contradiz. A não violência, nesse sentido, pertence à própria natureza da vida política, enquanto a violência é o sinal de uma política desumanizada.
Desses pressupostos, nasce uma crítica sutil da sociedade moderna, regida pelo uso da força, de modo flagrante nas tiranias e menos evidente nas democracias, a partir da convicção da necessidade da violência e da irreversibilidade do mal.
A trama dinâmica das relações humanas
"O 'tecido' da sociedade não está acabado. Está sempre 'tornando-se'. Está na armação, e é feito de relações em constante mudança. A não violência leva em conta precisamente esse estado dinâmico e não final de todas as relações entre os homens, porque a não violência busca mudar relações que são ruins em relações que são boas, ou, ao menos, menos ruins. Portanto, a não violência implica um tipo de bravura muito diferente da violência. No uso da força, simplifica-se a situação, assumindo que o mal a ser superado é bem delineado, definido e irreversível. Então, só resta uma coisa: eliminá-lo."
A democracia também pode seguir uma lógica violência, identificando os próprios males com uma porção de humanidade e combatendo-a, desencadeando, assim, uma espiral em que a agressão gera outra agressão, em vez de encontrar uma solução comum. Mas este último passo requer consciência, conversão, retorno à nossa verdade humana e espiritual. É preciso reencontrar a si mesmo e ser capaz de compreensão e perdão ao outro.
Uma leitura profética
Os ciclopes perderam essa capacidade, veem apenas com o olho que concebe tudo nos termos de um controle a ser exercido e trouxeram ao mundo este olhar: "Isso se tornou muito evidente na difícil situação das novas nações da Ásia e da África, de repente libertas da tutela colonial! Tendo aceitado a 'cultura' do homem branco no seu status de vassalos e, mesmo assim, tendo permanecido como vassalos intelectuais e espirituais depois da sua libertação, elas entraram em um mundo de frustração, autocontradição, ressentimento e violência, porque herdaram a culpa das potências coloniais, sob a forma de um enorme auto-ódio, uma incapacidade de compreender a si mesmas e um medo e suspeita ilimitados para com qualquer outro. Isso não é nem liberdade nem civilização. É a barbárie do homem pós-histórico! Uma barbárie que só pode ser evitada por princípios e políticas de homens como Gandhi ou João XXIII".
Aqui, Merton tem em mente a Pacem in terris, à qual deu uma contribuição pela forma como deixa claro que a paz não pode ser construída sobre o exclusivismo, o absolutismo e a intolerância. A leitura de Merton é até profética, porque soube captar, ainda meio século atrás, o gérmen da atual ameaça do terrorismo fundamentalista, mas também a fraqueza da visão do choque de civilizações. Seguir nesse caminho levaria apenas a perpetuar e difundir o que se acredita combater, como fez o intervencionismo bélico da primeira década deste século e do qual, agora, sofremos as consequências.
Homens como Thomas Merton estão fora dos esquemas em que nos afundamos, são os raros homens que encontraram e reabriram o olho que os ciclopes perderam.
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Thomas Merton, Gandhi e os ciclopes. Artigo de Christian Albini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU